Os
estados e diversos municípios brasileiros estão fortemente endividados.
Esse
processo de endividamento tem um ponto em comum: a partir do final da década de
90, a União refinanciou as então existentes dívidas dos estados, por meio da
Lei n o 9.496/97 [2], e dos Municípios, pela Medida Provisória nº 1.811/99 [3].
Na
época, cada ente federado firmou seu contrato com o Tesouro Nacional,
representante da União, obrigando-se a colocar em prática um pacote de medidas.
Os estados e municípios tiveram que assumir o compromisso de promover rígido
ajuste fiscal mediante o enxugamento de gastos [4] e investimentos, além da
privatização de empresas públicas, inclusive os bancos estaduais. A
privatização dos bancos estaduais seguiu o programa denominado PROES, mediante
o qual passivos desses bancos ficaram com os respectivos estados e foram refinanciados
em conjunto com as dívidas do estado.
Esse
processo vem absorvendo grande parte dos recursos dos orçamentos estaduais e
municipais, afetando a vida de toda a sociedade que paga a conta, tanto por
meio dos elevados tributos como por meio dos serviços públicos que deixa de
receber. Apesar de pagar a conta, a sociedade não sabe que dívidas são essas;
como foram contraídas; onde foram aplicados os recursos; quem se beneficiou dos
recursos; qual a natureza dos passivos dos bancos estaduais privatizados que
foram transformados em dívida do estado, etc.
É
raro encontrar bibliografia sobre esse importante tema. Nesse sentido, a
Auditoria Cidadã da Dívida vem cumprindo importante papel, publicando livro [5]
e incentivando a organização de núcleos [6] locais para estudos e demais ações
para a mobilização social.
As
condições de refinanciamento impostas pela União aos estados e municípios
mostraram-se extremamente onerosas. A cada mês a dívida é atualizada e sobre o
montante atualizado incidem os elevados juros, de forma cumulativa ao longo dos
meses. Esse formato fez com que as dívidas se multiplicassem e se
transformassem em uma bola de neve.
Para
se ter uma ideia, o município de São Paulo refinanciou uma dívida de R$ 11
bilhões no ano 2.000. Em 2013 essa dívida alcançou o patamar de R$ 58 bilhões,
apesar de o município ter pago R$ 28 bilhões para a União no período. Os
números não fecham, pois entram em ação os perversos mecanismos de atualização
monetária mensal cumulativa calculada com base em um dos índices mais onerosos,
o IGP-DI, calculado por instituição privada, a FGV. Em cima dessa correção
mensal, ainda incidem os elevados juros, a cada mês. E essa onerosidade de
condições não é o único problema dos paulistanos. Recaem, sobre a origem da
dívida que foi refinanciada, diversas denúncias de fraude comprovadas até por
Comissões Parlamentares de Inquérito. Resultado: a maior cidade da América
Latina não tem recursos para uma série de investimentos essenciais à população,
mas vem pagando religiosamente essa dívida eivada de fraudes, ilegalidades e
ilegitimidades.
A
situação de diversos entes federados ficou tão onerosa que alguns preferiram
buscar recursos no exterior, endividando-se junto a bancos privados
internacionais e Banco Mundial, para pagar à União. Uma verdadeira aberração! E
mais: diante da nova alta do dólar, os entes federados que adotaram essa
alternativa esdrúxula se depararão com dificuldades ainda mais graves.
Esse
problema da dívida dos estados não fazia parte da agenda de debates políticos,
até que a CPI da Dívida Pública realizada na Câmara dos Deputados em 2009/2010
pautou o tema, juntamente com as discussões sobre a dívida federal externa e
interna [7].
A
partir daí, aumentou a pressão sobre o governo federal, para que fossem
revistas as condições do refinanciamento das dívidas dos estados e municípios,
tendo em vista o desrespeito ao Federalismo e uma série de ilegalidades e
ilegitimidades verificadas no processo.
Nesse
contexto, o governo federal apresentou ao Congresso Nacional o projeto de lei
que recebeu o n o 238 na Câmara dos Deputados e n o 99 no Senado Federal,
propondo modificações mínimas que não chegam a resolver o problema, mas
significavam um alívio bem reduzido para os estados e municípios.
Tal
projeto foi discutido nas duas Casas Legislativas, tendo sido aprovada, em 5 de
novembro de 2014, a Lei Complementar n o 148 [8]. No dia 25 do mesmo mês a Lei
foi sancionada pela Presidente Dilma, autorizando, em resumo, as seguintes
modificações:
- Em relação ao cálculo dos juros, estes passariam a ser calculados e debitados mensalmente, à taxa de quatro por cento ao ano (antes variavam de 6 a 9%), sobre o saldo devedor previamente atualizado. A atualização passaria a ser calculada mensalmente com base na variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Ampliado – IPCA (antes era aplicado o IGP-DI). Esse somatório de atualização mais juros reais ficaria limitado à Selic.
