terça-feira, 5 de outubro de 2021

Paulo Guedes e Bob Fields Grandson

 

Foto: Agência Câmara

São apenas a ponta de um iceberg financeiro maquiavélico que corrói a economia de mercado e a soberania nacional

Por Said Barbosa Dib*

A Comissão de Trabalho, de Administração e Serviço Público da Câmara dos Deputados aprovou convocação do ministro da Economia, Paulo Guedes. Ele terá que explicar suas movimentações financeiras no exterior através de empresas offshore em paraíso fiscal. O vazamento também apontou empresa no exterior em nome do presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto. Não há notícia se Bob Fields Grandson também será chamado. Mas fica o mal-estar no ar em pensar que homens que têm tanto poder e influência sobre o COPOM - Comitê de Política Monetária – têm a possibilidade de ganhar dinheiro com base nos estudos técnicos e informações privilegiadas sobre o mercado financeiro dos tecnocratas do BC. O COPOM é o órgão do Banco Central formado pelo seu presidente e diretores, que define, a cada 45 dias, a taxa básica de juros da economia, a SELIC - Sistema Especial de Liquidação e de Custódia. Isso não é pouco! “Não basta a mulher de César ser honesta, ela tem que parecer ser honesta”, como dizia o ditado popular. Paulo Guedes pode até ser um santo franciscano de dar dó, mas apenas a possibilidade dele poder se beneficiar e fazer investimentos lucrativos a seu favor, em decorrência de informações privilegiadas que possui, coloca em xeque as políticas fiscal, monetária, creditícia ou cambial do País, que poderiam beneficiá-lo. Portanto, coloca em xeque sua posição no governo.

Abstraindo-se a cara-de-pau do ministro - e a total falta de cobertura por parte da mídia -, este caso obriga-nos a refletir sobre o que importa, o essencial: a extrema facilidade na movimentação financeira pelos elementos envolvidos em lavagem de dinheiro desde o caso Banestado e em muitos outros casos, como o mensalão do PT ou as privatarias tucanas. Tanto as organizações terroristas internacionais, os traficantes, quanto os cleptocratas e corruptos de todos os matizes, se beneficiam justamente da desregulamentação das movimentações financeiras em escala mundial, o que permite que suas operações ilegais sejam encobertas e não possam ser rastreadas. Isto vem ocorrendo depois da onda neoliberal intensificada a partir das décadas de 80 e 90.

Segundo informações oficiais do próprio Banco Central, obtidas pelo “censo de capitais de brasileiros no exterior”, referentes ao ano de 2004 (lá atrás, imagine hoje...), oficialmente (OFICIALMENTE!!!), os brasileiros tinham US$ 94,731 bilhões, equivalentes a 15,7% do PIB - Produto Interno Bruto -, “investidos no exterior”, dinheiro que nem de longe é citado pelos jornalões amestrados. Em 2003, eram US$ 82,692 bilhões. No espaço de um ano, os ativos de brasileiros no exterior cresceram, portanto, 14,6%. O dinheiro, com as mesmas origens OBSCURAS do que foi levantado no escândalo que deu origem à obliterada “CPI do Banestado” está aplicado em locais livres de tributação, como Ilhas Cayman, Ilhas Virgens Britânicas e Bahamas.

Segundo o professor Michel Hudson, economista financeiro independente que atua em Wall Street, o percurso é o seguinte: o dinheiro roubado das mais diversas e “criativas” formas do Brasil é remetido aos paraísos fiscais offshore através de uma complexa rede de laranjas. O sistema de regulamentação permissivo relativo a estas cabeças de ponte offshore da evasão fiscal evoluiu para um ponto que permite a investidores americanos, japoneses, brasileiros ou europeus - “democraticamente”, sem distinção de nacionalidade - livrarem-se de impostos e lavarem dinheiro. Para isso, são contratados escritórios de advogados e contabilistas nesses paraísos, especializados em camuflar a origem do dinheiro. O sistema institucional de “sigilo bancário” dos paraísos offshore garantem a não-identificação das operações. Esta grana roubada de empresas nacionais e/ou estatais (ou “apenas” sonegada), como agora se vê todos os dias na televisão, financia uma porção substancial tanto do déficit da balança de pagamentos do Brasil quanto dos EUA, quando os dinheiros localizados nos paraísos fiscais passam a comprar os bônus e os títulos dos tesouros desses países. Ou seja, são os rentistas nacionais ou estrangeiros que detêm e especulam com nossa dívida pública, que representa aproximadamente 39,08% do Orçamento da federal e que tantos sacrifícios nos impõem.

