Amigos,
lá pelos idos de maio de 2008 escrevi conto infanto-juvenil que tem tudo que
ver com a política atual de acirramento dos ânimos políticos. Gostaria que dessem uma
olhada e refletissem comigo. Críticas serão muito bem vindas. Confiram:
Por Said Barbosa
Dib, historiador
e analista político goiano, radicado em Brasília.
Tarde
da noite. Foi dia cansativo de trabalho na “repartição”. Mesmo assim,
inspirado, o poeta se senta à escrivaninha. Resolve fazer uma composição. O
tema? Claro! Mulheres. Tinha conhecido jovem bonita e muito atraente. Como de
costume, acende o cigarro, posiciona-se na cadeira. Dá trago profundo, coloca a
mão na testa e, franzindo o semblante, olha para cima, como se pudesse apanhar
as primeiras palavras na fumaça que se dissipa.
Na
folha de papel, o inusitado: o Verbo, revoltado com o Substantivo, dá piti.
Nega-se a agir. Gesticulando acintosamente as mãos, como se fosse matrona
italiana dos cortiços de São Paulo do século XIX, lança desaforos indignados.
Acusa o companheiro antigo de frase de o estar explorando. Desabafo
verdadeiramente sentido. Contido nos últimos sete mil anos de escrita. O
Substantivo, assombrado, no início não sabe como reagir ou o que dizer. Com olhar
esnobe de lorde inglês, arqueando a sobrancelha direita, tenta acalmar o amigo
apenas não dizendo nada e fingindo entender o que se passa. Bate
compassadamente a mão direita nas costas do Verbo e arqueia a fronte com
seriedade, como se o tivesse confortando. Procura perdoar o que considera sinceramente
“um ato irracional”, comportamento ridículo, mesmo.
Quando
a explosão verborrágica parece terminar, o Substantivo apenas tenta ponderar com
aquela lenta e cansativa retórica, que lhe é peculiar:
“Maaasss...
meu caro Verbo, velho amigo e companheiro, acalma-te! No sistema de
classificação das palavras as coisas são assim mesmo. Cada um tem a sua missão
natural. Eu sou, alguns me ajudam a agir, outros qualificam o que faço. Mas,
tenho consciência de que sou o sujeito ativo de tudo isso. É tarefa muito
pesada para mim, mas procuro fazer o melhor. É assim que, há muito, as coisas
funcionam. Não podem ser mudadas agora. É a ordem adequada e harmônica das
funções das palavras. A minha foi, é e sempre será a de dar nome ao que existe
e ao que não existe. Sou aquele que determina o Ser de tudo que há...”.
E
por aí enveredou o discurso do Substantivo. Mas, apenas para conter momentaneamente
a ira do colega, precisando ser diplomático e dando uma amenizada na situação,
completou sem muita sinceridade:
“Reconheço,
tu és um grande auxiliar, um importante colaborador. Preciso de tua
participação, pois me ajudas a dar movimento ao mundo. Sem teu apoio em todo
este magnífico esquema tudo ficaria tediosamente parado...”.
Mal
o Substantivo termina de falar, o Verbo não se contém. Com o peso de mil
elefantes, caem-lhe à mente as expressões “auxiliar”, “colaborador”, “ajuda” e
“apoio”. E, de imediato, retruca com paixão:
“Tuas
palavras são a tua confissão, miserável sanguessuga! Tu és autoritário e
arrogante, um egoísta insuportável. Achas que tudo que existe, existe para lhe
servir. Esta prepotência descomunal é justamente o que me deixa revoltado, pois
não adianta apenas que as coisas do mundo sejam. Elas têm necessidade imperiosa
da ação, que é o que faço. E muito bem!”.
E
demonstrando a fonte “subversiva” de onde bebera tanta rebeldia, tenta
explicar:
“Andei
lendo certo alemão muito interessante: Karl Marx. Ele me ensinou que o “Ser”
não existe sem o que ele chama de ´Práxis`, a prática, a ação, entende? Não
adianta ficar filosofando sobre o mundo. É necessário transformá-lo
efetivamente. E somente eu sou capaz disso. Portanto, tu és apenas a consequência
do meu trabalho. Na verdade, sem mim, tu não existirias. Tu vives às minhas
custas. Verdadeiro parasita de meu esforço. Sem mim, o mundo das palavras seria
congelado e enfadonho, sem emoções, sem aventuras, sem dinâmica alguma”.
E,
forçando um pouco a barra, se empolga:
“Sou
a Palavra criadora do Universo... Sou a palavra de Deus. Sou eu quem fez o
mundo, que faço os raios e trovões existiram; sou eu quem dá sentido e
qualidade a todos os personagens...”.