- Em
relação ao estoque, este seria recalculado com base na Selic, e a União
concederia descontos se o recálculo resultasse em valor inferior ao
existente.
Apesar
de representar uma redução ínfima para os estados e municípios, o Governo
Federal anunciou, na tarde de 24 de março de 2015, que não irá cumprir a Lei
Complementar n o 148/2014.
Cabe
lembrar que o próprio governo encaminhou o projeto de lei ao Congresso Nacional
em 2013 e o sancionou em 2014, alimentando os discursos de governadores e
prefeitos de que tal lei “resolveria o problema” de suas dívidas.
A
Advocacia Geral da União declarou que o governo tem razão em não reduzir os
juros cobrados dos entes federados, utilizando o argumento de que a lei é
“apenas autorizativa”. Por sua vez, o Tesouro Nacional afirmou que precisaria
de decreto para regulamentar os novos cálculos indicados na Lei Complementar nº
148/2014.
Na
realidade, o não cumprimento da Lei Complementar no 148/2014 está relacionado à
necessidade de utilização de recursos advindos de estados e municípios para
completar os pagamentos da dívida pública federal. Desde a aprovação da Lei
9.496/97 e da edição da MP 1.811/99, todos os pagamentos de dívidas por parte
de estados e municípios à União são destinados por esta ao pagamento de suas
próprias dívidas, conforme dispositivos idênticos que constam dos respectivos
atos legais:
- Lei
9.496/97, Art. 12 – A receita proveniente do pagamento dos
refinanciamentos concedidos aos estados e ao Distrito Federal, nos termos
desta Lei, será integralmente utilizada para abatimento de dívida pública
de responsabilidade do Tesouro Nacional.
- MP
1.811/99, Art. 10 – A receita proveniente dos pagamentos dos
refinanciamentos concedidos aos Municípios, nos termos desta Medida
Provisória, será integralmente utilizada para abatimento da dívida pública
de responsabilidade do Tesouro Nacional.
Diante
disso, é evidente que o governo federal está preferindo atender à pressão do
setor financeiro, que exige elevado superávit primário em 2015, implementação
de rigoroso ajuste fiscal, e elevação dos juros, sob ameaça de agências de
risco virem a rebaixar a nota de grau de investimento do Brasil. É evidente que
nenhuma concessão pode ser tolerada nesse contexto.
O
Congresso Nacional reagiu ao descumprimento da Lei Complementar nº 148/2014. Já
foi aprovado na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar n o 37/2015
[9] que estabelece prazo para que a União dê cumprimento à referida Lei. Agora
o projeto se encontra no Senado Federal.
O
grave problema da dívida dos estados e municípios demonstra a necessidade de
envolvimento da cidadania no tema do endividamento público. É preciso exigir o
enfrentamento do Sistema da Dívida, que atua em âmbito nacional e regional
sacrificando o país e toda a sociedade para beneficiar exclusivamente ao setor
financeiro nacional e internacional. A ferramenta que joga luz sobre esse
processo e revela a verdade é a AUDITORIA.
Maria
Lucia Fattorelli é Coordenadora Nacional
da Auditoria Cidadã da Dívida www.auditoriacidada.org.br e https://www.facebook.com/auditoriacidada.pagina.
Membro da Comissão de Auditoria Oficial da dívida Equatoriana, nomeada pelo
Presidente Rafael Correa (2007/2008). Assessora da CPI da Dívida Pública na
Câmara dos Deputados (2009/2010). Convidada pela Presidente do parlamento
Helênico, deputada Zoe Konstantopoulos para integrar a Comissão de Auditoria da
Dívida da Grécia a partir de abril/2015.
[2] A gênese desse refinanciamento está expressa em Carta de Intenções de dezembro/1991 com o FMI, itens 24 e 26.
[3] Esta Medida Provisória foi sendo reeeditada até a MP 2.185-35/2001, quando passou a vigorar permanentemente.
[4] Em relação aos gastos com pessoal por exemplo, os estados e municípios teriam que:
limitar o gasto com pessoal, adequando-se às limitações da Lei de Responsabilidade Fiscal
promover a reforma da previdência dos servidores municipais aumentando a alíquota de contribuição de 6% para 11% limitar as despesas com aposentados e pensionistas.
[5] FATTORELLI, Maria Lucia Auditoria Cidadã da Dívida dos Estados (2013) Inove
Gráfica e Editora, Brasília.
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