terça-feira, 19 de maio de 2009

Contos de MALBA TAHAN

O demônio e a intriga

Durante as longas peregrinações que empreendeu pelo mundo, o terrível e odiento Enam, o demônio dos olhos chamejantes, foi ter a uma pequena aldeia, muito além do Eufrates, chamada Nagazor. Recebido com acolhedora simpatia pelos habitantes, começou o infernal Enam a agir de acordo com os seus planos. O seu ideal era transformar a pacífica Nagazor num pequenino inferno onde dominasse a discórdia, a cizânia e a desarmonia. Mas todos os esforços do Maligno fracassaram entre as colinas de Nagazor. As artimanhas e maldades do tentador resultaram inúteis.
Pretendeu semear a discórdia entre os chefes de família e não conseguiu; arquitetou mil e uma desavenças entre as esposas, mas viu cair por terra todos os seus sórdidos artifícios. Insistiam os habitantes de Nagazor em viver em paz e não havia como mudar aquele sereno teor de vida.
Decepcionado com o malogro de seus torpíssimos embustes, retirou-se o Demônio.
- Eis um recanto que não me interessa. Não vale a pena perder tempo com essa gente desfigurada e inerme. Vou em busca de outros climas.
A pequena distância da aldeia topou o demônio com um rio de praias límpidas e frescas. Sentou-se na areia clara e pôs-se a meditar. Poucos minutos depois surgiu uma mulher que vinha ao rio lavar as suas roupas. Era uma rapariga forte, de ombros largos, fisionomia simpática, tostada pelo sol. Sob o pano azulado que lhe envolvia a cabeça repontavam pequenas manchas de cabelo castanho; os seus olhos eram negros e vivos.
Ao vê-la chegar Enam sorriu meio desconfiado. A mulher parou, deixou cair ao chão a pesada trouxa que trazia, e encravando resoluta as mãos na cintura encarou com arrogância o maligno viajante.
Que pretendes aqui? - inquiriu com petulante desembaraço. - A tua fisionomia não me parece estranha. És Enam, o mal-intencionado Enam!
- Sim, minha boa amiga - volveu o Maligno com voz sucumbida. - Sou Enam, o terrível, mas o período áureo de minha vida já terminou; encontro-me em desastrosa e irremediável decadência; as almas fogem de mim e escapam de minhas mãos. Vejo-me agora despojado de meu tão temido e secular poder. Fui arrasado por essa gentinha impertinente de Nagazor.
E o Demônio relatou à lavadeira, com todas as minúcias, o seu fracasso na aldeia e a inutilidade dos seus embustes e artimanhas.
- Não passas de um simplório - garganteou a mulher, imprudente, sorrindo com desprezo. - Ainda não percebeste que os teus recursos satânicos se limitam a truques obsoletos e ridículos? As tuas armas, meu velho, outrora tão temidas pelos homens, são no século em que vivemos irrisórias e grotescas. Tens que renovar os teus planos e modificar os teus métodos.
E, depois de ligeira pausa, encarou o demônio cruzando os braços num desafio, com um relâmpago de inspiração no olhar:
- Queres apostar comigo? Sou capaz de transformar a pacatíssima aldeia de Nagazor, de ponta a ponta, num verdadeiro inferno. Duvido muito! - retorquiu o demônio, retorcendo a boca. - Bem vejo que não conheces aquela gente insípida de Nagazor. Mas escuta: se fizeres o que acabas de prometer receberás de mim uma bolsa com mil moedas de ouro.
- Combinado! - bradou a lavadeira, endireitando o busto. - Combinado! Vou já para Nagazor. Durante a minha ausência cuidarás destas roupas. Verás qual é a minha maneira de agir.
E, sem mais palavra, a mulher tomou o caminho da aldeia. E ao chegar a Nagazor bateu à porta de uma casa. Residia ali uma das melhores famílias. - A lavadeira, fingiu-se muito ingênua e bondosa, pediu para falar à dona da casa, a quem ofereceu os seus préstimos como ótima lavadeira, sendo logo contratada. Enquanto entrouxava a roupa suja, ergueu os olhos para o lindo rosto da senhora, e exclamou numa atitude de contemplação envaidecida:
- Que bandidos os homens! Todos iguais, malditos sejam! Não se pode confiar no melhor deles. Gostam de todas as mulheres, louras ou morenas, menos de suas próprias esposas!
- Que pretendes insinuar com isso? - inquiriu a dama, mordida pelo veneno da desconfiança, arregalando os olhos sobressaltados.