Foto: O Globo

Michel Hudson explica: os recursos desviados pelos "reformadores" neoliberais e cleptocratas tupiniquins “transformam-se nos famosos capitais voláteis que permitem beneficiar ladrões, traficantes e terroristas do mundo todo e, de lambuja, beneficiam as corporações transnacionais, que evadem impostos por toda a parte, incluindo os próprios Estados Unidos. É este o efeito maior do que os ingênuos de plantão chamam de ´globalização`”.

O mais impressionante disso é a constatação de que a maior parte dos detentores de liquidez na sociedade de hoje são criminosos e sonegadores fiscais. Mas há também os inúmeros neobilionários que surgem por aí (mas esta é uma outra história). Eles têm uma boa razão para evitar o imobiliário ou outras propriedades tangíveis. É demasiado visível para acusadores e autoridades fiscais. É por isso que as estatísticas de balança de pagamentos classificam os movimentos de capital como "invisíveis". Segundo Hudson, importante firmas de contabilidade e parceiros legais ocupam-se em inventar truques para evitar impostos e criar um "véu de camadas” ("veil of tiers") de intermediários para proporcionar um manto de invisibilidade para a riqueza acumulada por desfalcadores, evasores fiscais, traficantes de droga, traficantes de armas, traficantes de seres humanos e agências de inteligência do governo norte-americano, da China, da Rússia e de Israel, para utilização nas suas operações encobertas.

No fim da década de 1980, administradores de dinheiro americanos estavam incorporando fundos mútuos offshore para penetrar ainda mais nos mercados globais de capitais. Os maiores investidores foram políticos bem informados do Terceiro Mundo, como o Chicago Boy que atualmente dirige a economia brasileira, que compraram o fundo sabendo que os seus bancos centrais pagariam as suas dívidas em dólar, apesar dos altos riscos. Enquanto estes oligarcas legais apareciam nas estatísticas dos seus países como "credores de dólares", “investimentos diretos estrangeiros”, ingênuos internos culpavam apenas os ianques, o FMI, o Banco Mundial e banqueiros britânicos por aplicarem austeridade financeira aos países em desenvolvimento e seus próprios países para a garantia dos lucros dos especuladores. Segundo ainda Hudson, ainda que a dívida em dólar da Argentina no princípio da década de 1990 fosse possuída principalmente por argentinos, a operarem do estrangeiro, a partir de centros bancários offshore, os maiores beneficiários do serviço da dívida externa não foram nem europeus nem norte-americanos, mas os próprios capitalistas voláteis argentinos, não possuidores de títulos na América do Norte e nem na Europa. E o mesmo vem acontecendo com o Brasil há muito tempo.

Hudson avisa que, para a Argentina ou para o Brasil, um "estrangeiro" era provavelmente um oligarca local a operar de uma conta offshore invisível para o seu governo (o qual era constituído em grande parte por suas próprias famílias). Pode-se encontrar o mesmo fenômeno na Rússia de hoje, segundo Hudson, onde um "investidor estrangeiro" tende a ser um russo com uma conta offshore a operar a partir de Chipre, da Suíça ou do Lichtenstein, talvez em parceria com um americano ou outro estrangeiro para camuflagem política.

