Por Renivaldo Costa*
Vão querer me matar, mas é o que penso.
Acho que precisamos tirar Paulo Freire do altar. Nosso grande educador fez a cabeça de gerações de professores, digo, educadores, transmitiu esperança e ternura a milhões de líderes comunitários, teólogos progressistas, intelectuais, pensadores, questionou as formas de transmissão do conhecimento, as relações em sala de aula, colocou o amor, o reconhecimento do outro, mas...
Mas o homem vem sendo cada vez mais colocado num altar, com água benta do lado e caminha para a condição de santo. Reverenciamos Paulo Freire todos os dias. Da reverência, estamos passando para o endeusamento. Há congressos, livros, seminários. As práticas em sala de aula são questionadas a cada segundo. O aluno, perdão, o educando, foi ganhando importância, mas tanta importância, que está acontecendo um fenômeno social incrível – hoje, o professor é quase um coadjuvante em sala de aula. A impressão que tenho, hoje, é que o aluno olha para o professor, e tem vontade de dizer:
"Professor, o senhor está atrapalhando a aula".
Venho pensando sobre isso há algum tempo, matutando devagar-zinho, porque no Brasil, temos algumas pessoas que são colocadas no altar, viram mitos, intocáveis, e ai de nós, reles mortais, do pensamento mediano nacional, se ousarmos fazer alguma crítica. Fenômenos inversos também ocorrem. Nelson Rodrigues, o reacionário dos anos de chumbo, é cada vez mais visto como revolucionário, um homem capaz de falar das coisas mais sombrias da alma, sem concessões. Quem vai se aventurar a falar mal do Nelson Rodrigues, hoje? Isso era moda nos anos 60 e 70.
Duas coisas me chamaram a atenção, nos últimos tempos. Primeiro, virou quase politicamente incorreto, beirando à ofensa, o sujeito ser chamado de "professor" (aquele que ensina uma ciência, arte, técnica; mestre, segundo o Aurélio). Agora, para quem ainda não sabe, o certo mesmo é "educador". Eu, que trabalho com as palavras, seja lendo, ensinando, escrevendo, acho a palavra "professor" linda. Basta eu falar dela, que lembro meus bons professores do passado, aqueles que me ajudaram a ser quem sou e o que sou. Não lembro de nenhum deles como educadores. Eram sim, meus professores. Quando você bota o politicamente correto na palavra "professor", tão cheia de significados, está tirando toda a sua força.
Depois, tenho visto coisas terríveis acontecendo pelas escolas do Amapá e adjacências. O professor só falta pedir perdão para fazer uma chamada. De tirano, de inquestionável, de dono do saber, de capataz, em outros tempos, se tornou quase um intruso em sala de aula. Por ou-tro lado, o aluno foi mudando de lugar. Do que obedecia tudo, do que temia a figura do professor se aproximar, que aceitava o que chegava de conhecimento como algo dado, fechado, inquestionável, que não podia refletir criticamente, o aluno virou quase o senhor da sala de aula. Isso acontece na escola pública e nas escolas mais caras do Amapá, como o Seama.
Há 15 dias, encontrei uma amiga, professora de mão cheia, conhecedora dos percursos, teias e paixões da literatura, da escrita, uma figura sensível e atenciosa, com um blog delicioso aqui na Internet. Nosso encontro, em meio ao lançamento de um livro, um dia festivo, teve uma nota intrigante. Ela tinha pedido demissão de um colégio católico de classe média, o Santa Bartolomea, onde a mensalidade é uma pancada no bolso dessa gente, que se vira como pode para tentar dar uma boa educação aos filhos. Se preocupa tanto em pagar uma escola cara e boa, que esquece de dizer que ele deve respeitar o professor.
Minha amiga não agüentou sequer um ano na escola. Ficou chocada com a falta de respeito, a obsessão pelo celular, os fones de ouvido literalmente dentro do cérebro, a balbúrdia. Tentou criar estratégias, mudar formatos, abriu caminhos, diálogos, mas nada. Exausta, abatida, sem entender o que faz um bando de jovens do 1º ano do Ensino Fundamental sair de casa para exercitar a criatividade jogando coisinhas em seus celulares, ela jogou a toalha. Pediu demissão. Estava aliviada, mas triste.
Queria muito ensinar coisas mágicas do mundo da Literatura, mas não deu. A sorte é que ela tem turmas particulares de Literatura, então acontece uma coisa engraçada: a classe média paga mais uns trocados, para os filhos que querem mesmo ir para um lugar com o objetivo específico de estudar, já que a sala de aula comum está parecendo um samba do crioulo doido.
