terça-feira, 16 de julho de 2013

Tancredo e a emancipação do Brasil

No dia 7 de agosto de 1984, Tancredo Neves era escolhido candidato da Aliança Democrática à Presidência da República. Começaria ali o último ato do fim da ditadura. Porém, como enfatizou Tancredo, não se tratava de uma tarefa meramente negativa - a de enterrar um regime que infelicitava o país. Era, na concepção do candidato, necessário um programa de reconstrução do país. Este foi o conteúdo de seu discurso, na tarde daquele dia, ao aceitar a candidatura. Os que estiveram presentes, jamais esquecerão as suas palavras. Devido à sua atualidade - Tancredo, infelizmente, não conseguiria implementar seu programa, devido aos trágicos acontecimentos na madrugada de sua posse - publicamos hoje uma condensação daquele pronunciamento, que não parece ter 29 anos de idade. O leitor que interessar-se por sua íntegra - assim como dos principais pronunciamentos de Tancredo - pode encontrar, na Biblioteca Digital da Câmara, o volume "Tancredo Neves", da série Perfis Parlamentares. Na página 739 poderá encontrar o discurso que hoje resumimos.


Tancredo Neves

Companheiros:

A causa do povo, se dispensa radicalismos, exige coragem. Foi essa coragem, assumida por todos nós, e sobretudo pela gente mais simples do povo, que nos deu ânimo na penosa travessia. Levamos, para as jornadas próximas, a força que nos conferem a confiança e o entusiasmo do País. Temos de compreender a verdade essencial de nosso pacto político. Nós o estabelecemos em favor de nossa gente. O Brasil que amamos não é entidade abstrata, feita apenas de símbolos, por mais que os veneremos. O Brasil que amamos está em cada coração e em cada alma de seus filhos. Restaurar, em seus olhos, o orgulho da Pátria, é a missão que nos cabe. A soberania do País é a soberania de seu povo; a dignidade do País é a dignidade de sua gente.

Companheiros:

Cabe-nos enfrentar, com coragem e urgência, os problemas de natureza institucional. Os homens necessitam de pactos definidos para a sua convivência. Devem sempre existir, entre eles, regras claras, que lhes estabeleçam os limites entre os direitos individuais e os direitos comunitários. Tais direitos, sendo mútuos, se fazem de concessões. O Estado terá de ser a linha possível entre os interesses de cada homem e os interesses de todos os homens juntos. O Estado é a sua Constituição. Sem Constituição, não há Estado, mas precário arranjo entre os interesses e a força. As Constituições, no entanto, não são obras literárias, nem documentos filosóficos. Elas não surgem do espírito criador de um homem só, por mais privilegiado em sabedoria seja esse homem. Tampouco podem ser a codificação de propósitos de um ou outro grupo que exerça influência, legítima ou ilegítima, sobre a Nação. A vida das Constituições está no espírito com que são concebidas. Quanto mais estejam subordinadas aos efêmeros interesses das minorias, ou quanto mais atendam à voracidade de poder dos tiranos, menos podem durar. A verdade social é, assim, a essência de tais documentos. Recuperar a Federação é a nossa segunda grande tarefa institucional. Não basta declarar a Federação. É preciso que o governo da União abandone os excessivos poderes que se arrogou, a começar pelo de concentração tributária e distribuição política dos recursos fiscais. Não pode a União dispor de mais do que necessita para responder a seus encargos, limitados pela Constituição. O que temos assistido é a ânsia incontrolável de domínio burocrático e de captação de recursos para financiar exacerbado controle da vida econômica e social do País. A recuperação do sistema federativo, imposição da necessidade administrativa, por si só será grande vitória da razão sobre o arbítrio.

Companheiros:

