Por Said Barbosa Dib*
Li numa enciclopédia que tecnologia pode ser definida como “as formas e os processos pelos quais, com base no conhecimento socialmente adquirido, o ser humano transforma a Natureza”, teoricamente, em seu benefício. Ao transformarem o mundo para atender seus interesses, as sociedades humanas também mudam. Criam novas necessidades, adquirem novos hábitos e passam a ter novas mentalidades e novas necessidades. Foi assim desde a pedra lascada e a invenção da roda até o advento da Era Digital. Mas, contraditoriamente, a evolução cria novos problemas. Exemplo bem simples, mas didático: o advento da faca de metal facilitou a caça e aumentou o acesso dos homens às proteínas dos animais, mas também, contraditoriamente, serviu para facilitar assassinatos. Outro: o controle da energia atômica pode iluminar cidades e países inteiros, sendo menos poluente do que a queima dos combustíveis fósseis, mas também pode dizimar a Civilização. Ou: a Internet, que facilitou a comunicação entre os povos, também trouxe aberrações comportamentais e toda espécie de perigos para nossos jovens, como a pedofilia e coisas do gênero.
Nos três casos, o que faz o avanço tecnológico ser benéfico ou não para o conjunto da sociedade é o poder, o uso que se faz dele, portanto, a força de um grupo social sobre o outro. Nem a faca, nem a energia atômica, nem muito menos a Rede Mundial são, em si, coisas ruins. E quem determina este uso é quem detém o poder. Quanto maiores são as desigualdades mais ostensivas são as relações de poder. No cotidiano atual, destacadamente desigual e injusto, tal contradição é facilmente identificada. Os avanços tecnológicos, que deveriam servir para facilitar e melhorar a vida dos cidadãos, quase sempre atrapalham. Os bancos brasileiros, por exemplo, são extremamente competentes quando o assunto é a informatização dos seus serviços.
Mesmo com relação ao que chamam de “Primeiro Mundo”, os “itaús” e “bradescos” da vida dão show. Hoje, temos agências limpinhas, modernas e altamente informatizadas. Os caixas eletrônicos são uma coisa impressionante. Sinto-me num filme de ficção científica quando tenho o prazer (?) de manipular aquilo. Dias destes, tinha umas trezentas contas para pagar. Todas com leitura ótica e coisa e tal. Todas preparadas para facilitar… a minha vida? Não. Para facilitar o pagamento, para evitar a inadimplência. Tanto o banco quanto a empresa conveniada, cujo boleto eu tinha que pagar, tudo fizeram para que isto ocorresse com segurança e eficácia. E não estão errados por isso. Mas, parado ali na fila, pensando, comecei a refletir: “mas… a fila, que sempre foi a grande desgraça de todo cliente de banco, curiosamente, continuava uma realidade assustadora. Mais assustadora do que antes, mais lenta do que antes, mais irritante do que antes. Como era dia de pagamento de funcionários públicos e aposentados, na minha frente havia pelo menos uns cinco velhinhos. Todos eles demoravam cinco anos para digitar suas próprias contas. Era realmente irritante. Uma tortura. Tive vontade de arrancar aqueles senhores e aquelas senhorinhas da fila e fazer o pagamento para eles. Duas moças bonitinhas, uniformizadas, modernas, que estavam ali, tentavam ajudar, mas a coisa não rendia. Eram duas moças para umas dez filas cheias. Olhei para os lados e percebi que a agência era realmente moderna. Tão moderna que não havia mais nenhum bancário no sentido clássico, nenhum caixa não-eletrônico, quase nenhum ser humano. Havia apenas máquinas. As benditas máquinas. Não. Minto. Havia, sim, um bando de gerentes ávidos em fornecer empréstimos, com suas mesinhas arrumadinhas, seus terninhos bonitinhos, seus lap tops moderninhos e por aí vai. Desisti. Resignado, esperei a batalha dos velhinhos contra o Progresso. Como a coisa demorou, tive tempo para nova reflexão sobre a modernidade: aquele cenário mostrava que aquela parafernália eletrônica toda só tinha servido não para facilitar a minha vida, mas para dizimar a categoria dos bancários, de um lado, e garantir com segurança o recebimento das contas que nós, clientes, tínhamos que pagar. E, claro, o lucro do banqueiro. Sim, porque, se não me engano, antes, quando havia caixa humano, era ele quem tinha que digitar, calcular e passar na maquininha os nossos boletos. Ele era o trabalhador, eu, o cliente.
