Por MSIa
Em 3 de abril, o jornal The New York Times publicou
um artigo de Bernard Aronson,
com o sugestivo título “Pode o Brasil deter o Irã?”. O texto quase surreal
sugere que o Brasil interrompa o seu programa de enriquecimento de urânio, como
uma maneira de convencer o Irã a fazer o mesmo. Uma motivação evidente é a
campanha de pressões contra Teerã, dias antes da nova reunião de negociações do
grupo P5+1 (os cinco membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU e a
Alemanha) com o Irã, em Istambul, em 13-14 de abril. Porém, no que tange ao
Brasil, além de denotar a bizarra configuração mental dos altos escalões do Establishment anglo-americano,
a absoluta falta de sintonia do texto com a realidade nacional deixa a
impressão de que o autor e seus mentores têm outros objetivos, pois nem o mais
irredutível americanófilo pode, realisticamente, esperar que Brasília sequer considere
a sugestão. Assim, o mais provável é que o País esteja diante de um autêntico
“boi de piranha” nuclear – um elemento de barganha para outro propósito da
agenda bilateral de Washington. Depois de uma bajulação inicial, afirmando que
“o Brasil é um líder global emergente”, Aronson faz uma proposta direta:
Mas há uma área onde tem a oportunidade de liderar
e não conseguiu: evitar a proliferação de armas nucleares. O Brasil deve dar o
passo corajoso de acabar, voluntariamente, com o seu programa de enriquecimento
de urânio e instar outras nações, inclusive o Irã, a seguir o seu exemplo.
Capciosa e convenientemente, ele faz apenas uma
menção passageira e falaciosa à tentativa brasileira de 2010, quanto,
juntamente com a Turquia, o Brasil intermediou um acordo aceitável pelo Irã e
plenamente capaz de reduzir os temores internacionais sobre o programa nuclear
iraniano – o qual foi prontamente sabotado pelo governo estadunidense,
empenhado em eliminar a capacidade de enriquecimento de urânio em quaisquer países
que não estejam sob a sua influência direta. Não obstante, ele prossegue com a
arenga:
O Brasil detém uma posição única entre as nações em
desenvolvimento, para lidar com esse perigo de proliferação, devido à sua
defesa e ao histórico nacionalista de enriquecimento. Se ele renunciar ao seu
direito de enriquecer urânio, em nome da paz internacional, fechar as suas
unidades de enriquecimento, abraçar uma antiga proposta das Nações Unidas, para
aceitar urânio enriquecido fornecido pela AIEA [Agência Internacional de
Energia Atômica], que reprocessaria o combustível irradiado – essencialmente, o
acordo oferecido ao Irã [sic] – e instar outros países que também assinaram o
tratado [referência ao Tratado de Não-Proliferação Nuclear-TNP] a fazer o
mesmo, isto mudaria o debate nuclear.
A nova postura brasileira retiraria o principal
argumento do Irã, de que os estados avançados detentores de armas nucleares
estão buscando uma forma de “apartheid nuclear”, trazendo para si próprios o
enriquecimento, “ponte” que as nações em desenvolvimento têm a oportunidade de
cruzar… Finalmente, se o Brasil e outras nações em desenvolvimento desistirem
do enriquecimento nuclear, seria possível se fazer um novo esforço
internacional concentrado, para fechar de forma permanente a brecha do
enriquecimento, por meio de uma alteração do Tratado de Não-Proliferação.
É verdade que, nas relações bilaterais, é constante
o inconformismo estadunidense com as ambições nucleares brasileiras, em
especial, a capacidade tecnológica de enriquecimento de urânio, considerada
pelo Establishment de Washington como um péssimo exemplo para
a política de “apartheid tecnológico” que pratica há décadas. De qualquer
maneira, a diatribe de Aronson é divulgada às vésperas da visita de Estado da
presidente Dilma Rousseff ao país, o que, obviamente, não é mera coincidência. O
currículo de Aronson não é o de um diletante. Ele foi secretário de Estado
Assistente para Assuntos Interamericanos durante o governo de George Bush pai,
de 1989 a
1993, e assessor internacional do banco Goldman Sachs para assuntos
latino-americanos. É membro do ultra-seleto Conselho de Relações Exteriores
(CFR) e do Instituto Nacional Democrata para Assuntos Internacionais, ambos,
importantíssimos órgãos de planejamento e intervenção externa do Establishment estadunidense.
