Moniz Bandeira e as fantasias sobre a morte de Jango
Para o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira (ao lado de Brizola em Paris na foto acima, feita em 1978), é preciso um mínimo de cautela antes de se veicular versões sem base, como as que circulam atualmente, atribuindo a assassinato a morte de João Goulart, o presidente deposto pelo golpe militar de 1964. “Não é admissível apresentar como verdade uma versão que não pode ser comprovada por documentos ou outros depoimentos. É charlatanice”, disse ele enfaticamente, na entrevista exclusiva que me concedeu para Carta Maior.
Baiano de nascimento, Moniz Bandeira está com 74 anos e atuou durante vários anos como jornalista e militante político, principalmente no Partido Socialista, antes de formar-se em Direito e depois doutorar-se em Ciência Política pela Universidade de São Paulo. Posteriormente lecionou em Universidades no Brasil e no exterior, especializando-se em política internacional – especialmente as relações do Brasil com os EUA e a Argentina.
Um de seus principais livros, O governo João Goulart – As lutas sociais no Brasil, 1961-1964 (ver a capa de uma edição anterior abaixo, à direita) foi publicado em 1977, quando morava na Europa, depois de ter cumprido pena no Brasil durante o regime militar e passar algum tempo exilado no Uruguai – onde conviveu com outros brasileiros cassados e perseguidos pela ditadura, entre eles Jango e o ex-governador Leonel Brizola. A 8ª edição desse livro, revista e ampliada, será lançado em maio. Ela se refere ainda ao papel desempenhado pela diplomacia dos EUA no episódio da fuga de Brizola do Uruguai, sob a ameaça da operação Condor.
Moniz Bandeira escreveu também, entre outros, os livros Presença dos EUA no Brasil (Dois Séculos de História);Cartéis e Desnacionalização; Brizola e o trabalhismo; O Eixo Argentina-Brasil – O processo de integração da América Latina, Brasil-Estados Unidos; A rivalidade emergente (1955-1980);Brasil, Argentina e EUA – Da tríplice aliança ao Mercosul; As relações perigosas: Brasil-Estados Unidos (De Collor a Lula), Fórmula para o caos – A derrubada de Salvador Allende, 1970-1973; Formação do Império Americano (Da guerra contra a Espanha à guerra do Iraque).
Anos após seu retorno ao Brasil, Moniz Bandeira passou seis anos (de 1996 a 2002) como adido cultural no Consulado Geral do Brasil em Frankfurt. Em seguida, já aposentado, continuou a morar na Alemanha, país sobre o qual também escreveu (três livros: A Reunificação da Alemanha – do Ideal Socialista ao Socialismo Real; O ‘milagre alemão’ e o desenvolvimento do Brasil; Brasil e Alemanha, a construção do futuro). Abaixo, minhas perguntas e as respostas do historiador.
Argemiro Ferreira – Professor Moniz Bandeira, o senhor viveu no Brasil as crises de 1954, 1961 e 1964 e escreveu – com o apoio do presidente deposto no golpe militar – o livro O governo João Goulart, agora em 8ª edição. Depois do golpe, cumpriu dois anos de prisão, exilou-se no Uruguai, conviveu ali com o ex-presidente e voltou a ter muito contato com ele entre 1974 e 1976, quando pesquisava para o livro, com a colaboração do próprio Jango. A última vez que o viu foi um mês antes de sua morte, ocorrida em dezembro de 1976 no Uruguai. Como vê as especulações atuais sobre a hipótese de que foi assassinado?
Moniz Bandeira – As especulações sobre a hipótese de que Goulart foi assassinado não são atuais. Datam desde, pelo menos, o dia imediato ao seu falecimento. E o que ocorre agora é uma exploração do depoimento de um delinqüente uruguaio, preso no Rio Grande do Sul, Mario Barreiros Neira, um megalomaníaco. O deputado Miro Teixeira (PDT-RJ) nem quis convocá-lo para depor na comissão que investigou a morte de Goulart por considerá-lo sem credibilidade.
AF – A primeira versão de assassinato, que começou a circular logo depois da morte do ex-presidente, sugeria envenenamento e levantava suspeitas contra a própria viúva, Maria Tereza Goulart, que teria negado autorização para uma autópsia. Mais tarde, ao voltar, a hipótese veio com roupagem nova e ganhou espaço mais amplo na mídia. Já então tratava-se de uma “confissão” – do uruguaio Mario Ronald Barreiros Neira, que cumpre pena no Brasil como criminoso comum e cuja extradição é reclamada pelo Uruguai. Porque questiona a credibilidade dele e da versão que sustenta?
MB – A hipótese do assassinato que circulou logo após o enterro de Goulart sugeria uma troca de medicamentos, para acusar, injustamente, a viúva. Maria Tereza Goulart na verdade não negou autorização para uma autópsia. Simplesmente ninguém pediu que fosse feita a autópsia. Como a própria Maria Tereza declarou, esse fato era “absolutamente normal”, pois “a autópsia só é feita quando existem dúvidas sobre a causa da morte. Não foi este o caso”. Ela disse: “Vi meu marido sofrendo o infarto”. Em 1982, ela e os filhos recusaram-se a autorizar a exumação, por considerá-la desnecessária.