Sempre li Paulo Freire com os olhos mais humanos. Antes de morrer, ela já era um mito. Disse e escreveu coisas linda, importantes, fundamentais, que tenho comigo como referência para meu trabalho como professor de Educação Especial, mas tenho críticas, discordo de algumas coisas, acho que tudo que ele disse e escreveu tem sido levado ao pé da letra. Eu, se fosse ele, estaria incomodado.
O professor tem pensado tanto no aluno, que tem esquecido da sua importância. Os valores estão todos virados pelo avesso. O celular novo é mais importante que um poema do Fernando Pessoa. O pêndulo mudou de lado. O aluno vem perdendo sistematicamente os referenciais de respeito, de atenção, cuidado. A sala de aula vem deixando de ser, há algum tempo, um espaço sagrado para a transmissão do conhecimento, para a reflexão, desenvolvimento das potencialidades e visão de mundo. Pauta que Pariu, agora estou ferrado mesmo: usei a frase "transmitir conhecimento". Ninguém transmite conhecimento, nós vamos para a sala de aula para aprender com os educandos, aquela coisa.
Modestamente, acho que um sujeito que passou a vida lendo, anotando, pesquisando, planejando suas aulas, pensando na melhor maneira de passar para seus alunos, está transmitindo conhecimento sim. Outro dia, perguntei aos meus alunos quem sabia o que era uma metáfora. Dos 19 em sala, apenas um sabia, e de forma improvisada, porque não conseguia explicar direito aos colegas. Então, começamos uma nova jornada, em busca de metáforas. Levei livros, poetas, escritores, lemos juntos metáforas, até que ela virou nossa amiga.
Sou professor. Adoro este ofício, fico emocionado quando um jovem aluno vem me mostrar um poeminha simples, início da grande aventura pessoal. Ontem, uma aluna me contou que passou a tarde inteira lendo um romance, e esqueceu do tempo. Outro dia, ela disse que não gostava de ler. Conversamos, rimos, trocamos idéias, mas não tenho o menor pudor de parar uma aula e dar um carão, quando a coisa desanda. Fica aquele silêncio, mas sinto que é um silêncio de respeito, um freio nesta grande esculhambação que este país tem se transformando, porque tudo é culpa do outro. Tem alguém, ali, um professor, que por um momento diz um "não" bem dito.
Depois do silêncio, eu digo:
"Vamos continuar?"
Vão querer me matar, mas é o que penso.
Acho que precisamos tirar Paulo Freire do altar. Nosso grande educador fez a cabeça de gerações de professores, digo, educadores, transmitiu esperança e ternura a milhões de líderes comunitários, teólogos progressistas, intelectuais, pensadores, questionou as formas de transmissão do conhecimento, as relações em sala de aula, colocou o amor, o reconhecimento do outro, mas...
Mas o homem vem sendo cada vez mais colocado num altar, com água benta do lado e caminha para a condição de santo. Reverenciamos Paulo Freire todos os dias. Da reverência, estamos passando para o endeusamento. Há congressos, livros, seminários. As práticas em sala de aula são questionadas a cada segundo. O aluno, perdão, o educando, foi ganhando importância, mas tanta importância, que está acontecendo um fenômeno social incrível – hoje, o professor é quase um coadjuvante em sala de aula. A impressão que tenho, hoje, é que o aluno olha para o professor, e tem vontade de dizer:
"Professor, o senhor está atrapalhando a aula".
Venho pensando sobre isso há algum tempo, matutando devagar-zinho, porque no Brasil, temos algumas pessoas que são colocadas no altar, viram mitos, intocáveis, e ai de nós, reles mortais, do pensamento mediano nacional, se ousarmos fazer alguma crítica. Fenômenos inversos também ocorrem. Nelson Rodrigues, o reacionário dos anos de chumbo, é cada vez mais visto como revolucionário, um homem capaz de falar das coisas mais sombrias da alma, sem concessões. Quem vai se aventurar a falar mal do Nelson Rodrigues, hoje? Isso era moda nos anos 60 e 70.
Duas coisas me chamaram a atenção, nos últimos tempos. Primeiro, virou quase politicamente incorreto, beirando à ofensa, o sujeito ser chamado de "professor" (aquele que ensina uma ciência, arte, técnica; mestre, segundo o Aurélio). Agora, para quem ainda não sabe, o certo mesmo é "educador". Eu, que trabalho com as palavras, seja lendo, ensinando, escrevendo, acho a palavra "professor" linda. Basta eu falar dela, que lembro meus bons professores do passado, aqueles que me ajudaram a ser quem sou e o que sou. Não lembro de nenhum deles como educadores. Eram sim, meus professores. Quando você bota o politicamente correto na palavra "professor", tão cheia de significados, está tirando toda a sua força.