Agora, com a “modernidade”, a fila era a mesma, mas quem passou a ter a tarefa de digitar, passar cartão, calcular, etc, era justamente eu. Eu e aquele velhinho, quase sem visão, que estava bem ali na minha frente. Ou seja, com a eliminação dos bancários, com a eliminação das greves que sempre faziam, com a eliminação de toda uma categoria de trabalhadores, eliminou-se não a fila, mas a dor de cabeça dos banqueiros com os chatos dos trabalhadores. E nós, clientes, antes apenas clientes, passamos a trabalhar para o banqueiro, de graça! De graça!!!
Quando saí do banco, furioso, entrei no meu carro. Tinha que correr, pois estava atrasado para o trabalho. Trânsito caótico. Uma batida de carros ultramodernos impedia a passagem no moderno eixinho W Norte, da moderníssima Brasília. Ficamos esperando. Modernidade buzinando por todo lado, modernidade engarrafada, modernidade batida, modernidade a me perseguir por todos os lados. Mas, não vi nenhum arcaico policial ou agente de trânsito para instruir os carros, para colocar ordem naquele caos moderno. De repente, uma brecha. Os donos dos carros batidos, eles mesmos, sem perícia, sem policiais, sem DETRAN, sem ninguém do governo, conseguiram afastar seus automóveis e permitiram a nossa passagem. Eu estava muito atrasado. Poderia perder o emprego. Menos de um quilômetro depois, passei por moderníssima barreira eletrônica, que numa precisão impressionante, me flagrou a 65Km/h, onde só se admitia uma civilizada – e moderna – velocidade de 60.
Cheguei ao serviço atrasado. Modernamente, meu cartão de ponto digital registrou na maldita maquininha, que meu patrão tinha adquirido há poucas semanas, o meu pecado nada moderno. Comecei a trabalhar que nem doido para vencer o relógio digital pregado na parede e compensar o atraso. Consegui fazer tudo. Ufa! Deu tempo.
Terminada a tortura, sentei um pouco para descansar antes de pegar o trânsito macabro que a moderna cidade de Brasília tem naqueles horários em que os funcionários vão para casa. Peguei um jornal e tentei esfriar a cabeça. A primeira coisa que li foi uma manchete que dizia: “Sistema que permite bloquear bens para pagamento de dívidas foi testado e aprovado”. No lead da notícia, a informação:
“O sistema que permite o bloqueio online de bens pela Justiça, que foi estendido ontem para todo o país, começou como projeto-piloto no Tribunal Regional do Trabalho da 10ª região (Distrito Federal e Tocantins) e rendeu bons frutos”. E na matéria, a explicação: “Agora, o modelo poderá ser utilizado por todos os juízes do Brasil, segundo decisão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). O Renajud, como é chamado, permite aos magistrados de qualquer instância consultar a base de dados sobre veículos e proprietários no Registro Nacional de Veículos (Renavam) e inserir restrições impedindo transferências, licenciamento e circulação”.
Lembrei-me da ausência do DETRAN-DF na batida que presenciei. Rasguei o jornal, joguei-o no lixo e pensei: “esta tal de modernidade tá parecendo aquela moça linda e manca de Brás Cubas, de Machado de Assis, nas suas memórias póstumas: “coxa, porém tão bela… tão bela, mas coxa.”.
*Said Barbosa Dib é historiador e analista político em Brasília
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