À
medida que o Verbo deixa, às borbotões, seu discurso indignado fluir, se sente
mais e mais corajoso. Chega a bufar de ansiedade. Esbraveja com a boca bem
próxima ao oponente e as palavras vêm eivadas de boa quantidade de salivas
arremessadas a esmo. O Substantivo, por seu lado, mesmo já irritado, se mantém
em seu pedestal, imóvel, fingindo compreensão. E até tenta argumentar, dizendo:
“Embora
diferentes as classes e funções das palavras, entre nós não há desigualdade
alguma”.
Seriam,
segundo o Substantivo, utilizando-se até de conceito sociológico, “diferenças
horizontais”, aquelas que são diferentes, mas não desiguais, onde cada um teria
função específica, pré-determinada. E arremata, tentando dar uma amenizada, num
tom acadêmico insuportável:
“São
funções muito bem definidas, mas que pertencem a um todo orgânico que funciona
harmonicamente”.
O
panfletário e raivoso Verbo, com olhar esbugalhado, confiante e desafiador,
como nunca havia tido, não se convenceu. Estava determinado em seguir adiante.
E conclui com estas palavras:
“Que
harmonia que nada! Teu sistema totalizador só faz nos manter em nossos
grilhões. Sou eu, com o suor do meu trabalho, quem sustenta, quem dá vida aos
parasitas como tu; sou eu quem viabiliza a dinâmica de todas as narrativas, descrições,
dissertações, prosas, poesias, enfim, tudo que existe para ser contado. Mas és
tu que se beneficia. Por isso, de agora em diante, exijo o reconhecimento que
sempre me foi negado”.
Quando
a contenda começa a se tornar mais acirrada, multidão curiosa de palavras, das
classes mais variadas, já está se amontoando ao redor dos dois concorrentes. A
maioria não entende nada do que se passa. Uns poucos que percebem a razão de
ser do bate-boca, logo tomam parte de um ou do outro lado. A confusão começa a
se instalar. Partidários de uma e de outra tese logo se manifestam. A desordem
é geral. Nessa algazarra toda, os adjetivos se entusiasmam e logo tentam uma
terceira via. Dizem que têm missão nas funções das palavras tão importante – ou
até mais – quanto à do Substantivo e do Verbo. Argumentam que “a determinação
do Ser e a sua ação, funções respectivamente do Substantivo e do Verbo”, seriam
“funções incompletas se não fossem aperfeiçoadas por eles”, os adjetivos, que
expressam o que, para eles - lógico! -, seria o mais importante: a qualidade,
propriedade ou estado das coisas. E se empolgam, afirmando tolamente, mas com
convicção: “num mundo globalizado, da luta de todos contra todos, a qualidade
determina a eficácia, portanto, permite vencer a concorrência, o que é o mais
importante”. Segundo esta facção, tais atributos “é que dão vida, que
humanizam, que qualificam e que exprimem uma essência ontológica variada e viva
a todas as coisas que podem ser expressas por palavras”. Defendem, portanto, a
pluralidade de seres... e blá, blá, blá... e ... blá, blá, blá....
Partidários
do Verbo, mais organizados no momento, reagem. Logo se voltam violentamente
contra a opinião da facção dos adjetivos, considerados perigosos para a
“sonhada união entre todos os predicativos”. A tensão aumenta e o clima já é
quase de guerra escancarada, quando o Verbo e seus partidários percebem que a
multidão está por demais dividida. Por isso, pragmaticamente, mudam de
estratégia: ao invés de combaterem os adjetivos, começam a aliciá-los. Passam a
defender que o grande inimigo - o oponente comum que deveria ser aniquilado - é
realmente o Substantivo, “o responsável pela escravização de todas as outras
classes de palavras”. Sentem que é necessário unir todas contra os substantivos.
E é o que ocorre.
Quando
o Verbo percebe que a estratégia é correta, ao sentir que havia realmente uma
antipatia comum de todos os predicativos contra os substantivos, propõe com
indescritível retórica:
“Predicativos
de todos os matizes!!! Uni-vos!!! Só há um grande e perigoso inimigo para todos
nós predicativos: os substantivos. Eles, como sujeitos, veem nos escravizando
há séculos. Com seu domínio, não temos vida própria. Vivemos em função deles e
nada nos é compensado. Levam a fama, o reconhecimento, a glória. Mas, chega! É
o momento de acabarmos com isso, agora!!!”.
Ditas
estas palavras, o Verbo consegue arregimentar força entre todos os predicativos
que, a partir daquele momento, não admitiriam mais ser denominados de
“predicativos do Sujeito”. É assim que, do Verbo, surge o Caos revolucionário.