E é para atrair esse dinheiro que os últimos “governos” apátridas no Brasil vêm impondo apertos financeiros inomináveis aos que verdadeiramente produzem e pagam impostos no Brasil. A verdade é que esse dinheiro corrupto e corruptor, que nasce no bojo da própria política econômica dependente e assassina, vem colocando o Brasil de joelhos há bastante tempo. Por isso, quase toda a mídia esteja tão preocupada em “blindar” a política econômica diante das revelações sobre as transações petistas, tucanas ou de Paulo Guedes e Bob Filds. Talvez com medo de que a farra acabe, pois não são poucas as notícias de que grandes veículos de comunicação se aproveitam da estratégia. Também não é novidade nenhuma que são essas fontes obscuras que pagam as caras campanhas eleitorais de maus políticos.

Não é por outro motivo que figurinhas como aqueles que estavam sendo investigados na CPI do Banestado, ou as operações de Marcos Valério e do PT, ou na atual CPI da Pandemia, juntamente com os traficantes, os cleptocratas de todos os matizes, os terroristas, os ladrões, etc., são, ao mesmo tempo e contraditoriamente, os homens que roubam as riquezas do Brasil, lavam seus botins nos paraísos fiscais e nos emprestam para que paguemos depois as nossas dívidas interna e externa com juros estratosféricos, impostos por quem? Sim. O Ministro da economia e o presidente do BC, com respaldo do COPOM. Ou seja, a atração dos tais investimentos estrangeiros, que FHC, Lula e Bolsonaro tanto defendem e em nome do qual tanta privação nos é imposta, não passa de nosso próprio dinheiro, que nos é roubado. É brincadeira!!!

(*)Said Barbosa Dib é analista político e professor de História em Brasília



terça-feira, 14 de setembro de 2021

Manifestações de 7 de setembro: Bolsonaro errou na forma, não no conteúdo

Foto: Veja
De como e por que a forma de escolha de ministros do Supremo deveria ser mudada

Por Said Barbosa Dib, analista político em Brasília

Logo após sua aparente vitória política nas manifestações de 7 de setembro contra do STF, Bolsonaro teve que colocar o rabinho entre as pernas. Suas bravatas antidemocráticas foram deixadas de lado e o presidente passou a falar fino. Demonstrou ser politicamente frágil e desmoralizou-se. Teve que contar com a ajuda de um ex-presidente que saiu do governo respondendo vários inquéritos e com 84,5% de desaprovação. O capitão conseguiu desagradar até seus seguidores mais fiéis e radicais.

É óbvio que o presidente errou feio na forma vil e destrambelhada com que atacou o Supremo. No conteúdo, talvez não. Os excessos e erros jurídicos e os protagonismos político-ideológicos dos membros da instituição nas últimas décadas são óbvios (conferir entrevista de Ives Gandra Martins sobre o assunto, clicando aqui). Sem entrar na discussão sobre quais os pecados dos ministros do Supremo, fica a constatação de que é, sim, imperioso que haja mudanças na forma pela qual os membros da Suprema Corte são escolhidos. Pelo menos as trapalhadas de Bolsonaro tiveram este mérito. Ampliou o debate sobre a necessidade de reforma do Supremo.

Em maio de 2015, a Consultoria Legislativa do Senado produziu excelente estudo mostrando que o modelo de escolha para STF era imperfeito e dando sugestões importantes. No estudo, o consultor legislativo Roberto da Silva Ribeiro, da área de Direito Constitucional, compara os modelos de indicação às supremas cortes de diversos países ao do Brasil. Descreve os modelos alemão, espanhol, norte-americano, canadense, espanhol, francês, italiano e português, para concluir que o modelo brasileiro é “eminentemente político”, o que “pode acarretar em indesejável ligação entre o STF e o presidente da República, caso o Senado não exerça de forma efetiva a sabatina dos indicados”. Roberto da Silva Ribeiro lembrava que cortes constitucionais são também políticas, sendo que seus membros por vezes devem adotar posições políticas. Por isso, o processo de escolha dos membros das supremas cortes deve seguir também "princípios democráticos e republicanos", “não apenas técnicos”. Ele mostra que o modelo brasileiro é adaptação do adotado pelos Estados Unidos, mas que, no Brasil, o formato é chamado de “arcaico e potencialmente gerador de crises políticas”. “Argumenta-se pela existência de um excessivo personalismo na escolha, privativa do Presidente da República, além da ausência de participação efetiva dos demais Poderes nesse processo.”. O texto de Roberto também apresenta alternativas. Mostra relação de propostas de emenda à Constituição que já estão tramitando no Congresso e que, no entendimento do autor, “assegurariam a participação dos três Poderes no processo de escolha dos ministros do STF, além de estipular um mandato fixo para os membros do tribunal”. Para conferir o estudo, clique aqui.

