Por Said Barbosa Dib*
Ministro da Educação, Ricardo
Vélez Rodríguez, reconheceu que errou ao pedir que as escolas filmassem as
crianças cantando o Hino Nacional, sem a autorização dos pais. As críticas
foram constantes. Marcelo Freixo divulgou na Internet: “Cantar hino (sic), pode. O que não pode é fazer propaganda política na
escola”. É compreensivo o comentário diante do absurdo do MEC, mas Freixo foi
infeliz. Aceitou a idéia de Bolsonaro de que o Hino pertence a ele e aos seus
aliados. O Hino não é apropriação de ninguém. Não pertence a nenhuma facção,
grupo, classe ou indivíduo. É símbolo nacional de todos os brasileiros. Não tem
nada que ver com conflitos político-partidários. Condenar a ação inconstitucional
do ministro do MEC em querer impor slogan
da candidatura Bolsonaro às nossas escolas - e a ilegalidade flagrante em se
querer filmar crianças para fins políticos - é uma coisa. Outra coisa é o Hino,
que, legalmente, teria que ser obrigatório desde 1971. Mas, independentemente
de ser obrigatório, é imperativo moral e motivo de orgulho para todo
brasileiro. Por que?
Porque o Hino é, como os demais
símbolos nacionais, elemento que permeia toda a nacionalidade e representa
síntese do patriotismo. Embora patriotismo, necessariamente, seja ideologia
como outra qualquer. Embora fundamental para o “amor próprio” de uma nação é
apenas idéia. Idéias não têm cor nem cheiro. E como tal, sempre há diferença
entre o que se deseja do mundo e como este funciona efetivamente. As idéias,
por si mesmas, não matam, não destroem, não prejudicam. E por si mesmas, também
não salvam, não libertam, não agradam, não levam ninguém ao Paraíso. Mas uma idéia,
em contextos diferentes e submetida a interesses conflitantes, pode se tornar coisa
boa ou ruim. Como uma faca, que pode matar ou alimentar, dependendo do uso que
se faz dela. Quem pode dizer que conceitos tão bonitos - e que contribuíram
imensamente com a evolução da Humanidade - como cristianismo, socialismo,
liberalismo político ou democracia, sejam, por si mesmos, bons ou ruins, até
que sejam confrontados com a realidade? A verdade é que, ao contrário do que
pensam alguns, o patriotismo é fundamental quando se fala de Estado-Nação no
mundo contemporâneo em processo de globalização. Mesmo que estados totalitários
tenham, historicamente, sempre se utilizado do nacionalismo exacerbado para
respaldarem seus poderes, isto não significa que as pessoas, sejam de esquerda
ou de direita, não tenham que ser patriotas.
Sabe-se que, em nome de boas
ações, o Inferno está cheio. Em nome do cristianismo, quantos não foram
queimados pela Inquisição? Em nome da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, da
Revolução Francesa, quantos não foram guilhotinados? Em nome do socialismo,
quantos não foram exterminados ou exilados na Sibéria? Em nome do liberalismo,
quanto caos econômico não foi gerado? Em nome da democracia, quantas nações não
foram invadidas ou sofreram intervenções diretas ou indiretas pelos EUA? Mas os
avanços da Civilização e os princípios do Estado Democrático de Direito
dependeram muito dessas idéias e dos homens que acreditaram nelas. E é
justamente por isso que, falando de patriotismo, vemos que é idéia importante e
bonita que, se não for praticada nos tempos de paz e normalidade, pode se
tornar alimento perigoso para as soluções “fáceis” nos momentos de crise e de ameaça.
Não quer dizer que a idéia, em si, seja boa ou má. Por isso, patriotismo, por
definição, deve ser sempre regra e pressuposto de uma nação soberana e
democrática, nunca exceção apenas para os momentos de dificuldade, pois, desta
forma, pode virar fermento certo para exageros totalitários.
Patriotismo travestido de
patriotada torna-se ruim e destrutivo quando é usado apenas nas soluções para
crises agudas, não como prática constante e saudável de valorização cidadã do
que nos pertence e do que amamos: nós mesmos, nossos imensos recursos, nossos
valores, nossos cidadãos, nossa História. O nacionalismo desesperado, engendrado
em momentos de crise, se manifesta como “estado febril e tardio do patriotismo”,
como dizia o padre Fernando Bastos de Ávila. Por isso mesmo, corre-se o perigo
de se tornar, quando a situação apresenta-se insuportável, algo de chauvinismo
e de xenofobia. A patriotada, seja de um Lula da Silva ou de um Bolsonaro da
vida, pode ser ruína para todos. Patriotismo verdadeiro, ao contrário, é sempre
positivo. Não visa a vantagens pessoais nem aos descaminhos da intolerância. Ao
contrário, é capaz de sacrifício despojado, “inclusive o da própria vida, pelo
bem comum”, como dizia Rui Barbosa. Rui Barbosa, aliás, que apresentou sua
definição de Pátria por ocasião da solenidade de formatura de jovens no Liceu
do Colégio Anchieta de Friburgo, em 1903, tornando-se um dos momentos mais
conhecidos de sua oratória cívica. Fazendo exortação à União, mas sempre
preocupado com o pluralismo democrático, ensinava:
“A pátria não é um monopólio, a
Pátria são os que não conspiram, os que não sublevam. Não foram poucas as
ocasiões em que se tentou fazer dela e de seus símbolos monopólio de uma
classe, de uma corporação, de uma ideologia. A pátria não é ninguém: são todos;
e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à idéia, à palavra, à associação.
A Pátria não é um sistema, nem uma seita, nem um monopólio, nem uma forma de governo:
é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e
o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade. Os que
a servem são os que não invejam, os que não infamam, os que não conspiram, os
que não sublevam, os que não desalentam, os que não emudecem, os que não se
acobardam, mas resistem, mas ensinam, mas esforçam, mas pacificam, mas
discutem, mas praticam a justiça, a admiração, o entusiasmo. Porque todos os
sentimentos grandes são benignos, e residem originariamente no amor. No próprio
patriotismo armado, o mais difícil da vocação, e a sua dignidade, não está no
matar, mas no morrer. A guerra, legitimamente, não pode ser o extermínio, nem a
ambição: é simplesmente a defesa. Além desses limites, seria um flagelo
bárbaro, que o patriotismo repudia."
Esta definição de Rui sobre a
Pátria encanta. Encara o patriotismo não como manifestação de ufanismo fácil,
mas como robusta afirmação do alcance universal do conceito, por cima de todas
as divisões. É definição profundamente ligada ao conceito de democracia,
formulada numa oratória inteligente que jamais deve ser esquecida, simplesmente
porque hoje, como nunca, precisamos nos redescobrir, nos repensar, nos unirmos e
darmos a nós mesmos o devido valor.
Said Barbosa Dib é historiador e analista político em Brasília
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