Depois, tenho visto coisas terríveis acontecendo pelas escolas do Amapá e adjacências. O professor só falta pedir perdão para fazer uma chamada. De tirano, de inquestionável, de dono do saber, de capataz, em outros tempos, se tornou quase um intruso em sala de aula. Por ou-tro lado, o aluno foi mudando de lugar. Do que obedecia tudo, do que temia a figura do professor se aproximar, que aceitava o que chegava de conhecimento como algo dado, fechado, inquestionável, que não podia refletir criticamente, o aluno virou quase o senhor da sala de aula. Isso acontece na escola pública e nas escolas mais caras do Amapá, como o Seama.
Há 15 dias, encontrei uma amiga, professora de mão cheia, conhecedora dos percursos, teias e paixões da literatura, da escrita, uma figura sensível e atenciosa, com um blog delicioso aqui na Internet. Nosso encontro, em meio ao lançamento de um livro, um dia festivo, teve uma nota intrigante. Ela tinha pedido demissão de um colégio católico de classe média, o Santa Bartolomea, onde a mensalidade é uma pancada no bolso dessa gente, que se vira como pode para tentar dar uma boa educação aos filhos. Se preocupa tanto em pagar uma escola cara e boa, que esquece de dizer que ele deve respeitar o professor.
Minha amiga não agüentou sequer um ano na escola. Ficou chocada com a falta de respeito, a obsessão pelo celular, os fones de ouvido literalmente dentro do cérebro, a balbúrdia. Tentou criar estratégias, mudar formatos, abriu caminhos, diálogos, mas nada. Exausta, abatida, sem entender o que faz um bando de jovens do 1º ano do Ensino Fundamental sair de casa para exercitar a criatividade jogando coisinhas em seus celulares, ela jogou a toalha. Pediu demissão. Estava aliviada, mas triste.
Queria muito ensinar coisas mágicas do mundo da Literatura, mas não deu. A sorte é que ela tem turmas particulares de Literatura, então acontece uma coisa engraçada: a classe média paga mais uns trocados, para os filhos que querem mesmo ir para um lugar com o objetivo específico de estudar, já que a sala de aula comum está parecendo um samba do crioulo doido.
Sempre li Paulo Freire com os olhos mais humanos. Antes de morrer, ela já era um mito. Disse e escreveu coisas linda, importantes, fundamentais, que tenho comigo como referência para meu trabalho como professor de Educação Especial, mas tenho críticas, discordo de algumas coisas, acho que tudo que ele disse e escreveu tem sido levado ao pé da letra. Eu, se fosse ele, estaria incomodado.
O professor tem pensado tanto no aluno, que tem esquecido da sua importância. Os valores estão todos virados pelo avesso. O celular novo é mais importante que um poema do Fernando Pessoa. O pêndulo mudou de lado. O aluno vem perdendo sistematicamente os referenciais de respeito, de atenção, cuidado. A sala de aula vem deixando de ser, há algum tempo, um espaço sagrado para a transmissão do conhecimento, para a reflexão, desenvolvimento das potencialidades e visão de mundo. Pauta que Pariu, agora estou ferrado mesmo: usei a frase "transmitir conhecimento". Ninguém transmite conhecimento, nós vamos para a sala de aula para aprender com os educandos, aquela coisa.
Modestamente, acho que um sujeito que passou a vida lendo, anotando, pesquisando, planejando suas aulas, pensando na melhor maneira de passar para seus alunos, está transmitindo conhecimento sim. Outro dia, perguntei aos meus alunos quem sabia o que era uma metáfora. Dos 19 em sala, apenas um sabia, e de forma improvisada, porque não conseguia explicar direito aos colegas. Então, começamos uma nova jornada, em busca de metáforas. Levei livros, poetas, escritores, lemos juntos metáforas, até que ela virou nossa amiga.
Sou professor. Adoro este ofício, fico emocionado quando um jovem aluno vem me mostrar um poeminha simples, início da grande aventura pessoal. Ontem, uma aluna me contou que passou a tarde inteira lendo um romance, e esqueceu do tempo. Outro dia, ela disse que não gostava de ler. Conversamos, rimos, trocamos idéias, mas não tenho o menor pudor de parar uma aula e dar um carão, quando a coisa desanda. Fica aquele silêncio, mas sinto que é um silêncio de respeito, um freio nesta grande esculhambação que este país tem se transformando, porque tudo é culpa do outro. Tem alguém, ali, um professor, que por um momento diz um "não" bem dito.
Depois do silêncio, eu digo:
"Vamos continuar?"
Obrigado por repercutir o texto. Gostaria de trocar alguns e-mails com vc. O meu é tgmafra@gmail.com.
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