Queria que alguém mais informado e esclarecido me esclarecesse o seguinte: se o atilado Bolsonaro tem realmente convicção dos erros e malfeitos do STF, se realmente crê que o STF como está é causa primeira das desgraças que assolam o País, qual o motivo de ainda não ter mandado uma PEC – Projeto de Emenda Constitucional – modificando radicalmente a forma de requisitos, escolha, indicação, sabatinação e posse dos ministros do STF? Os acordos recentes com o dito “Centrão” lhe dão votos suficientes para isso. É só liberar algumas emendinhas e cargos. Ao invés de se humilhar perante a opinião pública e o ministro Alexandre de Moraes, poderia se “vingar” enviando a PEC para análise do Congresso imediatamente. O Brasil agradeceria e ele recuperaria alguma honra perante seus seguidores. A discussão, votação e aprovação em cada Casa do Congresso Nacional se dá em dois turnos, em ambas as Casas, com o mínimo de três quintos dos votos dos membros de cada uma delas (art. 60, § 2º), isto é, 308 deputados e 49 senadores. Será que nenhum assessor do presidente lhe sugeriu esta alternativa? Fica a sugestão...

quarta-feira, 11 de agosto de 2021

Bolsonaro e a Marcha da Insensatez

 

Foto: Valor Econômico/Globo

“Honra é a força que nos impele a prestigiar nossa personalidade. É o sentimento avançado do nosso patrimônio moral, um misto de brio e de valor. Ela exige a posse da perfeita compreensão do que é justo, nobre e respeitável, para elevação da nossa dignidade; a bravura para desafrontar perigos de toda ordem, na defesa da verdade, do direito e da justiça.”

Joaquim Marques Lisboa – Patrono da Marinha (Alm. Tamandaré)

Por Said Barbosa Dib

O desfile de blindados, acompanhado de voos rasantes pela Esplanada dos Ministérios, em Brasília, nesta terça-feira (10/08), foi mais um passo no processo de desconstrução das instituições democráticas. A Marinha do Brasil, a gloriosa Marinha de Tamandaré, a Marinha da Batalha Naval do Riachuelo, foi escancarada e desavergonhadamente usada por Bolsonaro para pressionar o Congresso Nacional em dia de votação polêmica sobre o voto impresso, matéria de interesse casuístico do presidente. Partidos repudiaram a tentativa de constrangimento, os veículos de comunicação protestaram, diplomatas estrangeiros em Brasília ficaram atentos e lideranças da República temem o pior. Entre os membros das Forças Armadas, a maioria quase esmagadora repudiou a falta de escrúpulos daquele que ocupa o Planalto.

Muitos compararam nas redes sociais o fato lamentável com a famosa “Marcha sobre Roma”, quando os fascistas caminharam sobre a Cidade Eterna, em 28 de outubro de 1922, para forçar o rei da Itália, Vitor Emanuel III, a fazer de Mussolini o primeiro-ministro, dando início ao processo de institucionalização do fascismo no país. As consequências, todos sabemos. A subida dos fascistas ao poder, no entanto, não aconteceu pela força ou pelo golpe, mas pela estratégia política de pressão de longo prazo e dentro das regras constitucionais então vigentes. Por pior que seja, Mussolini atuou, pelo menos, “dentro do quadrado da constituição” da Itália de então. Mussolini chegou ao poder com apoio das instituições da monarquia italiana, tendo grande apoio da Igreja Católica, dos industriais, das classes médias, além da massa de trabalhadores desassistidos. Havia grande medo da difusão do socialismo. Amplos setores viam no fascismo a solução para enfrentar a grave crise econômica da Itália e o perigo comunista. A violência dos chamados “camisas negras”, milícias fascistas, era vista com condescendência pelas autoridades italianas. Começavam a surgir demandas por um governo de força na Itália.

