sexta-feira, 9 de julho de 2021

Geraldo Luís Lino*: “Hamilton e Vargas, memórias de dois estadistas”


No momento em que o nacionalismo econômico ressurge com vigor, como parte do esforço para a superação do desastre “globalista”, é extremamente simbólico que tenham coincidido as celebrações das mortes de dois grandes estadistas que mudaram os rumos da história dos EUA e do Brasil: o bicentenário da de Alexander Hamilton, em 12 de julho, e os 50 anos da de Getúlio Vargas, em 24 de agosto.

Alexander Hamilton (1755-1804) foi assim descrito por um contemporâneo, o célebre estadista francês Talleyrand: “Eu considero Napoleão, Fox e Hamilton os três maiores homens de nossa época e, se fosse forçado a decidir entre os três, daria sem hesitação o primeiro lugar a Hamilton.”

Seu mais recente biógrafo, Ron Chernow, resumiu sua trajetória num artigo publicado no New York Times de 11 de julho: “Começando como um escriturário adolescente no Caribe, filho ilegítimo e abandonado pelo pai, ele podia parecer destinado à obscuridade. Então, os mercadores locais de St. Croix, reconhecendo os seus enormes talentos, pagaram-lhe a educação no King’s College (depois Columbia), na Baixa Manhattan. Depois de servir como capitão numa companhia de artilharia, esse menino-prodígio cresceu miraculosamente para tornar-se ajudante-de-ordens de George Washington, um herói de guerra em Yorktown, um deputado no pós-guerra, um delegado na Convenção Constitucional, a luz orientadora dos artigos do Federalista e, aos 34 anos, o primeiro secretário do Tesouro. Neste posto, ele supervisionou um departamento maior que o resto do Governo combinado, deixando um espantoso legado. Ele restaurou o crédito público em uma nação arruinada pela dívida de guerra, elaborou os primeiros sistemas de impostos, orçamento e contabilidade, instalou o serviço alfandegário e a Guarda Costeira e concebeu o primeiro banco central. Ao mesmo tempo, como o principal divulgador da nova Constituição – ele compôs 51 dos 85 artigos do Federalista –, converteu a nova carta, de um pergaminho morto em vida vicejante.”

Em uma única frase, poder-se-ia dizer que Hamilton foi o principal mentor das diretrizes de política econômica e financeira e, em grande medida, institucionais, que possibilitariam a extraordinária ascensão dos Estados Unidos da América, da condição de ex-colônia recém-liberta, mas afogada em dívidas e incertezas, para, já nas décadas finais do século XIX, despontar como a maior potência industrial e econômica do planeta. Acima de tudo, ele foi um campeão da idéia revolucionária de estabelecer um Governo poderoso para colocá-lo a serviço do bem-estar geral (general welfare) ou bem comum. Como primeiro secretário do Tesouro de George Washington, empenhou-se em: renegociar a dívida de guerra da União e dos estados, convertendo-a em títulos de longo prazo; estabelecer as bases do crédito nacional, com a criação do primeiro Banco dos Estados Unidos (no qual o Governo Federal detinha um quinto das ações); promover e proteger a indústria nacional; e incentivar a ação do Governo Federal no melhoramento dos transportes, especialmente a navegação.

Tais conceitos, que configuram o que viria a conhecer-se como Sistema Nacional ou Sistema Americano de economia política, seriam emulados e aprimorados por virtualmente todos os países industrializados. No Brasil, o “gênio de Hamilton, a maior capacidade de organização entre os construtores da república anglo-americana”, como escreveu no Relatório do Ministro da Fazenda (1891), foi a principal inspiração da política industrialista de Rui Barbosa em sua breve permanência no primeiro gabinete da República. Desafortunadamente, a revolução industrial e econômica com que Rui sonhava colocar o Brasil no mundo moderno ainda teria que aguardar quatro décadas, pela chegada do outro gigante celebrado, Getúlio Vargas.

Getúlio Vargas (1882-1954) dividiu a História do Brasil em antes e depois dele. A odisséia da transformação do Brasil em uma nação sintonizada com o século XX e suas perspectivas de progresso começa com a sua chegada ao poder à cabeça da Revolução de 1930, passando pelas iniciativas institucionais e econômicas promovidas em seus dois períodos de governo. Nelas se incluem o voto feminino, a legislação trabalhista, a Previdência Social (inspirada na Doutrina Social da Igreja Católica) e as grandes empresas estatais criadas para estabelecer a infra-estrutura econômica necessária aos avanços pretendidos, como a Cia. Siderúrgica Nacional, a Cia. Vale do Rio Doce, a Cia. Nacional de Álcalis, a Petrobrás, a Eletrobrás, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e outras.

Enfim, pode ser considerado o fundador do moderno Estado nacional brasileiro. Afinal, foi com ele que os brasileiros se identificaram pela primeira vez com o conceito de uma Nação capaz de caminhar com suas próprias pernas e se inserir no cenário mundial sem o complexo de inferioridade e subserviência historicamente prevalecentes entre as classes dirigentes do País. Como afirmou na Folha de S. Paulo de 22 de agosto o presidente do BNDES, Carlos Lessa, “ele inventou nossa autoestima no plano político. Ele nos fez acreditar em nossa própria capacidade de construir. Cumpriu o enunciado de Fernando Pessoa: ‘Tudo vale a pena, se a alma não é pequena.’”

“Junto com a autoestima, aprendemos de Vargas o sentido da nacionalidade. Deixamos de nos envergonhar de nossa realidade para querer transformá-la segundo as nossas próprias utopias. Tomamos, sim, consciência do nosso atraso em muitos aspectos, desde o campo industrial ao campo institucional. Mas aceitamos o desafio de construir uma nação que se respeita e se reconhece em instituições vivas, participativas, sócias do desenvolvimento material e espiritual do país. Sem chauvinismo, aprendemos a valorizar o que é nosso, nossas memórias e os legados dos nossos antepassados”, enfatiza Lessa.

Hamilton e Vargas têm outro traço em comum: ambos inspiraram o New Deal, as audaciosas políticas dirigistas com que outro gigante do estadismo, o presidente Franklin Roosevelt, começou a tirar os EUA do atoleiro da Grande Depressão da década de 1930. Roosevelt era admirador de Hamilton desde a juventude, tendo lhe dedicado a sua dissertação de graduação em Harvard. Além disto, também tinha uma admiração confessa por Vargas, tendo lhe atribuído publicamente parte da inspiração para o New Deal, como revela o jornalista José Augusto Ribeiro em sua biografia de Getúlio. Não por acaso, foi a época mais positiva e modelar das relações dos EUA, não apenas com o Brasil, mas toda a Ibero-América.

Como ocorreu com Hamilton – e com Roosevelt –, Vargas e seu legado foram e têm sido ferozmente combatidos por oligarcas e “cosmopolitas” que vêem no Estado um mero instrumento de interesses corporativos e, na economia, um campo de caça para a ação dos “setores mais dinâmicos do capitalismo”, como dizia o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, que assumiu o Governo prometendo enterrar a “era Vargas”. Por isso, não deixa de ser uma ironia da História que as memórias desses gigantes estejam sendo reerguidas nessa luta mundial pela reconciliação entre as políticas de Estado e o princípio do Bem Comum, para desgosto de seus detratores e inspiração permanente dos verdadeiros republicanos.

* O geólogo Geraldo Luís Lino é autor do livro "A fraude do aquecimento global: como um fenômeno natural foi convertido numa falsa emergência mundial"

Publicado em Solidariedade Ibero-americana, Vol. XI, no. 5, 1a. quinzena de setembro de 2004.