É urgente a necessidade de impor-se ordem econômica ao Estado. As contas brasileiras, internas e externas, tornaram-se pesadelo angustiante. Comecemos pela dívida externa. Os países credores serviram-se de nossos sonhos de grandeza, e, com os recursos que nos forneceram, ampliaram as restrições ao nosso desenvolvimento econômico. A flutuação da taxa de juros, expediente de que se valem a fim de fazer frente a seus déficits orçamentários, está levando o nosso povo a penosos sacrifícios. Já exaustos, os trabalhadores se esfalfam para produzir bens que se convertam em divisas, a fim de atender à ambição insaciável do sistema financeiro internacional. A recessão e o desemprego não são moedas de ajuste entre povos dignos. Não é possível que o País continue enviando para o exterior 5% da renda interna sob forma de pagamento de juros, outros serviços e amortizações. Tal saída de recursos corresponde a verdadeira sangria na economia nacional e se materializa, em última instância, pela transferência de parcela da produção nacional ao exterior. Os produtos, por seu turno, correspondem à combinação de recursos naturais, mão de obra e capitais nacionais carreados para fora do País. A posição brasileira deve ser de honrar a dívida, mas há condições a serem analisadas, discutidas e renegociadas, para que o País não comprometa mais do que parte razoável de suas receitas de exportações nos pagamentos ao exterior. Urge eliminar o gargalo imposto pela necessidade crescente de geração de superávits comerciais para pagar os serviços da dívida, e sua própria amortização, para que o País obtenha a folga necessária para voltar a crescer. Mais danosa do que os gravames que nos impõem é a bruta injustiça nas relações de intercâmbio entre os países do hemisfério norte e os que se situam ao sul. A colonização política, que tanto custou aos povos, foi substituída pelos ardis do comércio externo e das relações financeiras. A execução do nosso programa de governo não pode dispensar o respaldo de uma política externa voltada para os interesses nacionais, refletindo os anseios de uma sociedade democrática. Procuraremos ampliar relações com todos os nossos parceiros, independentemente do nível de desenvolvimento de cada um. Em todos os aspectos desse relacionamento, o Brasil há de ser sempre um parceiro confiável, cuja posição internacional não estará à mercê de infortúnios conjunturais, mas lastreada na sua riqueza, na seriedade de propósitos de seu governo e na confiança do povo quanto à sua capacidade de realizar-se como Nação próspera, justa e independente. Em nossas relações comerciais, financeiras ou tecnológicas, os interesses de médio e longo prazo do Brasil nos impedem abdicar do pleno desenvolvimento de nossas potencialidades, sobretudo naqueles setores estratégicos capazes de nos assegurar, em futuro próximo, um lugar definitivo entre os países que acionam as alavancas do progresso para o bem-estar de sua gente. Em consequência, só assumiremos os compromissos internacionais que possamos cumprir. Não aceitaremos imposições que se valham de nossa situação de vulnerabilidade momentânea. Em suma, não negociaremos o inegociável, nem dialogaremos sob pressão. Com os países desenvolvidos cultivaremos relações de cooperação que esperamos sejam crescentemente proveitosas, em termos que atendam a nossos interesses. Encontramo-nos, no campo financeiro, na posição de devedor de vários desses países, mas, nos campos do comércio, da tecnologia e dos serviços, somos e seremos cada vez mais seus acirrados competidores. Com os países em desenvolvimento, deveremos também expandir a cooperação econômica e técnica, já existente em grau significativo. Impõe-se que a solidariedade em que se baseiam essas relações se traduza em efetivo aproveitamento de vantagens recíprocas. Junto com os demais países latino-americanos, trataremos de atingir os objetivos de integração regional mutuamente acordados. É da tradição brasileira contribuir para o aprimoramento do convívio e da cooperação entre as nações. Na quadra difícil que atravessamos, estou convencido de que nossa contribuição deve incluir uma participação ativa no processo de reformulação das instituições que, desde o fim dos anos 40, vêm regulando as relações econômicas internacionais. Incapazes de lidar eficazmente com os problemas da atualidade financeira e comercial, assimétricas no que se refere aos direitos e obrigações de países ricos e pobres, insensíveis aos imperativos do desenvolvimento econômico e social da grande maioria de seus países membros, essas instituições frequentemente mais acentuam do que corrigem os desequilíbrios existentes. Devemos valer-nos da experiência brasileira com tais instituições para apontar com clareza os caminhos de sua reformulação. Ainda nas relações externas, sem o apelo histérico à xenofobia, preservaremos os valores culturais que nos identificam como singular civilização entre os trópicos. Temos de assumir, com justificada soberba, a grande herança que trazemos das populações autóctones e das duas margens do Mediterrâneo. Essa marca, ameríndia, latina, ibérica e africana, predomina em nossa forma de ser no mundo, e de sentir o mundo. Os outros povos que para aqui vieram souberam integrar-se em nosso meio, e enriquecer a cultura nacional. Há, no entanto, de se proteger o patrimônio espiritual de nosso povo contra aquele tipo de subcultura que nos impingem de fora. A identidade de um país está também na sua natureza. O progresso, indispensável, terá de ser conquistado com o respeito pelo ambiente natural. A vida é o bem absoluto dos homens. Não pode haver vida em um ambiente assassinado pela cupidez de alguns. Quando falamos em identidade nacional, há de se pensar na juventude brasileira. São moças e rapazes que trabalham e estudam, com enormes dificuldades, e não dispõem de tempo para a vida descuidada dos poucos privilegiados. Desses rapazes e moças poucos chegam à universidade. A universidade, no Brasil, é ainda elitista. Temos de democratizá-la efetivamente, e não continuar com a mentalidade de que os filhos dos trabalhadores devam ser sempre trabalhadores, e doutores os filhos de doutores. Perdida em divagações, formando profissionais para um país inexistente, a universidade brasileira necessita de uma reforma profunda e imediata. Mas há toda uma juventude, toda uma infância que nos cumpre salvar com urgência. São os milhões de crianças e adolescentes abandonados de nosso País. Concentrados, em sua maioria imensa, nas grandes metrópoles, eles não têm lar, nem futuro. São nômades nas ruas, obrigados a recolher delas, e de qualquer maneira, o pão de cada dia.

Companheiros:

A modernização da agricultura, que engoliu os pequenos produtores em benefício dos vastos plantios para exportação, expeliu do campo, para as cidades médias e maiores, numerosos contingentes humanos. São eles os banidos em sua própria Pátria, desgarrados da paisagem ocupada por várias gerações familiares, e compelidos a vender sua força de trabalho, quando encontram quem a compre, a preços aviltantes. No interior do País, são eles os boias-frias, designação que, em sua vulgaridade, espelha toda a humilhação a que são submetidos. Nas grandes cidades são esmagados pela recessão econômica, e assistem, sem poder reagir, à desagregação da família, que é o único bem dos pobres. Onde não há trabalho, não há pão, e as migalhas acaso obtidas, Deus sabe como, são sempre molhadas com as lágrimas da vergonha. Não podemos sentir orgulho de cidadãos, enquanto houver, neste País, tanto sofrimento e tanto ultraje. Temos de transformar, e logo, as declarações gerais em favor da justiça social em atos concretos. Isso exige toda uma nova concepção do objetivo social da economia. Temos de começar pela base, pela terra, que é a única geradora primária de riquezas. Não postulo medidas radicais e novas para a solução do problema agrário do Brasil. Vamos empenhar-nos em executar a legislação que aí está, proclamada e não cumprida. Para os anos próximos, a aplicação do Estatuto da Terra, por si só, corresponderá a uma revolução no campo. A democratização da propriedade rural facilitará a desconcentração industrial e o fim do êxodo rumo às imensas metrópoles, que já se tornam inabitáveis. O problema da agricultura não é apenas o da posse da terra. É preciso vê-lo em toda sua complexidade, que envolve questões como as de crédito, dos subsídios, da tecnologia, dos insumos. Não há país no mundo que negue subsídios aos produtores rurais. A atividade, apesar de toda a técnica moderna, continua sendo a mais arriscada do ponto de vista econômico. Não há país que prospere com segurança, se não contar com uma agricultura poderosa. Por isso mesmo, teremos de encontrar o equilíbrio entre a questão social, que recomenda a disseminação de pequena propriedade rural, e as razões econômicas. Muitas reformas agrárias fracassaram porque não foram capazes de garantir o abastecimento urbano. A agricultura tem de produzir para o consumo interno e para a exportação. Temos tudo, no Brasil, para uma agricultura pujante. Mas recusamos o destino, que alguns nos querem indicar, de meros fornecedores de comida barata ao mundo. A força da terra e o trabalho dos homens serão alicerces para a construção de um País industrialmente desenvolvido e politicamente respeitado.


Companheiros:

Todas essas medidas só serão possíveis com a preservação e fortalecimento da empresa nacional e incentivos aos pequenos e médios empreendedores. Fortalecer a empresa nacional é dar-lhe condições para desenvolver seu modo de produção, com uma política racional de crédito e incentivos fiscais, e, também, dentro de uma tecnologia que seja nossa. Em razão disso, defendemos a reserva de mercado para, entre outros, o importantíssimo setor da informática. Mas não nos esqueçamos de que o mercado não é uma entidade abstrata e nem pode ser reduzido apenas a dados estatísticos. Ele é constituído de criaturas humanas, soberanas no seu direito de escolha, e é a essas criaturas que devemos defender. Investir na pesquisa científica é outra de nossas urgências. Não admitimos quaisquer vetos aos trabalhos dos cientistas brasileiros, que devem buscar o domínio do conhecimento em todos os campos. Temos, entre esses investigadores, nomes de projeção universal. Falta-nos, porém, uma política decidida de estímulo a seu trabalho. Vivemos internamente sob insólito sistema econômico, que, para usar uma expressão que se tornou corrente, privatiza os lucros, mas socializa os prejuízos. Os dinheiros públicos são generosamente entregues a especuladores que, até mesmo na manipulação financeira, se mostram incompetentes. As empresas estatais, que constituem, em alguns setores, irretorquível necessidade, reclamam controle social maior. Mas é preciso cuidado nas críticas que a elas se fazem. Não podemos, em nome da privatização das empresas estatais, promover a desnacionalização da economia brasileira.

Companheiros:

Não há economia forte com sindicatos fracos. A autonomia sindical é imprescindível à construção democrática do País. Os sindicatos, quando no exercício de suas atividades legais, existem como legítimo instrumento dos trabalhadores, e sem eles não há paz social.

Companheiros:

Em nossos tempos assistimos à emancipação social e política das mulheres. Esse é um movimento justo e irreversível. Como todas as revoluções, também esta se faz com dificuldades. A mulher brasileira não se está emancipando porque pretenda libertar-se do lar. Ela vem sendo empurrada às atividades produtivas, fora de casa, pelas exigências da vida moderna. Sem o seu salário, hoje, é difícil a sobrevivência das famílias de trabalhadores. A mulher só será realmente emancipada quando tiver as mesmas oportunidades políticas dos homens. Elas devem participar das decisões nacionais e da administração pública, com sua inteligência e seus discernimentos políticos em plena igualdade, e sua presença não pode ser vista como acontecimento insólito.

Companheiros:

Estamos convencidos de que o Brasil só será a grande Nação que sua gente merece quando não houver zonas de depressão social e econômica na geografia do País. A integração do Nordeste no conjunto nacional não é medida paternalista a ser assumida com os recursos do Sul. É providência reclamada para a prosperidade comum do Brasil. Necessitamos, todos nós, de dar aos nordestinos a oportunidade do desenvolvimento. As distorções históricas da economia nacional, resultantes da diferença de clima, mas também de injunções políticas, agravaram-se, nas duas décadas passadas, com a concentração de recursos pelo Poder Central. Já temos dito e repetido: o Nordeste é a primeira, a maior e a mais importante das prioridades nacionais.

Companheiros:

Haveremos de encontrar, com a assessoria dos grandes mestres da teoria econômica e os conselhos da razão política, os meios para sanear a moeda e recuperar a confiança nas atividades produtivas. O que não podemos permitir é a continuação dessa drenagem enlouquecida de recursos para a aplicação em títulos que, por sua vez, não se destinam a investimentos produtivos, mas à especulação insensata de um monetarismo hipertrofiado. Só os néscios, porém, podem acreditar no êxito de uma política recessiva no combate à inflação. A ação deflacionária exige a colaboração ativa da sociedade, e a sociedade não lhe dará seu assentimento se não houver rápida criação de novos empregos, favorecimento às iniciativas de trabalho e produção próprias, e o atendimento às necessidades básicas do povo.

Companheiros:

O povo brasileiro reclama mudanças, e iremos promovê-las. Não faremos apenas um governo de transição. Nosso propósito é o de presidir ao grande acordo nacional para a transformação do Brasil em um País restaurado em sua honra, em sua riqueza e em sua dignidade. Sabemos como serão penosas as jornadas por vir. Durante muitos anos as dificuldades puderam ser proteladas com manobras e manipulações contábeis. Agora não há mais recursos para o adiamento. Chegou a hora da verdade, assustadora verdade, e teremos de enfrentar todas as dificuldades com coragem e determinação.
Para isso temos de buscar, no sacrifício do nosso povo, o indispensável exemplo de amor à Pátria. São estes homens e mulheres que, na lida do campo, no interior das fábricas, nas estradas, nas cátedras e nos quartéis, são os verdadeiros construtores da nacionalidade. O nosso pacto social, assim, afasta desânimos e ressentimentos, covardias e represálias, acomodações e revanchismos, para abrir o País a uma nova estação da História. Não será um tempo de milagres, nem de ostentação constrangedora. Tudo faremos para que os brasileiros tenham direito ao trabalho, à honra e à liberdade. Para esta luta, em nome da Aliança Democrática, conto com a ajuda de Deus e a força do povo.

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