Quando os fascistas encaminharam-se para Roma, Luigi Facta, o então primeiro-ministro da Itália, pediu ao rei autorização para decretar estado de emergência e usar o exército para reprimir os fascistas. O rei Vitor Emanuel III recusou-se a autorizar, forçou a demissão de Luigi Facta e convocou Mussolini para ser primeiro-ministro. Após a nomeação de Mussolini, os fascistas entraram triunfalmente em Roma, consolidando um processo que já vinha de longe. Por incrível que pareça, a nomeação de Mussolini foi, portanto, ato constitucional e dentro do que a lei italiana permitia.

Diferente de Mussolini, o seu arremedo, Bolsonaro, usou as Forças Armadas para fazer política rasteira, não para atender aos interesses das massas, não para um programa claramente de direita que acreditasse realmente em ideias de um Estado forte, mas para interesses pessoais e eleitoreiros. A movimentação de tropas envolve imensos gastos para o Erário Público não para servir de milícia para golpistas de plantão, não para interesses mesquinhos, mas para se garantir a Segurança Nacional contra inimigos externos na defensa da Pátria e garantir as instituições do Estado brasileiro, os poderes constituídos, a lei e a ordem social. As Forças Armadas não foram criadas para fazer política partidária ou eleitoral. Embora apoiado por um punhado de terroristas digitais, gangues, milicianos criminosos, fanáticos radicais e por uma parcela da classe média desiludida, Bolsonaro, ao contrário de Mussolini, não tem base orgânica de apoio nas massas. Ele conseguiu, eticamente, ser pior do que Mussolini. Os fascistas pressionaram e conseguiram o que desejavam, mas não deram um golpe, nem usaram as forças armadas da monarquia italiana para chegarem ao poder, como está fazendo Bolsonaro com nossas Forças. Mussolini não usou a máquina do Estado para dar um golpe. Bolsonaro, sim.

E Bolsonaro, por outro lado, faz isso com discurso “patriota” roubado dos verdadeiros militares. Militares honrados do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, que, durante a 2ª Guerra Mundial (1939-45), lutaram contra o nazi-fascismo e pela democracia, com patriotismo e bravura. Este presidente incrustado no Planalto não merece e não pode ser considerado um militar, muito menos um patriota. Os verdadeiros militares deveriam menosprezá-lo e repudiar tudo que ele representa e fala. Bolsonaro foi expulso do Exército por insubordinação, desrespeitou o Exército da Caxias no passado e, agora, faz o mesmo com a Marinha de Tamandaré. Coisa inadmissível!!!


Ele também não tem o direito de falar em patriotismo. Patriotismo travestido de patriotada torna-se ruim e destrutivo quando é usado apenas nas soluções para crises agudas, não como prática constante e saudável de valorização cidadã do que nos pertence e do que amamos: nós mesmos, brasileiros, nossos imensos recursos, nossos valores, nossos cidadãos, nossa História. A patriotada desesperada e pragmática, engendrada em momentos de crise, se manifesta como “estado febril e tardio do patriotismo”, como dizia o padre Fernando Bastos de Ávila. Por isso mesmo, corre-se o perigo de se tornar, quando a situação apresenta-se insuportável, algo de chauvinismo, de xenofobia, de intolerância e de terror. A patriotada, seja de um Lula da Silva ou de um Bolsonaro da vida, pode ser ruína para todos. Patriotismo verdadeiro, ao contrário, é sempre positivo. Não visa a vantagens pessoais nem aos descaminhos da intolerância. Que os membros valorosos das Forças Armadas do Brasil lembrem-se disso, principalmente daqui a pouco quando os conflitos estimulados por Bolsonaro ficarem mais agudos e ameaçadores... É isso...

