Por George de Cerqueira Leite Zarur*
A etnicidade tem sido a causa dos maiores tragédias da humanidade e é com enorme apreensão que assisto à introdução de políticas raciais no Brasil. Tenho boas razões para ter dedicado minha vida ao estudo da etnicidade, pois consta que meus bisavós paternos, cristãos libaneses, teriam sido assassinados por soldados turcos em um pogrom contra sua pequena aldeia. Assim como meu avós, árabes cristãos e mulçumanos, judeus, ciganos, armênios e muitas outras vítimas do horror étnico se abrigaram no Brasil. Outros fugiam da servidão feudal, caso de muitos italianos, ou da extrema pobreza, como aconteceu com os portugueses. Aqui se casaram, se amorenaram e o turco Nassib conheceu sua Gabriela. Procuro interpretar o sentimento de todos os filhos, netos e bisnetos desses deserdados da terra, povos que ninguém queria, que em nosso País encontraram abrigo e paz. Tenho no pensamento, os pobres de todas as origens e cores de pele que cederão seus empregos e as oportunidades de educação de seus filhos a outros nem sempre tão pobres. Lembro, em especial, os sertanejos nordestinos.
A lealdade aos índios com quem convivi é outro motivo para me preocupar com a política da raça. A antropologia ética tem sempre combatido o conceito de raça. Darcy Ribeiro escreveu, em 1957, o artigo “Línguas e Culturas Indígenas do Brasil” onde formula sua seminal definição de “índio”, até hoje presente na legislação. Para Ribeiro, “Índio” é um indivíduo reconhecido como participante de uma comunidade de origem pré-colombiana e considerado como tal pela sociedade envolvente. O núcleo da definição é a relação do indivíduo com uma dada comunidade. Ficam de fora, os milhões de descendentes de índios com fisionomia indígena e, uma vez participantes de uma comunidade de origem pré-colombiana, existirão índios descendentes de europeus, de negros ou mestiços. Desta forma, Ribeiro evitou a aparência ou a “raça”, a biologia popular, para definir um “índio.
Do ponto de vista da definição de Darcy Ribeiro e da melhor tradição em antropologia não se pode distinguir as pessoas pela aparência ou pela raça, do que se deduz que não se aplica, neste caso, a regra de se tratar desigualmente os desiguais, pois seres humanos pretos, brancos ou quaisquer outros não são desiguais. O “tratar desigualmente os desiguais”, legítimo quando se aplica a mulheres ou deficientes físicos, se usado para justificar políticas raciais cai na vala comum do modismo do “juridicamente correto”, a versão forense do “politicamente correto”. A expressão “discriminação positiva” representa uma contradição em termos. É o mesmo que falar em “crueldade positiva” ou em “tortura positiva”. Toda discriminação é negativa. O crime do racismo se combate é com leis penais, não com mais crime de racismo agravado pela co-autoria do Estado que deveria coibi-lo! Se negros e pardos são a maioria dentre os pobres, serão eles os maiores beneficiários de políticas sociais de combate à pobreza que atinjam a todos os brasileiros, sem a necessidade da introdução do racismo travestido de política pública. Boas escolas públicas e cotas sociais, não cotas raciais, é que democratizam o acesso à educação superior.
Para que haja políticas raciais, as diferenças étnicas devem ter expressão demográfica. Por manipulação estatística, a população negra foi multiplicada por dez no Brasil, que, fica rachado ao meio entre negros e brancos. No censo de população, aos cinco por cento dos autodeclarados “negros” foram indevidamente agregados à dita “população negra”, os quarenta e cinco por cento dos autodeclarados “pardos”, que não são “negros”, mas, na verdade, mestiços. Transformam-se em afrodescendentes, quando, na verdade, são “afro”, “euro”, “asio” e “indiodescendentes”. Por isto, as estatísticas étnicas governamentais brasileiras não merecem credibilidade.
Como resultado deste critério demográfico, os índios vêem negada sua expressiva contribuição à formação do povo brasileiro. Trata-se de um “mestiçocídio” e de um “índiocídio” simbólicos. Por isto, este velho indigenista lamenta profundamente que a FUNAI traia os povos indígenas ao advogar a racialização do Brasil, por meio do sistema de cotas.
A identidade étnica forçada, imposta, ironicamente, por meio do chamado “Decreto dos Direitos Humanos” e pelo chamado “Estatuto da Igualdade Racial” representa uma brutalidade contra a diversidade e a liberdade, pois, nas democracias, as pessoas têm o direito de assumir as identidades étnicas, de gênero, políticas ou religiosas e outras que escolherem.
Ao fazer meu PhD nos Estados Unidos, fui o primeiro antropólogo latino-americano a realizar trabalho de campo naquele país e o único brasileiro, até o presente, a estudar o conflito entre negros e brancos americanos in situ. Meu estudo sobre cotas raciais em escolas começou em 1972, no gueto negro da cidade de Gainesville, na Florida. Um amigo negro envolveu-se em uma briga com brancos e, dias depois, foi assassinado. Em 1974, fui estudar uma comunidade branca no Golfo do México. Descobri que ali ocorrera um massacre de negros patrocinado pela KuKluxKlan. O massacre de Rosewood, que denunciei, transformou-se em filme com conhecidos atores como John Voigt, de “Midnight Cowboy”. Lembro-me do alívio que senti ao retornar ao Brasil. Aqui não existia a segregação que induz ao ódio, a assassinatos e massacres raciais. Qual não foi, então, meu espanto ao me deparar, recentemente, com um prédio na Universidade de Brasília anunciado por uma enorme placa “Centro de Convivência Negra”, um verdadeiro monumento à segregação!
