O maior guerreiro da transição
democrática, José Sarney, infelizmente, sofreu mais um pequeno acidente. O
corpo naturalmente enfraquecido pelos seus 86 anos de idade e mais de 60 de dedicação
ao Brasil, já tem dificuldades em suportar a grandeza da alma extraordinariamente
experiente e virtuosa que forjou ao longo da vida. O corpo parece não suportar
mais. Isto é natural e óbvio que aconteceria. É a ordem natural das
coisas. O que não é natural, nem óbvio, nem
cristão, nem humano, é a maneira covarde e imunda com que certos tapados
existenciais, protegidos pelo anonimato covarde das redes sociais, trataram o
acidente, com comentários maldosos e alienados. Sarney merece respeito de todos
nós, pois foi o grande timoneiro da difícil transição democrática brasileira.
Em qualquer outra sociedade civilizada, Sarney seria herói tratado com a
admiração e o respeito necessários. José Sarney é homem de cultura que, além de
acadêmico, foi governador, deputado e senador pelo Maranhão. Presidente da
República em momento delicado para o País, senador do Amapá por três mandatos
consecutivos, presidente do Senado Federal por quatro vezes. São quase 60 anos
de vida pública, sempre eleito, escrevendo a História do Brasil, convivendo com
ataques de adversários e a admiração de amigos.
Trabalhei com ele 13, 14 anos.
Poderia destacar características sobejamente conhecidas da sua personalidade,
como a elegância e a sensibilidade no trato com as pessoas das mais variadas
origens sociais, a memória extraordinária, a hipocondria quase acadêmica, a
sensibilidade nas questões sociais e nacionais, a cultura refinada e a
capacidade de trabalho exaustivo. Ou poderia falar da fina ironia, o bom humor
criativo e a delicadeza e a paciência com que trata os atropelos dos
adversários contra ele. Tenho muito orgulho de tê-lo conhecido. De conviver com
ele. Aprendi muito. Mas quero destacar o essencial que sempre me impressionou:
sua capacidade ímpar em lidar com conflitos, de administrá-los e transformá-los
em força política para o progresso. Parece um judoca que usa a força do
adversário contra ele mesmo. Sem esforço. Para quem conviveu ou compartilhou
momentos delicados do cenário político brasileiro ao lado de Sarney, sabe o
quanto é irritante a paciência com que lida com as mais variadas situações de
conflito. Digo “irritante” porque sou daqueles mais passionais que não têm esta
virtude. Na minha ótica a posição de Sarney tem que ter muito sangue frio e
paciência. Mas, principalmente, Sarney tem arcabouço filosófico patriota,
democrata e cristão bastante sedimentado. E nos dias que correm, em que o que
nos separa parece mais importante do que aquilo que nos une, tempos em que
interesses regionais, de classe, de raça e de gênero, por mais importantes,
parecem suplantar o interesse nacional - a visão de Brasil, o sentimento de
coletividade e de brasilidade -, tais virtudes são decisivas.