sexta-feira, 9 de julho de 2021

Geraldo Luís Lino*: “Hamilton e Vargas, memórias de dois estadistas”


No momento em que o nacionalismo econômico ressurge com vigor, como parte do esforço para a superação do desastre “globalista”, é extremamente simbólico que tenham coincidido as celebrações das mortes de dois grandes estadistas que mudaram os rumos da história dos EUA e do Brasil: o bicentenário da de Alexander Hamilton, em 12 de julho, e os 50 anos da de Getúlio Vargas, em 24 de agosto.

Alexander Hamilton (1755-1804) foi assim descrito por um contemporâneo, o célebre estadista francês Talleyrand: “Eu considero Napoleão, Fox e Hamilton os três maiores homens de nossa época e, se fosse forçado a decidir entre os três, daria sem hesitação o primeiro lugar a Hamilton.”

Seu mais recente biógrafo, Ron Chernow, resumiu sua trajetória num artigo publicado no New York Times de 11 de julho: “Começando como um escriturário adolescente no Caribe, filho ilegítimo e abandonado pelo pai, ele podia parecer destinado à obscuridade. Então, os mercadores locais de St. Croix, reconhecendo os seus enormes talentos, pagaram-lhe a educação no King’s College (depois Columbia), na Baixa Manhattan. Depois de servir como capitão numa companhia de artilharia, esse menino-prodígio cresceu miraculosamente para tornar-se ajudante-de-ordens de George Washington, um herói de guerra em Yorktown, um deputado no pós-guerra, um delegado na Convenção Constitucional, a luz orientadora dos artigos do Federalista e, aos 34 anos, o primeiro secretário do Tesouro. Neste posto, ele supervisionou um departamento maior que o resto do Governo combinado, deixando um espantoso legado. Ele restaurou o crédito público em uma nação arruinada pela dívida de guerra, elaborou os primeiros sistemas de impostos, orçamento e contabilidade, instalou o serviço alfandegário e a Guarda Costeira e concebeu o primeiro banco central. Ao mesmo tempo, como o principal divulgador da nova Constituição – ele compôs 51 dos 85 artigos do Federalista –, converteu a nova carta, de um pergaminho morto em vida vicejante.”

Em uma única frase, poder-se-ia dizer que Hamilton foi o principal mentor das diretrizes de política econômica e financeira e, em grande medida, institucionais, que possibilitariam a extraordinária ascensão dos Estados Unidos da América, da condição de ex-colônia recém-liberta, mas afogada em dívidas e incertezas, para, já nas décadas finais do século XIX, despontar como a maior potência industrial e econômica do planeta. Acima de tudo, ele foi um campeão da idéia revolucionária de estabelecer um Governo poderoso para colocá-lo a serviço do bem-estar geral (general welfare) ou bem comum. Como primeiro secretário do Tesouro de George Washington, empenhou-se em: renegociar a dívida de guerra da União e dos estados, convertendo-a em títulos de longo prazo; estabelecer as bases do crédito nacional, com a criação do primeiro Banco dos Estados Unidos (no qual o Governo Federal detinha um quinto das ações); promover e proteger a indústria nacional; e incentivar a ação do Governo Federal no melhoramento dos transportes, especialmente a navegação.

Tais conceitos, que configuram o que viria a conhecer-se como Sistema Nacional ou Sistema Americano de economia política, seriam emulados e aprimorados por virtualmente todos os países industrializados. No Brasil, o “gênio de Hamilton, a maior capacidade de organização entre os construtores da república anglo-americana”, como escreveu no Relatório do Ministro da Fazenda (1891), foi a principal inspiração da política industrialista de Rui Barbosa em sua breve permanência no primeiro gabinete da República. Desafortunadamente, a revolução industrial e econômica com que Rui sonhava colocar o Brasil no mundo moderno ainda teria que aguardar quatro décadas, pela chegada do outro gigante celebrado, Getúlio Vargas.