Conflitos étnicos são estimulados por colonialistas europeus e norte-americanos. Em recentes reuniões da American Anthropological Association, a questão central consistiu no intenso emprego de antropólogos em unidades do exército norte-americano no Iraque e no Afeganistão, com o fim de dividir as populações locais. O racialismo no Brasil resulta de décadas de investimento financeiro maciço de fundações norte-americanas em ONGs e movimentos sociais. Responde a premissas básicas da cultura norte-americana e a interesses políticos dos Estados Unidos. Fere a identidade nacional brasileira e resgata a norte-americana, pois enquanto a nossa mestiçagem é condenada, o universalmente repudiado “separated but equal” segregacionista é promovido a virtude democrática. Trata-se de um processo, como o descrito por teóricos anticolonialistas como Franz Fannon, em que os colonizados passam a se ver através dos olhos colonizador, consideram-se inferiores, rejeitam sua identidade e pensam e agem como seus modelos europeus e norte-americanos.
Outro argumento esgrimido a favor de cotas raciais é o da reparação histórica devido à opressão dos negros ao longo dos séculos.
Mestiço com muito orgulho declaro não sentir a menor culpa pelo fato de minha bisavó materna de pele mais clara ter, talvez, maltratado minha outra bisavó materna de pele mais escura. Além disto, ninguém pode ser considerado culpado por supostos crimes cometidos por seus antepassados.
Porém, a associação entre culpa, dívida de sangue e reparação material, estranha a nosso Direito, é muito antiga no Direito anglo-germânico como demonstra o instituto do “wergeld”. Sua inserção na cultura americana tem, ainda, raízes no fundamentalismo religioso, da mesma forma que o criacionismo na explicação do surgimento dos seres vivos. A reparação pressupõe comunidades endogâmicas, ofensora e ofendida, definidas pelo sangue e pela raça A culpa de uns e o direito à reparação de outros são transmitidos através das gerações, como em várias passagens do Velho Testamento. A vida social torna-se um tenso e permanente processo de negociação de versões de supostos crimes históricos e do custo de sua reparação. É freqüente o recurso à violência, pois, as pessoas se sentem em guerra por uma sagrada causa étnico-nacional.
Os princípios de sangue e raça na definição de comunidades, povos e nações manifestam o jus sanguini como critério de cidadania. A prevalência do jus sanguini, recentemente abolida na Alemanha, foi fonte de enorme sofrimento testemunhado pelo holocausto de judeus, ciganos e eslavos. Os Estados Unidos, país de imigrantes, sempre adotaram o jus solis na definição da nacionalidade em seu sentido mais amplo, mas a discriminação e a segregação de fato derivadas do princípio do sangue continuam a ordenar a vida cotidiana. Direitos civis formalmente iguais e cidadania plena para todos são um conquista recente, mas a aplicação desses direitos ainda faz toda a diferença, pois o jus sanguini, na sua versão consuetudinária tão importante para o Direito Anglo-Saxão, continua a hierarquizar a sociedade americana.
O jus sanguini se manifesta, nos Estados Unidos, na comum referência aos índios como uma “nação”, aos negros como outra e assim, por diante. O conceito de “nação” está associado a etnias contrastantes articuladas pelo mercado econômico, desconfortavelmente submetidas ao mesmo estado. Os negros confinados em guetos constroem a diferença cultural após a herança africana ter desaparecido. Assim, o dialeto negro é ininteligível para os brancos. As igrejas cristãs negras são diferentes das brancas e traduções inglesas do Corão são lidas na comunidade negra.
No Brasil, a herança cultural africana é de todos, como se vê nos terreiros de Umbanda e nas relações de vizinhança. Negros, brancos e mestiços falam o mesmo português e casam entre si. Ainda não se odeiam mutuamente. Seus filhos são considerados “mulatos”, isto é, são negros e brancos ao mesmo tempo, são brasileiros mestiços. Nas favelas e nos bairros co-existem pessoas de todas as tonalidades de pele, embora se multipliquem os guetos mentais das cotas universitárias e alguns miniguetos físicos, como o centro de convivência negra da UNB. Não faz sentido, por isto, usar o direito à diversidade para justificar as cotas raciais.
Logo, o transplante do modelo étnico dual segregacionista norte-americano baseado no jus sanguini encontra dois obstáculos: a ausência de comunidades concretas que lhe sirvam de base e o partilhamento da cultura afro-brasileira por toda a nação. Por isto, mantenho viva a esperança na capacidade de resistência cultural e política do povo brasileiro contra as forças desagregadoras e antinacionais, que representam a maior ameaça atual contra nosso País.
Senhor Ministro, Minhas Senhoras, Meus Senhores, esta Corte não julga apenas o sistema de cotas da UNB, mas a racialização, que despreza a mestiçagem que forjou o povo brasileiro, afronta a dignidade dos cidadãos e fere a unidade nacional!
Muito obrigado!
* George de Cerqueira Leite Zarur é mestre em Antropologia pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de janeiro e Ph.D em Antropologia pela University of Florida.
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