- Não sei mentir acudiu a lavadeira, sem hesitações na voz. - Não sei mentir e gosto de revelar sempre a verdade para aqueles que parecem dignos e bondosos. Vindo para cá, quem havia eu de encontrar, entre as sombras do parque, senão teu marido, namorando outra mulher? E, ainda por cúmulo da ingratidão, derretia-se por uma pequena feia, horrorosa; cara de bruxa! Como pode ele desprezar uma beleza como tu, por aquele estafermo, é o que não entendo! Mas não chores, querida patroa, não te aflijas. Não faças caso dessa ingratidão de teu marido. Sou entendida em artes e feitiçarias. Conheço um remédio infalível para fazer teu marido, bilontra e ingrato, retornar ao bom caminho. Aplica-lhe esse remédio e nada mais terás a recear dele. Asseguro-te que ele, depois da primeira dose, nunca mais terá olhos para outra mulher. Escuta bem o que deves fazer: quando o teu volúvel esposo chegar, fala-lhe com brandura; não o deixes desconfiar de coisa alguma. Logo depois que ele pegar no sono apanha a navalha e corta-lhe, com muito cuidadinho, três pêlos da barba, sendo dois pretos e um branco, ou três pretos. É preciso agir com cautela a fim de que ele não perceba nada. Depois dá-me esses pêlos; com eles, prepararei um remédio seguro, que teu marido será, para o resto da vida, de uma fidelidade a toda prova. Odiará todas as outras mulheres e será teu, só teu, com um amor profundo, inalterável e eterno.
Apanhando a trouxa, a lavadeira saiu à procura do marido da dama e, com a voz e os modos duma criatura consternada, disse-lhe que vinha revelar um segredo horrível; não sabia se teria forças para tanto, preferiria até morrer. O marido naturalmente quis saber do que se tratava, exigiu que ela falasse a verdade e fez sentir que não admitia desculpas ou evasivas.
- Pois bem - começou a lavadeira, tomando-o à parte, e olhando em roda cautelosamente. – Acabo de sair da tua casa onde minha ama, tua esposa, me deu estas roupas para lavar; enquanto eu estava lá chegou um belo moço, de olhos claros, muito bem trajado, e os dois se retiraram para aquele pequenino quarto que fica ao lado da sala. Pus-me a escutar e ouvi o moço dizer à tua senhora: "Mata o teu marido, querida, e eu casarei contigo". Ela respondeu que não se animava a fazer coisa tão horrível. "Ora - tornou ele com um pouco de coragem, - é muito fácil. Quando teu marido adormecer, corta-lhe o pescoço com uma navalha bem afiada. Aceitarão todos a morte dele como um acidente ou como um suicídio e nada mais. Quem ousaria desconfiar de ti?". A tua esposa relutou um pouco mas acabou por aceitar a idéia e prometeu ao jovem de olhos claros que esta mesma noite executaria o plano.
Fervendo de raiva, mas perfeitamente calmo na aparência, o marido voltou à casa, sendo cordialmente recebido pela zelosa companheira. À noite, já um pouco tarde, foi para o leito e fingiu adormecer. Pôs-se, entretanto, a vigiar os menores movimentos da esposa.
Ao vê-la, afinal, abrir a gaveta e apanhar a navalha para cortar os três pêlos necessários ao feitiço da lavadeira, levantou-se num salto, arquejante de cólera, avançou como um louco para a mulher, arrancou-lhe a navalha das mãos e, numa alucinação desesperada golpeou-a várias vezes, prostrando-a sem vida, numa poça de sangue.
A notícia do crime espalhou-se: os parentes da morta, na certeza de sua inocência, uniram-se para vingá-la e mataram o perverso e sanguinário marido. Os irmãos do assassinado resolveram tomar desforra.
Incendiaram a casa dos assassinos e mataram meia dúzia deles. Lavrou o ódio em Nagazor. E antes de terminar a luta muitas vidas foram sacrificadas e muitos lares arrasados.
Enam, o demônio dos olhos chamejantes, fiel à palavra dada, pagou a aposta. E, desse dia em diante, passou a usar da intriga como sua arma predileta.
Bem dizia o sábio:
- O que o Demônio, com mil perversidades e embustes, não consegue em vinte dias, a intriga realiza, com a maior segurança, em meia-hora.


"Lendas do Povo de Deus"Malba Tahan

( Editora “Conquista” – 10º edição. -1964)

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