O que se tem observado é a
hegemonia sufocante da concepção baseada no “materialismo histórico e
dialético” de Karl Marx, por incrível que isso possa parecer. Ideologia que tem
como princípio maior não a valorização da noção de Estado-nação, o patriotismo
ou a idéia democrática de respeito à ordem pública e à paz social, mas a “luta
de classes”, o conflito. E o que seria uma pretensa fraternidade
internacionalista “proveitosa” para o “proletariado expropriado de todo o
mundo”. Ideologia que vê a democracia representativa como um “anacronismo
burguês”. Assim, quando se analisa historicamente, por exemplo, a capacidade
política da elite brasileira em administrar conflitos, num mundo saturado de
revoluções, guerras, carnificinas e ódios, coloca-se a idéia de “conciliação”,
sempre e a priori, como elemento necessariamente negativo, pois seria contra o
velho princípio marxista do “quando pior melhor”, para que a “revolução” e “a
emancipação dos trabalhadores” sejam viabilizados, portanto, evitando as
rupturas estruturais. Tais concepções, hoje, são, infelizmente, hegemônicas nos
manuais didáticos, tanto do Ensino Fundamental quanto do Médio ou Acadêmico. Se
algum professor se atrever a destacar a capacidade de conciliação de figuras
históricas como Sarney ou Joaquim Nabuco - e da elite política brasileira do
Segundo Reinado, por exemplo -, como muito proveitosa para a Nação, logo será
jogado na fogueira ardente do repúdio ideológico. Não se admite que tal
característica tenha sido muito importante para que mantivéssemos nossa
integridade territorial, a consolidação do Estado brasileiro e para que não nos
tornássemos um mísero Paraguai. Não se considera a importância da capacidade de
um líder como Sarney de administrar a situação explosiva em que a nação se
encontrava no momento da transição democrática. Transição que ainda era ameaçada
por extremismos tanto à esquerda (revanchismo dos esquerdistas) quanto à
direita (“Linha Dura”). Sarney, conciliador, democrata, negociador nato, sempre
foi acusado de ter sido “esteio da ditadura”, assim, sem choro nem vela. Isto
porque Sarney, homem da conciliação e da luta pela união nacional, jamais se
encaixou no estereótipo explosivo do revolucionário marxista. Segundo essa
gente, Sarney teria feito uma coisa “horrível”: evitado o derramamento de
sangue, o retrocesso totalitário ou a revolução. É hora de repensarmos isso.
Sarney merece respeito e o País precisa se repensar. Repensar seus objetivos,
suas prioridades. Precisa se reconciliar e procurar uma identidade. E tudo isso
passa necessariamente pela valorização de nossas referências, nossos ídolos.
Toda nação desenvolvida tem um ponto em comum inquestionável: o respeito,
independente de ideologias e interesses específicos, aos seus líderes e figuras
históricas, vistas sempre como exemplos a serem seguidos. E Sarney é um exemplo
a ser seguido. E deve ser respeitado. Mesmo que saibam que fatores estruturais
- como recursos naturais, posição geográfica ou condições educacionais e
econômicas - tenham influenciado no desenvolvimento de suas sociedades, nenhum dos
grandes países civilizados desconsidera o papel de suas lideranças políticas e
intelectuais. O respeito a estes sempre permeia o “inconsciente coletivo” e
fortalece o sentimento patriótico, por isso, são países desenvolvidos.
No Brasil, país que há anos
patina no grupo dos países “em desenvolvimento”, as elites, justamente porque
são exageradamente impregnadas de concepções estrangeiras pseudocosmopolitas,
têm verdadeira ojeriza a tudo que é nacional, menosprezam nossas realizações,
nossos líderes, nossa História, impedindo que o “Sentimento de Pátria” se
desenvolva como deveria. Como exilados em sua própria terra, geralmente, têm
vergonha de suas próprias origens, tendem a ver o Brasil permeados de valores e
sentimentos importados. Caem no erro de viver a própria História apenas como
apêndice da História das nações hegemônicas. E não conseguem perceber os
benefícios do verdadeiro patriotismo. Por isso, somos uma nação cada dia mais
tutelada por forças estrangeiras. Sarney foi, na época em que alguns românticos
assaltavam bancos e outros torturavam e matavam, durante a ditadura, o homem
que tentava apaziguar os conflitos entre os brasileiros. Como político
experiente, sabia que não seria através da radicalização e do “jogo de cena” de
esquerdistas e direitistas que teríamos uma solução para o estado de exceção,
como a História viria a demonstrar. Justamente por esta característica, mais
tarde, soube enfrentar situação tão difícil como a morte de Tancredo e suas consequências
políticas dentro do processo de redemocratização.
