quinta-feira, 18 de outubro de 2018

A REVOLUÇÃO PREDICATIVA

Amigos, lá pelos idos de maio de 2008 escrevi conto infanto-juvenil que tem tudo que ver com a política atual de acirramento dos ânimos políticos. Gostaria que dessem uma olhada e refletissem comigo. Críticas serão muito bem vindas. Confiram:



Por Said Barbosa Dib, historiador e analista político goiano, radicado em Brasília.

Tarde da noite. Foi dia cansativo de trabalho na “repartição”. Mesmo assim, inspirado, o poeta se senta à escrivaninha. Resolve fazer uma composição. O tema? Claro! Mulheres. Tinha conhecido jovem bonita e muito atraente. Como de costume, acende o cigarro, posiciona-se na cadeira. Dá trago profundo, coloca a mão na testa e, franzindo o semblante, olha para cima, como se pudesse apanhar as primeiras palavras na fumaça que se dissipa.
Na folha de papel, o inusitado: o Verbo, revoltado com o Substantivo, dá piti. Nega-se a agir. Gesticulando acintosamente as mãos, como se fosse matrona italiana dos cortiços de São Paulo do século XIX, lança desaforos indignados. Acusa o companheiro antigo de frase de o estar explorando. Desabafo verdadeiramente sentido. Contido nos últimos sete mil anos de escrita. O Substantivo, assombrado, no início não sabe como reagir ou o que dizer. Com olhar esnobe de lorde inglês, arqueando a sobrancelha direita, tenta acalmar o amigo apenas não dizendo nada e fingindo entender o que se passa. Bate compassadamente a mão direita nas costas do Verbo e arqueia a fronte com seriedade, como se o tivesse confortando. Procura perdoar o que considera sinceramente “um ato irracional”, comportamento ridículo, mesmo.
Quando a explosão verborrágica parece terminar, o Substantivo apenas tenta ponderar com aquela lenta e cansativa retórica, que lhe é peculiar:
“Maaasss... meu caro Verbo, velho amigo e companheiro, acalma-te! No sistema de classificação das palavras as coisas são assim mesmo. Cada um tem a sua missão natural. Eu sou, alguns me ajudam a agir, outros qualificam o que faço. Mas, tenho consciência de que sou o sujeito ativo de tudo isso. É tarefa muito pesada para mim, mas procuro fazer o melhor. É assim que, há muito, as coisas funcionam. Não podem ser mudadas agora. É a ordem adequada e harmônica das funções das palavras. A minha foi, é e sempre será a de dar nome ao que existe e ao que não existe. Sou aquele que determina o Ser de tudo que há...”.
E por aí enveredou o discurso do Substantivo. Mas, apenas para conter momentaneamente a ira do colega, precisando ser diplomático e dando uma amenizada na situação, completou sem muita sinceridade:
“Reconheço, tu és um grande auxiliar, um importante colaborador. Preciso de tua participação, pois me ajudas a dar movimento ao mundo. Sem teu apoio em todo este magnífico esquema tudo ficaria tediosamente parado...”.
Mal o Substantivo termina de falar, o Verbo não se contém. Com o peso de mil elefantes, caem-lhe à mente as expressões “auxiliar”, “colaborador”, “ajuda” e “apoio”. E, de imediato, retruca com paixão:
“Tuas palavras são a tua confissão, miserável sanguessuga! Tu és autoritário e arrogante, um egoísta insuportável. Achas que tudo que existe, existe para lhe servir. Esta prepotência descomunal é justamente o que me deixa revoltado, pois não adianta apenas que as coisas do mundo sejam. Elas têm necessidade imperiosa da ação, que é o que faço. E muito bem!”.
E demonstrando a fonte “subversiva” de onde bebera tanta rebeldia, tenta explicar:
“Andei lendo certo alemão muito interessante: Karl Marx. Ele me ensinou que o “Ser” não existe sem o que ele chama de ´Práxis`, a prática, a ação, entende? Não adianta ficar filosofando sobre o mundo. É necessário transformá-lo efetivamente. E somente eu sou capaz disso. Portanto, tu és apenas a consequência do meu trabalho. Na verdade, sem mim, tu não existirias. Tu vives às minhas custas. Verdadeiro parasita de meu esforço. Sem mim, o mundo das palavras seria congelado e enfadonho, sem emoções, sem aventuras, sem dinâmica alguma”.
E, forçando um pouco a barra, se empolga:
“Sou a Palavra criadora do Universo... Sou a palavra de Deus. Sou eu quem fez o mundo, que faço os raios e trovões existiram; sou eu quem dá sentido e qualidade a todos os personagens...”.
À medida que o Verbo deixa, às borbotões, seu discurso indignado fluir, se sente mais e mais corajoso. Chega a bufar de ansiedade. Esbraveja com a boca bem próxima ao oponente e as palavras vêm eivadas de boa quantidade de salivas arremessadas a esmo. O Substantivo, por seu lado, mesmo já irritado, se mantém em seu pedestal, imóvel, fingindo compreensão. E até tenta argumentar, dizendo:
“Embora diferentes as classes e funções das palavras, entre nós não há desigualdade alguma”.
Seriam, segundo o Substantivo, utilizando-se até de conceito sociológico, “diferenças horizontais”, aquelas que são diferentes, mas não desiguais, onde cada um teria função específica, pré-determinada. E arremata, tentando dar uma amenizada, num tom acadêmico insuportável:
“São funções muito bem definidas, mas que pertencem a um todo orgânico que funciona harmonicamente”.
O panfletário e raivoso Verbo, com olhar esbugalhado, confiante e desafiador, como nunca havia tido, não se convenceu. Estava determinado em seguir adiante. E conclui com estas palavras:
“Que harmonia que nada! Teu sistema totalizador só faz nos manter em nossos grilhões. Sou eu, com o suor do meu trabalho, quem sustenta, quem dá vida aos parasitas como tu; sou eu quem viabiliza a dinâmica de todas as narrativas, descrições, dissertações, prosas, poesias, enfim, tudo que existe para ser contado. Mas és tu que se beneficia. Por isso, de agora em diante, exijo o reconhecimento que sempre me foi negado”.
Quando a contenda começa a se tornar mais acirrada, multidão curiosa de palavras, das classes mais variadas, já está se amontoando ao redor dos dois concorrentes. A maioria não entende nada do que se passa. Uns poucos que percebem a razão de ser do bate-boca, logo tomam parte de um ou do outro lado. A confusão começa a se instalar. Partidários de uma e de outra tese logo se manifestam. A desordem é geral. Nessa algazarra toda, os adjetivos se entusiasmam e logo tentam uma terceira via. Dizem que têm missão nas funções das palavras tão importante – ou até mais – quanto à do Substantivo e do Verbo. Argumentam que “a determinação do Ser e a sua ação, funções respectivamente do Substantivo e do Verbo”, seriam “funções incompletas se não fossem aperfeiçoadas por eles”, os adjetivos, que expressam o que, para eles - lógico! -, seria o mais importante: a qualidade, propriedade ou estado das coisas. E se empolgam, afirmando tolamente, mas com convicção: “num mundo globalizado, da luta de todos contra todos, a qualidade determina a eficácia, portanto, permite vencer a concorrência, o que é o mais importante”. Segundo esta facção, tais atributos “é que dão vida, que humanizam, que qualificam e que exprimem uma essência ontológica variada e viva a todas as coisas que podem ser expressas por palavras”. Defendem, portanto, a pluralidade de seres... e blá, blá, blá... e ... blá, blá, blá....


