A feitio de prólogo,
cito Alexis de Tocqueville, comentando a Revolução de 1848, na França:
“Os
líderes de partidos parecem indignos de comandar, uns por falta de caráter ou
de verdadeiras luzes, a maioria por falta de qualquer virtude”.
Quem discorda que se
repita hoje, o que foi dito tanto tempo atrás? Será que nosso destino será tão
feliz quanto a França de 1948?
AUSTERIDADE?
Falarei sobre
semântica. Não sobre hermenêutica. Sobre semântica. Especificamente, a origem e
o significado das palavras. Mais do significado do que propriamente da origem.
Isso porque as palavras, como é bem sabido, podem ter mais de um significado, o
que às vezes tem consequências políticas consideráveis, sobretudo quando
marteladas continuamente pela mídia em sentido dúbio.
Falarei inicialmente sobre a palavra
“austeridade”.
Não há quem não tenha
uma noção clara do significado imediato dessa palavra. Ela está associada, por
exemplo, à atitude de um pai ou de uma mãe de família de comportamento
extremamente comedido, alheio a qualquer tipo de excessos ou de vícios na vida
privada ou pública. Alguém que seja classificado de “austero” merece
imediatamente a confiança e o respeito da comunidade onde vive. Na economia
neoliberal, entretanto, a palavra “austeridade” tem um significado inteiramente
diferente. Significa, em geral, uma espécie de código para forçar os governos a
cortar gastos públicos e atacar o Estado de Bem-estar Social. Por exemplo,
quando nos apresentaram a emenda do congelamento dos gastos públicos por 20
anos, ela nos foi justificada como uma medida de “austeridade” fiscal
“necessária” para o equilíbrio das finanças públicas. Sendo o equilíbrio das
finanças públicas presumivelmente essencial para a retomada do crescimento. Acho
que, passado o debate acalorado que tivemos, ninguém realmente acredito nisso!
É em nome da
“austeridade” que a maior parte da União Europeia está sendo estrangulada por
uma política econômica suicida e impedida de retomar a expansão econômica. Um
estudo publicado pela VoxEu, a que já me referi aqui, mostra o fracasso da
política dita de “austeridade” para a maioria dos países europeus. Este é
também o nosso caso. O famigerado Plano Levy, em má hora adotada no início do
segundo mandato da presidente Dilma, foi justificado como uma necessária medida
de “austeridade”. E assim também tem sido, de forma obsessiva, sob o comando de
Temer e Henrique Meirelles. “Austeridade” no dicionário neoliberal oculto
significa, especificamente, cortar de forma drástica os gastos públicos
independentemente das necessidades da economia e da sociedade, cortar salários,
cortar empregos, cortar investimentos, quebrar negócios e fazendas, promover o
desemprego ou admitir como natural o aumento do desemprego. A pergunta óbvia é:
uma política de “austeridade” nesses termos ajuda a recuperação da economia? A resposta é um
sonoro NÃO, como podemos inferir da própria realidade.
DÉFICIT?
A palavra “austeridade” está associada à
condenação radical do “déficit” público pelos neoliberais. Aqui também a
palavra “déficit” tem dois significados, um de origem latina, indicando “falta”
de alguma coisa, e outra exprimindo excessos supostamente irresponsáveis de
gastos públicos sobre as receitas correntes do Estado. Nesse sentido, “déficit”
é uma espécie de contrário de “austeridade”: um governo austero, nessa
definição, não faz “déficit”. E um governo que não faz déficit real, mesmo que
faça grandes déficits financeiros como o atual governo Temer, seria um “bom
governo” para o bancos e para a imprensa.
DÍVIDA PÚBLICA?
Uma terceira palavra,
esta composta, “dívida pública”, se associa aos conceitos de duplo significado
que são em geral manipulados pela mídia, ou que a mídia difunde a partir de
outros manipuladores, sobretudo da área financeira. Assim como “déficit”,
“dívida pública” tem conotação negativa, a partir da falsa ideia de que sempre
representa ameaça de calote aos seus detentores, ou significando um peso a ser
suportado por gerações futuras.
