Um mantra da indústria, ou melhor dizendo, do mercado, quão afastada da prática e de problemas do mundo atual está a universidade brasileira e quão pouco podem contar com ela. Um caso histrico ilustra a opção que o mercado faz entre lucro imediato e qualidade tecnológica permanente.
Esse caso mostra exatamente o inverso do que é alardeado pelo setor produtivo, supostamente sempre a espera de produtos da universidade e centros de pesquisa e sempre queixando-se de que não lhe são entregues.
Em meados da década de sessenta, o CTA - Centro Técnico da Aeronáutica (hoje Aeroespacial) resolveu desenvolver a metalurgia do titânio, indo do minério ao lingote. Ficou no meio do caminho e não começou pelo começo, mas conseguiu estabelecer em bases seguras o meio de campo; a obtenção da esponja de titânio e - em minha opinião suspeita de participante do processo – para melhorar, e muito, a tecnologia existente na época.
A metalurgia do titânio, desenvolvida nos EUA em 1946 pelo luxemburguês, W.J. Kroll, é extremamente complexa e cara. O processo tomou o nome do seu inventor e inicia com o óxido do metal, cuja transformação direta a metal não pode ser realizada por motivos que não cabe explicar aqui, mas que, uma vez transformado em tetracloreto líquido na temperatura ambiente, é reduzido pelo magnésio. Essa reação, que deve ser muito bem controlada, pois gera ingentes quantidades de calor, forma a dita esponja de titânio. O processo continua com a vaporização do subproduto da reação, a quebra dessa esponja, sua prensagem em pequenos cilindros e a formação de uma longa barra composta por uma fileira desses cilindros soldados um ao outro. E esse foi o caminho percorrido pelo projeto do CTA, de 1969 a 1989, data em que toda a tecnologia foi repassada à sociedade.
O Projeto Titânio nasceu inteligente. Com isso quero dizer que não se intentou reinventar a roda nem exibir capacidade científica, que não havia. Resolveu-se simplesmente reconstruir uma realidade que funcionava na Usina Piloto de fabricão de esponja do Bureau of Mines, Colorado, EUA, recheá-la com gente capaz e ver no que dava. A ideia era conhecer o processo evitando sair do zero, já que os primeiros equipamentos reproduziam fielmente os da usina do Bureau e partir para sua melhoria.
O conjunto funcionou perfeitamente, produziam-se blocos de esponja com 50 kg e novas ideias geravam melhorias incrementais. Quando o conhecimento acumulado alcançou massa crítica um equipamento totalmente novo foi projetado, construído e testado. Tratava-se do reator-retorta, um avanço notável, mesmo se analisado no plano internacional.
Veio a patente, o Prêmio Governador do Estado, a capacidade da usina piloto aumentou sobremaneira, e blocos de esponja de titânio de 750 kg com alta qualidade se tornaram fato corriqueiro. E, por fim, os resultados de todo esse esforço foram transferidos para uma grande empresa mineradora. De que se tratava esse presente? Da tecnologia de fabricação de um metal utilizado na aeronáutica (consumo de 17.000 – 23.000 t/ano), nas indústrias da energia e química (20.000 25.000 t/ano), na medicina (800 t/ano) e outras, tendo somado um consumo próximo a 50.000 t em 2003 (1).
A importância do titânio para o Brasil pode ser avaliada de diversos pontos de vista: (i) recursos minerais: embora o titânio não seja um metal raro e suas principais fontes ilmenita e rutilo tenham vasta distribuição geográfica, do anatásio - que o minério com maior teor do metal o Brasil tem a maior reserva mundial ; (ii) indústria aeronáutica: a EMBRAER a terceira maior do mundo; hoje importa ligas de Ti da Rússia; (iii) indústria química e petroquímica: grande consumo do metal em válvulas e tubulações; (iv) área médica: próteses, de quadril e dentárias; parafusos e placas.
Nos documentos de cessão estava acordado que, além de produzir a esponja, a empresa recipiente do processo desenvolvido e patenteado pelo CTA iria mergulhar de cabeça no P&D das etapas que faltavam: a cloração do minério, só resolvida em escala de laboratório no CTA, e a fusão e lingotamento da esponja, procedimentos ainda carentes de garantia de reprodutibilidade. O que aconteceu foi exatamente o contrário: o projeto foi descontinuado e os equipamentos devem jazer empoeirados em algum canto, talvez ainda guardando ecos da alegria de seus idealizadores quando da realização de seus sonhos e esforços. Poesia e sentimentalidade aparte: os tecnocratas fizeram uma enorme besteira.
Os argumentos (??!!) apresentados para o término das atividades foram puramente contábeis e imediatistas; aparentemente o Projeto Titânio não estava dando lucro e, como tal, devia ser extinto, segundo a ótica míope de quem não consegue ponderar nada que não seja numérica e imediatamente ponderável. Somar colunas de números é fácil; difícil é avaliar o que representa uma tecnologia no longo prazo para um país que aparentemente está deixando de ser o país do futuro. Hoje, a tecnologia de produção do titânio está na mente de, no máximo, meia dúzia de pessoas; depois delas tudo dever ser reaprendido.
Esse caso mostra exatamente o inverso do que é alardeado pelo setor produtivo, supostamente sempre na espera de produtos da universidade e centros de pesquisa e sempre queixando-se de que não lhe são entregues.
O fato de que o CTA seja um centro de Pesquisas e não uma universidade não muda a essência da questão. E talvez valha a pena perguntar quantos outros casos semelhantes teriam ocorrido, mercê de apressadas contabilidades, pouca cultura científica e visão que só alcança o momento atual do mercado.
(1) FROES F.H. How to market titanium: lower the cost. Journal of Metals, v. 56, n.2, pg. 39 (2004).
Maurizio Ferrante possui graduação em Engenharia Metalúrgica pela Escola de Engenharia Mauá (1968) e doutorado em Materials Science - University of Sussex (1977). É professor do Departamento de Engenharia de Materiais da Universidade Federal de São Carlos (SP)
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