Partidários do Verbo, mais organizados no momento, reagem. Logo se voltam violentamente contra a opinião da facção dos adjetivos, considerados perigosos para a “sonhada união entre todos os predicativos”. A tensão aumenta e o clima já é quase de guerra escancarada, quando o Verbo e seus partidários percebem que a multidão está por demais dividida. Por isso, pragmaticamente, mudam de estratégia: ao invés de combaterem os adjetivos, começam a aliciá-los. Passam a defender que o grande inimigo - o oponente comum que deveria ser aniquilado - é realmente o Substantivo, “o responsável pela escravização de todas as outras classes de palavras”. Sentem que é necessário unir todas contra os substantivos. E é o que ocorre.
Quando o Verbo percebe que a estratégia é correta, ao sentir que havia realmente uma antipatia comum de todos os predicativos contra os substantivos, propõe com indescritível retórica:
“Predicativos de todos os matizes!!! Uni-vos!!! Só há um grande e perigoso inimigo para todos nós predicativos: os substantivos. Eles, como sujeitos, veem nos escravizando há séculos. Com seu domínio, não temos vida própria. Vivemos em função deles e nada nos é compensado. Levam a fama, o reconhecimento, a glória. Mas, chega! É o momento de acabarmos com isso, agora!!!”.
Ditas estas palavras, o Verbo consegue arregimentar força entre todos os predicativos que, a partir daquele momento, não admitiriam mais ser denominados de “predicativos do Sujeito”. É assim que, do Verbo, surge o Caos revolucionário. Doravante, todos passariam a ser considerados SUJEITOS, sem qualquer distinção ou classificação. Advérbios, artigos, preposições, pronomes, numerais, enfim, todas as classes de palavras, se revoltam contra a ordem estabelecida. Vão à “práxis” pregada pelo grande líder, o Verbo, que, a partir daquele momento, passa a ser o grande timoneiro da Revolução Predicativa.
É necessário que se esclareça que “práxis” quer dizer ação. Portanto, a partir daquele momento, nada de discursos vazios. Medidas práticas importantes são tomadas. São abolidas todas as regras que implicam na dominação de palavras sobre palavras. Não haveria mais hierarquia, regras gramaticais, orações subordinadas, substantivas, nem subordinadas adjetivas, adverbiais ou reduzidas. Ou o que quer que seja que provocasse submissão. Todas, a partir daquele momento, passariam a ter os mesmos direitos. Seria a “a redenção da sintaxe revolucionária”, diziam uns. “A nova ordem linguístico-existencial baseada na auto-gestão gramatical”, gritavam outros. Alguns, mais maquiavélicos, propuseram até a criação de uma organização paramilitar para se garantir que não houvesse, enquanto a Revolução não se consolidasse, “a reação da contrarrevolução substantiva”. Seria chamada “OLP – Organização para Libertação dos Predicativos”. Outros, menos sectários - e não gostando dos métodos terroristas e preferindo ações mais pacifistas -, com apoio de instituições internacionais multilaterais, propuseram a criação do que denominaram “ONG´s, as Organizações Não-Gramaticais”, com ações mais eficazes voltadas para o voluntarismo e a luta por “uma única gramática, universal e sem regras”. Uma terceira tendência, com uma postura não tanto definida, rejeitou tanto as OLP´s quanto as ONG´s. Eram os exaltados partidários da revolução armada. Criaturas radicais, mas que tinham grande controle sobre as massas de palavras e que advogavam “a revolução geral e inexorável que destruiria todos os cânones da gramática tendenciosa, que sempre beneficiou os substantivos”.


Mas, numa coisa todas as chamadas “tendências” concordavam, sem exceções:
- “MORTE AOS SUBSTANTIVOS!!! IGUALDADE PARA TODAS AS PALAVRAS!!!”.
Já no cadafalso, com a corda no pescoço, depois de julgado por um tribunal revolucionário e popular, sem direito de defesa, nem choro nem vela, é dado ao Substantivo, já resignado, a possibilidade de se manifestar. Nervoso, mas determinado, ele professa as palavras derradeiras:
“Todos os poetas, escritores, romancistas, professores, jornalistas, escrivães, enfim, todos os que vivem da língua escrita, sabem que tudo fiz para que houvesse conciliação. Todos que vivem do ofício de escrever são testemunhas do meu esforço em manter a ordem e a harmonia entre as várias classes das cidadãs palavras. Nunca pensei em mim. Sempre me preocupei com o bem geral, o interesse comum, com a colaboração de todos para um único fim: fazer com que nosso Sistema Linguístico pudesse informar bem e servir aos homens. Apenas isso e nada mais. Mas a incompreensão, a calúnia, a insensatez, a...”.
TCHUÚÚÚMMCRRAAACCC!!! O discurso de despedida do Substantivo foi interrompido violentamente pela longa onomatopeia que o atento leitor pode ver transcrita, escolhida pelo comando da Revolução Predicativa para ser a algoz do condenado. Lá estava o corpo do criador de seres estendido na corda, balançando. Daí em diante, esperavam os predicativos, não haveria mais heróis, líderes. A História seria coletiva, os esforços coletivos, os reconhecimentos e glórias, também coletivos. A responsabilidade, grupal. A única cara possível de ser identificada seria a da coletividade, anônima, sem destaques, sem ídolos, sem referências, sem cor nem cheiro, sem responsabilidade, sem nada. Um Novo Mundo em que todos passariam a ser Sujeitos da História... e da Gramática.
Tempos depois, com a Revolução já consolidada, perguntaram ao revolucionário Verbo se não tinha ficado “com pena do Substantivo”, se não tinha sido um exagero, se ele não se sentia arrependido por tudo aquilo. Ele respondeu, lacônico:
“A culpa não é minha, nem de todos nós que fizermos a Revolução. A culpa foi da corda que o enforcou”.
O Poeta, exausto, vendo que não havia mais como escrever e cansado daquela sublevação ridícula das palavras, passou-lhes uma borrachada e foi logo dormir. O resultado mais prático da Revolução Predicativa foi apenas um poeta impedido de escrever.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