Portanto, uma pista para as intenções reais da “proposta indecente” apresentada
no artigo pode ser proporcionada pela agenda sugerida pelo CFR para orientar as
relações bilaterais. Tal agenda está contida no relatório Global Brazil and U.S.-Brazil
Relations (Brasil Global e relações EUA-Brasil), divulgado
pelo CFR em julho de 2011 e objeto de análise na edição de 10 de agosto da Resenha
Estratégica:
(…) O
relatório deixa claro que a oligarquia anglo-americana gostaria de enquadrar o
Brasil no molde de um grande exportador de matérias-primas e uma “potência
ambiental”, que abra mão da utilização plena dos seus recursos naturais para o
desenvolvimento interno soberano do País e da América do Sul, pelo processo de
integração regional. Neste particular, é relevante que, enquanto ignora a
necessidade de um aprofundamento qualitativo e quantitativo da industrialização
do País, o documento destaque o potencial de exportação de produtos primários –
energia e alimentos – e a autoimposição de uma draconiana legislação ambiental,
que nenhum país industrializado adotou, a começar pelos próprios EUA. Tal
tendência é explicitada no trecho a seguir: “A floresta amazônica é, em si
própria, um valioso recurso, que recicla dióxido de carbono para produzir mais
de 20% do oxigênio do mundo.”
O texto do relatório ressalta tais sugestões, ao
afirmar que:
Os perfis energético e ambiental do Brasil
estabeleceram o país como um importante ator internacional em dois dos desafios
globais mais centrais e estreitamente interligados: a segurança energética e as
mudanças climáticas. Com pelo menos 50 bilhões de barris de petróleo sob as
águas brasileiras, 167 milhões de barris anuais de produção de etanol (e planos
para aumentar a produção para mais de 400 milhões de barris até 2019), usinas
hidrelétricas que fornecem 75% da eletricidade brasileira e a sexta maior
reserva comprovada de urânio do mundo, o Brasil está destinado a tornar-se um
significativo exportador de diversos produtos energéticos… O monitoramento e a
aplicação da legislação climática e florestal permanecem difíceis e
imperfeitos. Mas, ainda assim, os temas energéticos e ambientais proporcionam
ao Brasil a sua plataforma mais sólida para a influência internacional. (…)
Observe-se que os autores do documento consideram
que “os temas energéticos e ambientais proporcionam ao Brasil a sua plataforma
mais sólida para a influência internacional”. Ou seja, que o País deveria
investir no papel de um empório energético-ambiental, atuando como junior
partner da agenda estabelecida pelas potências “adultas” do planeta –
e, de preferência, não crie problemas para estas.
Voltando a Aronson, ele encerra o artigo com uma
ultrajante proposta e uma “recomendação”:
A renúncia
aos direitos ao enriquecimento catapultaria o Brasil, da noite para o dia, a
uma posição de liderança global quanto ao desafio de segurança mais urgente da
comunidade internacional. E a liderança do Brasil, inevitavelmente, modelaria o
contexto para as discussões futuras sobre a aceitação como membro permanente em
um Conselho de Segurança expandido – uma das suas antigas ambições. No momento
em que o mundo enfrenta a perspectiva de uma guerra com o Irã, Dilma tem a
oportunidade de fazer uma abertura corajosa para ajudar a solucionar a crise –
ela deve aproveitá-la.
Embora o texto não mereça um destino diferente da
cesta de lixo mais próxima, no Palácio do Planalto ou no Itamaraty, ele serve
como advertência para que o País se empenhe em assegurar a sua capacidade
própria de construir pontes seguras, para não correr o risco de cair num rio
infestado de piranhas hegemônicas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário