Se quiséssemos escolher uma cor para definir o jornalismo praticado pela imprensa golpista, a dos jornalões, marrom seria a mais adequada. É a que melhor define o hábito de extorquir verbas oficiais - até de regimes militares que querem ser tratados como democráticos e respeitadores da liberdade de expressão. Ou não era assim que, durante 20 anos, "O Globo" retratava nossa ditadura militar?
Naquelas duas décadas as empresas dos jornalões construiram sua coleção de prédios portentosos, no Rio e em São Paulo. Trabalhei como jornalista contratado em vários deles. Pessoalmente "inaugurei" três prédios. Com "O Dia", em 1965, fui da Marechal Floriano para a Riachuelo. Com a Bloch, em 1967, da Frei Caneca para o Russell. Com o JB, em 1972, da Rio Branco para a Avenida Brasil.
De "O Globo", saí antes da mudança. Desde então o desprezo dos jornalões pelos que, pequenos e corajosos, optavam por resistir à ditadura e à censura, não se sujeitando em troca de verbas e favores oficiais, só fez aumentar. Os donos da mídia dedicada a construir impérios ficaram especialmente encantados quando o regime que matava e torturava rotulou de "marrom" a imprensa que censurava.
Aqueles prêmios aos covardes
A afirmação explícita, do general Ernesto Geisel, ainda é repetida em jornalões. Eu a li há sete anos no "Jornal do Brasil", referindo-se à TRIBUNA, fechada então três dias, por decisão judicial equivocada. Era insólito, pois a família proprietária do JB o deixara falido anos depois de M. F. Nascimento Brito apostar no golpe do general Sílvio Frota (contra Geisel) e na promessa de ganhar o Itamaraty como prêmio.
Na verdade, a firmeza do compromisso dos Nascimento Brito e do JB com a liberdade de imprensa ficara clara desde 1971, num editorial publicado à época da visita do ditador Garrastazu Médici aos EUA. Atribuia-se ali a uma campanha de difamação do comunismo internacional uma reportagem do "Washington Post" sobre tortura e violação dos direitos humanos no Brasil.
O autor da reportagem - Dan Griffin, que ainda estudante trabalhara no Brasil para o Peace Corps - pediu-me um exemplar daquela edição do JB com um editorial sob o título "Visão do Brasil". Explicou-me que até então nunca vira uma reportagem sua ser contestada em editorial. Queria expor, emoldurada, a página do editorial sabujo, que negava até a censura sofrida pelo próprio jornal.
Assim eram - e ainda são - nossos jornalões Por isso eu só poderia me sentir bem ao trabalhar, como colaborador, redator, editor ou editor-chefe, para veículos rotulados de "imprensa marrom" por Geisel ou ditadores de toda parte, em diferentes países e épocas. Só na TRIBUNA totalizei mais de um quarto de século. E antes já vivera experiência semelhantes em "Opinião" e no "Pasquim".
Quem faz jornalismo marrom?
Nem esses e nem outros encontraram solidariedade nos jornalões arrogantes. Em 2001, ao ser a TRIBUNA de novo golpeada e impedida de circular por decisão judicial arbitrária, como no tempo da censura direta da ditadura, os jornalões apressaram-se a reviver o rótulo "imprensa marrom" com que ela, "Opinião", "Pasquim", "Movimento" e até "O São Paulo" (da Arquidiciose) eram brindados pela ditadura.
Mesmo o gesto de um colunista de "O Globo" que anos antes atacara covardemente o jornalista Helio Fernandes - só, desarmado e sem guardacosta - foi celebrado de forma opinativa e perversa. Foi num texto desmemoriado que pretendeu contar a história da TRIBUNA e escondeu dos leitores, por exemplo, ter ela sofrido 10 anos de censura enquanto os jornalões aplaudiam cada gesto torpe dos ditadores de plantão.
"Imprensa marrom" devia estar ainda na cabeça do editorialista que investiu num jornalão em 1971 contra o "Correio da Manhã", vítima ao mesmo tempo, por sua resistência à ditadura, tanto da censura como do boicote organizado por grandes anunciantes e agências de propaganda. Pois o editorial na época garantia que o fim do "Correio" se devia apenas a "incompetência".
Os jornalões acham que são eternos. Costumam ficar impassíveis quando são os irmãos menores os alvos do arbítrio. Mais corajosos, estes ousam resistir. Arrogantes, aqueles deixam de perceber que quando se desencadeia a violência contra os veículos alternativos, a intimidação é também contra os maiores - que podem ser os alvos seguintes, se não se comportarem.
Onde começa a liberdade
"Por que recrudesceu a censura prévia contra nosso jornal precisamente quando fora suspensa em vários órgãos sob seu guante", perguntou o editorial do penúltimo número de "Opinião", em abril de 1977. Ainda hoje é essa uma questão chave para se entender tanto o mecanismo do controle da informação no Brasil dos generais como suas manifestações aparentemente menos racionais.
Medidas limitadas na aparência podem ter efeitos devastadores até em regimes democráticos que proclamam respeito pela liberdade de expressão. Daí porque a falta de solidariedade dos veículos que só conseguem enxergar os que discordam deles como "imprensa marrom", na ótica do general Geisel, é perigosa para a mídia como um todo.
Até meados da década de 1970 só havia espaço para artigos de Fernando Henrique Cardoso, mais tarde presidente, naquele "Opinião"englobado no rótulo de Geisel. Como FHC, também outros sociólogos, economistas, cientistas políticos, escritores, jornalistas e acadêmicos de diferentes áreas, críticos dos rumos duvidosos do país, manifestavam-se apenas através desses veículos.
Escrevi sobre isso em 1985, depois da posse do primeiro governo civil. Achava então terem os jornalões aprendido a lição. "Ameaças e restrições, mesmo quando visam diretamente publicações menores, alternativas, que poderosos e arrogantes chamam de 'imprensa marrom', atingem a liberdade como um todo, ainda que alguns se julguem no primeiro momento fora de seu alcance", observei.
Eu estava enganado. Os jornalões nada aprenderam. Nunca aprenderão.
Leia o Argemiro Ferreira de ontem
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(A foto acima, do prédio da Tribuna da Imprensa à rua do Lavradio 98, é de Adelino P. Silva, que a publicou no seu web site ”Mais ou Menos Nostalgia”)
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