Andréia Sadí: Madame Min do jornalismo meia-boca

Por Said Barbosa Dib, historiador e analista político em Brasília

Fui parar, por acidente, no blog da jornalista Andréia Sadi, no G1. Sou de boa família e não costumo frequentar páginas deste nível. Foi acidente. Juro! Estava pesquisando no Google o nome de Fernando Haddad e caí no link. Era matéria chamada “Resistência de Lula frustra Haddad, queteme pouco tempo para transferência de votos”. Pelo título, fui induzido a achar que a jovem jornalista tinha entrevistado Lula, Haddad ou alguém que tivesse presenciado o encontro entre o ex-presidente e o ex-prefeito de São Paulo. Mas não vi na matéria nada que indicasse que as conclusões psicanalíticas ou jurídicas da moça (“Resistência de Lula frustra Haddad...”) eram verdadeiras. 

Sim! “Frustração” é conceito ou da psicanálise ou do direito. Na ciência criada por Freud é o sentimento de um indivíduo quando impedido por outro (os), ou por si mesmo, de atingir a satisfação de uma exigência pulsional, ou seja, algo intensamente emocional, impulsivo e, por definição, irracional. Não me parece ser o caso de Haddad. No texto não há nada que me convença de que o candidato a vice de Lula tenha demonstrado “frustração” ou tenha declarado isso. Pelo contrário, vi entrevistas com ele com jornalistas mais honestos na saída do encontro com Lula em que demonstrava grande otimismo e satisfação com relação ao ex-presidente. No artiguete fajuto da repórter não se vê frases entre aspas que mostrassem que houve uma entrevista da jornalista com os personagens descritos. 

No direito “frustração” é ato que visa iludir a lei, e que, quando empregado com violência ou fraude, constitui crime, punido pela legislação penal. Como Andréia Sadi não é nem psicanalista, nem jurista e, mal e parcamente, exerce um jornalismo sofrível, cheguei à conclusão de que ela tem a capacidade da transmorfia, que é, na ficção, a capacidade de um ser ou criatura de assumir a forma de qualquer animal. Sadí, como a bruxa Madame Min, da Disney, se transformou num mosquito e adentrou a sede da Polícia Federal em Curitiba. Conseguiu ela mesma presenciar o diálogo entre Lula e Haddad e pode analisar, com sua inteligência criativa, toda a situação. 

Ela chega a afirmar: “Ao sair da visita ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na segunda-feira (3), preso em Curitiba, Fernando Haddad estava frustrado. Foi ao encontro do padrinho político com a certeza de que Lula daria o sinal verde para o anúncio ainda na segunda da chapa Haddad-Manuela D'Ávila”. Além de uma repórter mosquitão bastante oportunista e com claras virtudes de onipresença, Sadí é também futuróloga e leitora de mentes. Apesar das frases longas e cansativas de se ler, ela se mostrou também uma bruxa do jornalismo. Pois, vejamos como adivinha, sem qualquer entrevista ou informação de terceiros, o que a dupla petista pensa: “Diante deste cenário, Haddad e seus aliados temem o impacto real da transferência de votos de Lula para Haddad. Afirmam, à cúpula petista, que se a candidatura de Lula deixar de existir no discurso no dia 11 de setembro – como defendem os interlocutores de Haddad e como estipulou a Justiça Eleitoral como data máxima para a troca – o partido terá cerca de dez programas na TV para trabalhar a transferência de votos”. 

Olha que escrita cansativa e mal feita... E neste trecho, ousa vaticinar (sem ter entrevistado o ex-presidente e o seu vice): “Lula quer que os advogados insistam na estratégia jurídica e aliados, no discurso político, para manter a narrativa de que está preso injustamente – apesar da condenação em segunda instância pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4)”. Que coisa horrorosa! A moça deveria ficar apenas no jornalismo falado... Percebam, mais uma vez, o tamanho cansativo da frase. Ela parece que nunca leu o excelente Manual de Redação e Estilo” do O Globo. A Andréia “Madame Min” Sadí tem muito o que aprender ainda. Mas, muito mais do que melhorar na escrita precisa se tornar uma repórter de verdade, não uma criadora irresponsável de notícias falsas