De repente, alçado à frente de um
processo que já vinha sendo negociado, discutido e mediado com cuidado por
Tancredo Neves há anos, teve de assumir compromissos que não eram diretamente
seus, posição de liderança que não esperava e não desejava. Mas, pensando no
País, como agente moderador, Sarney se sacrificou. Enfrentou não somente as
profundas dificuldades socioeconômicas herdadas, mas o perigo constante e
ameaçador das forças antidemocráticas, tanto à esquerda quanto à direita, mas
sempre negociando. Pensador e poeta engajado na luta libertária, na defesa das
instituições democráticas, sempre teve na paciência e na perseverança as suas
maiores virtudes. Virtudes que foram imprescindíveis para enfrentar as
dificuldades que a Fortuna lhe reservaria a partir de abril 1985. A imagem que alguns
setores da imprensa fizeram dele não foi nada honesta. Não havia qualquer clima
favorável ou mesmo compreensão, por parte da mídia, para a necessidade, pelo
menos, de se dar tempo para se construir a governabilidade. Sarney teve que
conquistar esta condição, a despeito da imprensa e dos que se diziam aliados.
Ou seja, só pôde contar consigo mesmo, com boa-fé e sua extraordinária vontade
política. Mas a coisa mais importante - e que a imprensa nunca esclareceu
devidamente - e que, hoje, numa perspectiva histórica mais ampla é possível
visualizar, é o fato de que Sarney acelerou efetivamente o programa de reformas
anunciado pela "Aliança Democrática", cumprindo o prometido aos
brasileiros. Retirou o chamado "entulho autoritário” da legislação: as
medidas de emergência, a suspensão dos direitos políticos sem licença do Congresso,
os decretos-lei, etc. Mesmo desaconselhado pelo jurista e amigo Saulo Ramos –
este, temeroso de que as discussões políticas inflamadas influenciassem a
governabilidade -, foi Sarney quem insistiu em convocar a Constituinte,
verdadeira divisora de águas entre o passado de exceção e o caminho
democrático. Os políticos da época, os mais envolvidos no processo, sabiam que
mesmo Tancredo tinha dúvidas sobre a oportunidade em se convocar a Constituinte
logo de início. Mas, por decisão de Sarney, naquele momento era criada a "Constituição
Cidadã", esta mesma que durante os últimos anos vem sendo desrespeitada,
vilipendiada, massacrada, adulterada e rasgada em prejuízo da democracia e do
Brasil. Ao lado de JK, José Sarney figura entre os poucos homens públicos que sempre
conseguiram conviver sem maiores traumas com a crueldade do dia-a-dia do
jornalismo.
Talvez a cultura humanista, a
visão de futuro e a satisfação com a missão realizada, tenham sido o lenitivo
que, nos momentos mais difíceis, fizeram com que o político maranhense, no
exercício ou depois do poder, resistisse às pressões que, em outros períodos
históricos, resultaram em tragédias. Ao contrário de Getúlio Vargas, que se
suicidou, ou de Jânio, que renunciou, Sarney teve coragem e continuou. Como se
vê, o peso maior não está nas mãos de quem parte, que se liberta da angústia da
existência, mas de quem fica com as responsabilidades, principalmente se vindas
de surpresa. Para Tancredo, merecidamente, a entrada no Panteão dos heróis
nacionais; para Sarney, o peso terrível de ter sido obrigado a assumir seu
Destino, com patriotismo e convicção. Tancredo não sabe do que se livrou.
Sarney, com a missão já cumprida, espera do historiador, no dizer de Eduardo
Galeano, “este profeta com os olhos voltados para o passado”, o reconhecimento
justo para com um homem de boa-fé e coragem. E, claro! Conciliador. Parabéns
presidente Sarney, pelos 86 anos de vida muito bem vivida. E que Deus tenha
piedade dos meões, ímpios, medíocres, covardes, apátridas e frustrados que
hoje, sem qualquer respeito, sem qualquer humanidade, conseguem comemorar o
acidente de um ancião da importância e da grandeza de Sarney, o homem que
dedicou sua vida ao Brasil. Tem algo de doente nisso.
* Said Barbosa Dib é historiador, analista político e, com muito
orgulho, ex-assessor de imprensa do presidente Sarney
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