É uma falácia. Esquece-se
que dívida pública é uma instituição que nasceu com o capitalismo e faz parte
intrinsecamente da própria estrutura do capital. Os capitalistas precisam de
instrumentos financeiros para acumular seus lucros, antes de fazer novos
investimentos, e o instrumento para isso é a dívida pública. Uma vez que, a
médio e longo prazo, os instrumentos financeiros privados não são suficientemente
seguros e confiáveis. Quando protestam contra o aumento da dívida púbica fora
da órbita estrita do capital financeiro– isto é, quando o aumento da dívida
decorre de investimentos e gastos reais em favor do povo – eles protestam
contra o aumento da dívida através da mídia controlada. O que lhes incomoda de
fato não a dívida, que compram com entusiasmo, mas os gastos em favor do povo.
Não se verá protesto dos capitalistas quando a dívida pública aumenta por conta
de juros estratosféricos.
RESPONSABILIDADE?
Finalmente, temos um
conceito tão poderoso em sua eficácia manipuladora que se tornou nome de lei. É
a chamada “Lei de Responsabilidade Fiscal”. Quem, em sã consciência, poderia
ser contra a responsabilidade fiscal, entendida como adequação dos gastos
públicos às necessidades objetivas da população e à capacidade de financiamento
do Estado, incluindo um endividamento bem ancorado? Mas, por trás desse
conceito, o objetivo explícito é reduzir os gastos dos entes federativos,
sobretudo os associados a serviços públicos, para ampliar o espaço de exploração
para o setor privado. A lei limita os gastos de pessoal e custeio dos Estados e
municípios a 60% da receita corrente líquida, presumindo que seria uma
irresponsabilidade fiscal ultrapassar esse limite. Contudo, Estados e
Municípios, diferentemente da União, são principalmente prestadores de serviços
públicos nas áreas de educação, saúde e segurança. Setores que necessariamente
mobilizam grande contingente de funcionários, e não necessariamente pesados
investimentos. Além disso, a demanda de pessoal depende do próprio
investimento: o custeio anual de um hospital, por exemplo, corresponde em geral
ao custo de um hospital novo. Se o município construir um hospital, com sua
margem de investimento de 40%, não poderá colocá-lo em funcionamento porque a
contratação de pessoal ultrapassaria o limite de 60%.
A chamada lei de
responsabilidade fiscal leva a construir hospitais e escolas sem permitir que
haja recursos para os médicos e professores. A ineficácia da Lei de
Responsabilidade Fiscal não se revela em seu descumprimento. Revela-se no fato
de que, anos depois de sua edição, ela não conseguiu dar qualquer contribuição
ao equilíbrio fiscal de Estados e Municípios, que entraram numa crise fiscal
sem paralelo por força sobretudo da recessão e de fatores como a crise da
Petrobrás. E por causa da irresponsabilidade fiscal do Governo federal em
baixar e manter programas fiscais recessivos, através da contração de
investimentos e das taxas de juros básicas extorsivas. Examinado cada uma
dessas palavras ou conceitos, podemos observar as razões mais profundas de sua
manipulação pela mídia.
CICLOS ECONÔMICOS E
POLÍTICA ANTI-CÍCLICA?
Vejamos a manipulação da palavra “déficit”. A
economia capitalista não segue um curso linear. Ora cresce, ora se estabiliza
ou se contrai em ciclos sucessivos. No caso de uma contração, a razão é
geralmente uma queda da demanda, do investimento, do gasto público ou do
superávit com o exterior, neste caso quando se trata de uma economia
super-exportadora. O setor privado, com vendas deprimidas, não tem como
reverter por si mesmo o curso da queda da demanda. Nessa situação, a
recuperação depende essencialmente do gasto público: o investimento privado,
como disse, não cresce porque não há aumento de demanda, e o superávit externo,
exceto, como também mencionado, em economias estruturalmente exportadoras, não
pode dar conta da retomada. É o gasto público deficitário, dito autônomo porque
não depende de outras variáveis, e sim exclusivamente da vontade mandatória do
governo, que pode desencadear um processo de aumento de demanda. E por
consequência produzirá um aumento do investimento, do emprego e, num círculo
virtuoso, novamente da demanda e assim por diante, levando à retomada do PIB e
da própria receita tributária, que cancelará o déficit, que já não é mais
necessário. Insista-se que o investimento público só terá efeito no crescimento
se for feito a partir de um aumento da dívida pública. Na recessão, só o “déficit”
público real gera crescimento. Caso se tente fazê-lo a partir de tributação
adicional, o efeito sobre o crescimento será nulo, pois o que se retira da
economia sob a forma de impostos lhe é devolvido, nas mesmas proporções, como
gasto público não deficitário. Ao longo da retomada da economia, com o
crescimento do PIB, o déficit deve ser zerado ou mesmo transformado num pequeno
superávit, já que terá ocorrido aumento da receita. Não estou apresentando
nenhum delírio: é o que se chama política anticíclica, usada no mundo inteiro.