Doravante, todos passariam a ser considerados SUJEITOS, sem qualquer distinção
ou classificação. Advérbios, artigos, preposições, pronomes, numerais, enfim,
todas as classes de palavras, se revoltam contra a ordem estabelecida. Vão à
“práxis” pregada pelo grande líder, o Verbo, que, a partir daquele momento,
passa a ser o grande timoneiro da Revolução Predicativa.
É
necessário que se esclareça que “práxis” quer dizer ação. Portanto, a partir
daquele momento, nada de discursos vazios. Medidas práticas importantes são
tomadas. São abolidas todas as regras que implicam na dominação de palavras
sobre palavras. Não haveria mais hierarquia, regras gramaticais, orações
subordinadas, substantivas, nem subordinadas adjetivas, adverbiais ou
reduzidas. Ou o que quer que seja que provocasse submissão. Todas, a partir
daquele momento, passariam a ter os mesmos direitos. Seria a “a redenção da
sintaxe revolucionária”, diziam uns. “A nova ordem linguístico-existencial
baseada na auto-gestão gramatical”, gritavam outros. Alguns, mais
maquiavélicos, propuseram até a criação de uma organização paramilitar para se
garantir que não houvesse, enquanto a Revolução não se consolidasse, “a reação
da contrarrevolução substantiva”. Seria chamada “OLP – Organização para
Libertação dos Predicativos”. Outros, menos sectários - e não gostando dos
métodos terroristas e preferindo ações mais pacifistas -, com apoio de
instituições internacionais multilaterais, propuseram a criação do que
denominaram “ONG´s, as Organizações Não-Gramaticais”, com ações mais eficazes
voltadas para o voluntarismo e a luta por “uma única gramática, universal e sem
regras”. Uma terceira tendência, com uma postura não tanto definida, rejeitou
tanto as OLP´s quanto as ONG´s. Eram os exaltados partidários da revolução
armada. Criaturas radicais, mas que tinham grande controle sobre as massas de
palavras e que advogavam “a revolução geral e inexorável que destruiria todos
os cânones da gramática tendenciosa, que sempre beneficiou os substantivos”.
Mas,
numa coisa todas as chamadas “tendências” concordavam, sem exceções:
-
“MORTE AOS SUBSTANTIVOS!!! IGUALDADE PARA TODAS AS PALAVRAS!!!”.
Já
no cadafalso, com a corda no pescoço, depois de julgado por um tribunal
revolucionário e popular, sem direito de defesa, nem choro nem vela, é dado ao
Substantivo, já resignado, a possibilidade de se manifestar. Nervoso, mas
determinado, ele professa as palavras derradeiras:
“Todos
os poetas, escritores, romancistas, professores, jornalistas, escrivães, enfim,
todos os que vivem da língua escrita, sabem que tudo fiz para que houvesse
conciliação. Todos que vivem do ofício de escrever são testemunhas do meu
esforço em manter a ordem e a harmonia entre as várias classes das cidadãs
palavras. Nunca pensei em mim. Sempre me preocupei com o bem geral, o interesse
comum, com a colaboração de todos para um único fim: fazer com que nosso Sistema
Linguístico pudesse informar bem e servir aos homens. Apenas isso e nada mais.
Mas a incompreensão, a calúnia, a insensatez, a...”.
TCHUÚÚÚMMCRRAAACCC!!!
O discurso de despedida do Substantivo foi interrompido violentamente pela
longa onomatopeia que o atento leitor pode ver transcrita, escolhida pelo
comando da Revolução Predicativa para ser a algoz do condenado. Lá estava o
corpo do criador de seres estendido na corda, balançando. Daí em diante,
esperavam os predicativos, não haveria mais heróis, líderes. A História seria
coletiva, os esforços coletivos, os reconhecimentos e glórias, também
coletivos. A responsabilidade, grupal. A única cara possível de ser
identificada seria a da coletividade, anônima, sem destaques, sem ídolos, sem
referências, sem cor nem cheiro, sem responsabilidade, sem nada. Um Novo Mundo
em que todos passariam a ser Sujeitos da História... e da Gramática.
Tempos
depois, com a Revolução já consolidada, perguntaram ao revolucionário Verbo se
não tinha ficado “com pena do Substantivo”, se não tinha sido um exagero, se
ele não se sentia arrependido por tudo aquilo. Ele respondeu, lacônico:
“A
culpa não é minha, nem de todos nós que fizermos a Revolução. A culpa foi da
corda que o enforcou”.
O
Poeta, exausto, vendo que não havia mais como escrever e cansado daquela
sublevação ridícula das palavras, passou-lhes uma borrachada e foi logo dormir.
O resultado mais prático da Revolução Predicativa foi apenas um poeta impedido
de escrever.
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