Getúlio Vargas (1882-1954) dividiu a História do Brasil em antes e depois dele. A odisséia da transformação do Brasil em uma nação sintonizada com o século XX e suas perspectivas de progresso começa com a sua chegada ao poder à cabeça da Revolução de 1930, passando pelas iniciativas institucionais e econômicas promovidas em seus dois períodos de governo. Nelas se incluem o voto feminino, a legislação trabalhista, a Previdência Social (inspirada na Doutrina Social da Igreja Católica) e as grandes empresas estatais criadas para estabelecer a infra-estrutura econômica necessária aos avanços pretendidos, como a Cia. Siderúrgica Nacional, a Cia. Vale do Rio Doce, a Cia. Nacional de Álcalis, a Petrobrás, a Eletrobrás, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e outras.

Enfim, pode ser considerado o fundador do moderno Estado nacional brasileiro. Afinal, foi com ele que os brasileiros se identificaram pela primeira vez com o conceito de uma Nação capaz de caminhar com suas próprias pernas e se inserir no cenário mundial sem o complexo de inferioridade e subserviência historicamente prevalecentes entre as classes dirigentes do País. Como afirmou na Folha de S. Paulo de 22 de agosto o presidente do BNDES, Carlos Lessa, “ele inventou nossa autoestima no plano político. Ele nos fez acreditar em nossa própria capacidade de construir. Cumpriu o enunciado de Fernando Pessoa: ‘Tudo vale a pena, se a alma não é pequena.’”

“Junto com a autoestima, aprendemos de Vargas o sentido da nacionalidade. Deixamos de nos envergonhar de nossa realidade para querer transformá-la segundo as nossas próprias utopias. Tomamos, sim, consciência do nosso atraso em muitos aspectos, desde o campo industrial ao campo institucional. Mas aceitamos o desafio de construir uma nação que se respeita e se reconhece em instituições vivas, participativas, sócias do desenvolvimento material e espiritual do país. Sem chauvinismo, aprendemos a valorizar o que é nosso, nossas memórias e os legados dos nossos antepassados”, enfatiza Lessa.

Hamilton e Vargas têm outro traço em comum: ambos inspiraram o New Deal, as audaciosas políticas dirigistas com que outro gigante do estadismo, o presidente Franklin Roosevelt, começou a tirar os EUA do atoleiro da Grande Depressão da década de 1930. Roosevelt era admirador de Hamilton desde a juventude, tendo lhe dedicado a sua dissertação de graduação em Harvard. Além disto, também tinha uma admiração confessa por Vargas, tendo lhe atribuído publicamente parte da inspiração para o New Deal, como revela o jornalista José Augusto Ribeiro em sua biografia de Getúlio. Não por acaso, foi a época mais positiva e modelar das relações dos EUA, não apenas com o Brasil, mas toda a Ibero-América.

Como ocorreu com Hamilton – e com Roosevelt –, Vargas e seu legado foram e têm sido ferozmente combatidos por oligarcas e “cosmopolitas” que vêem no Estado um mero instrumento de interesses corporativos e, na economia, um campo de caça para a ação dos “setores mais dinâmicos do capitalismo”, como dizia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que assumiu o Governo prometendo enterrar a “era Vargas”. Por isso, não deixa de ser uma ironia da História que as memórias desses gigantes estejam sendo reerguidas nessa luta mundial pela reconciliação entre as políticas de Estado e o princípio do Bem Comum, para desgosto de seus detratores e inspiração permanente dos verdadeiros republicanos.

* O geólogo Geraldo Luís Lino é autor do livro "A fraude do aquecimento global: como um fenômeno natural foi convertido numa falsa emergência mundial"

Publicado em Solidariedade Ibero-americana, Vol. XI, no. 5, 1a. quinzena de setembro de 2004.