OS INIMIGOS DA
RECUPERAÇÃO DA ECONOMIA
Foi a base para o
programa do New Deal com que o presidente Roosevelt acabou com a Grande
Depressão nos Estados Unidos nos anos 30. Também foi a âncora das economias de
bem-estar social no pós-guerra na Europa, levando-a à fronteira da civilização,
até a reversão atual, pós 2008, ditada pelas políticas de “austeridade”. A
economia dos tecnocratas e dos neoliberais não explica porque há tanta
resistência das classes dominantes e das elites dirigentes aos déficits
temporários para financiar o aumento da demanda. Sim, porque uma política que
não propõe aumento de tributos a curto prazo e ao mesmo tempo oferece ao setor
privado a base de demanda para o crescimento de seus investimentos e lucros deveria
ser aplaudida por todos. Todavia, há uma questão ideológica por baixo também
desse comportamento: um aumento dos gastos públicos deficitários significa
reforçar ou ampliar pelo menos parte do Estado para atender necessidades
básicas da população. Isso não atende os interesses da banca, os maiores
interessados em ganhar dinheiro com a política de “austeridade”, com a
resistência ao “déficit” e ao aumento da dívida pública.
LULA REDUZIU A DÍVIDA
PÚBLICA INOPORTUNAMENTE
Considero um dos
grandes equívocos do Governo Lula a política de redução da dívida pública antes
da consolidação de uma política de crescimento econômico sustentável. Foi uma
capitulação ao pensamento neoliberal, num momento em que não havia nenhuma
necessidade disso por conta da confortável situação em reservas cambiais e do
desemprego ainda elevado.
UM ANO DE TEMER
No atual Governo a situação é bem pior:
abusa-se do endividamento e do aumento da dívida pública apenas para favorecer
o capital financeiro através de taxas escorchantes de juros. Já não se financia
nada com o déficit, em termos reais. O aumento da dívida pública no governo
Temer é dinheiro embolsado diretamente por financistas externos e internos, sem
conexão com o financiamento das necessidades da população. Disso nada fala a
grande imprensa. E quando fala, por pressão da realidade, dos juros altos, não
estabelece relação com as decisões antinacionais e classistas do Banco Central
ao fixa-los nas alturas. Sequer fala que, em termos reais – isto é, descontada
a inflação – estamos com juros básicos mais altos do que no Governo Dilma, para
alegria dos banqueiros e financistas. Dos juros para empréstimos ao povo só se
fala em nota de pé de página, já que são simplesmente escandalosos, da ordem de
300 a 400% ao ano. Disso, porém, não vou falar agora. Hoje é o dia das
palavras. Mais à frente falarei de números, sobretudo os números da economia
Meirelles-Temer.
Como epígrafe,
novamente Tocqueville:
“Os líderes de
partido parecem indignos de comandar, uns por falta de caráter ou de
verdadeiras luzes, e a maioria por falta de qualquer virtude”.
Roberto
Requião é Senador pelo Paraná no segundo mandato. É
presidente do Parlamento Europeu Latino Americano – Eurolat em Bruxelas,
presidente da Comissão-Mista Brasileira do Parlamento do Mercosul – Parlasul,
Vice do Parlamento Latino Americano – Parlatino, Presidente do PMDB do Paraná.
Foi governador do Paraná por três mandatos, prefeito de Curitiba e deputado
estadual. É graduado em direito e jornalismo com pós-graduação em urbanismo e
comunicação.
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