AF – Um confronto entre as duas versões expõe contradições entre elas? A primeira, de Enrique Foch Diaz, chegou a ser apoiada na época por Danilo Groff, militante do PDT próximo a Leonel Brizola. Foi repudiada publicamente por Maria Tereza e os filhos de Jango, João Vicente e Denise. Está no livro João Goulart – El Crimen Perfecto. Busca comprometer a viúva. Já a de Barreiros Neira, exposta em depoimento dele na TV Senado em 2006, foi defendida nos originais do livro dele, ainda inédito. Depois de se referir ao livro em 2004 com o título de Morte Premeditada, ele passou depois a chamá-lo de Entrevista com um réu confesso – Todas as respostas sobre o assassinato de João Goulart. Pode expor as diferenças entre as alegações de Barreiros Neiva e as de Foch Diaz?
MB – Nenhuma das versões é consistente com a lógica e com os fatos. Nem Enrique Foch Díaz, que apresentou a denúncia de “morte duvidosa” duas vezes à Justiça, uma em Corrientes, na Argentina (1982), a outra em Maldonaldo, no Uruguai (2000), nem Danilo Groff, no Rio Grande do Sul, puderam confirmar suas acusações e foram condenados à pena de prisão, em decorrência de processo movido, com o apoio de Maria Tereza Goulart e de sua filha Denize, por Cláudio Braga, ex- secretário particular de Goulart. Quanto às diferenças, eu demonstro claramente no apêndice que escrevi para a 8ª edição revista e ampliada de meu livro O Governo João Goulart, a ser lançado em maio pela Editora UNESP. O que caracteriza todas as versões é a falta de consistência. Não existe nenhum só documento, nenhuma prova, de que houve uma tal Operação Escorpião, referida por Mario Barreiros. O fato de que as atividades de Goulart eram monitoradas pelos serviços de inteligência do Brasil, Uruguai e Estados Unidos, não constitui novidade e muito menos serve para dar qualquer fundamento à versão de que foi assassinado.
Quando solicitei ao professor Oswaldo Munteal (defensor da versão de Barreiros) que apresentasse uma prova documental para confirmar a existência da Operação Escorpião, cuja única fonte é a cabeça do próprio Barreiros), João Vicente retransmitiu para mim e-mails de três amigos que trabalham para o Instituto Presidente João Goulart em defesa da pesquisa sobre a morte de Goulart. Estranhei essa atitude. Nunca fui contra qualquer pesquisa. Quem quiser, tem todo o direito de pesquisar sobre tudo que julgar necessário. O professor Oswaldo Munteal e os que estão a trabalhar com João Vicente podem até pesquisar se há chifres na cabeça de burros. Mas o que não é admissível é apresentar como verdade uma versão que não pode ser comprovada por documentos ou outros depoimentos. É charlatanice.
AF – Suas críticas às duas versões têm sido contundentes. Na mais recente mostrou que Barreiros Neiva mudado e adapta sua história desde o primeiro depoimento, quando alegava que Morte Premeditada seria publicado pela editora Menz de Porto Alegre, o que na realidade não aconteceu. Como avalia agora a atual versão sustentada por ele? Acha que a inventou apenas na obsessão de escapar à Justiça comum, fingindo-se ex-agente arrependido da repressão na ditadura uruguaia?
MB – Realmente, existem diferenças entre os diversos depoimentos prestados por Mario Barreiros, desde que, em 2001, pretendeu evitar que sua extradição para o Uruguai, por crimes comuns, fosse aprovada no Brasil pelo STF. Alegou então que seu único crime foi escrever um livro onde relata o assassinato de João Goulart, que “foi morto a pedido do DOPS” na Argentina, “com a participação de agentes uruguaios e argentinos [...]”. Não falou de sua participação, nem mencionou os nomes do delegado Sérgio Fleury e do presidente Geisel. Aliás, não foi comprovada a existência dos personagens por ele citados como participantes da suposta Operação Escorpião, salvo a do médico Carlos Milles, que nada podia dizer, pois já havia morrido. Em realidade, Mario Barreiros, homem bem informado, mesmo preso em Porto Alegre sabia sobre o livro de Foch Díaz e, inicialmente, atribuiu a si a autoria de um livro igual, para evitar que o STF aprovasse sua extradição. Não conseguiu. O STF não encontrou fundamento nas suas alegações e aprovou o parecer do ministro José Neri da Silveira, em favor da extradição, que somente ainda não foi efetuada porque Mario Barreiros tem de cumprir uma pena de mais de 19 anos no Brasil. Depois, Mario Barreiros desenvolveu sua estória, mesclando fatos do seu conhecimento com outros de sua imaginação, para ganhar notoriedade como eventual criminoso político. Percebe-se nele uma clara tendência para a megalomania.
Em novembro de 2009, Mario Barreiro, diante de testemunhas, deu uma entrevista ao Canal Brasil de televisão, monitorada e analisada pelo módulo de Tempo Real do Programa de Análise de Voz Multicamadas – AVM 6.50, um polígrafo (detector de mentiras), da empresa TRUSTERBRASIL. Com base no arquivo de voz obtido, o perito Mauro Nadvorny, da TRUSTERBRASIL, analisou a entrevista e o módulo de análise de gravações do mesmo programa. O sumário da detecção apontou 60 amostras de verdade, contra 229 amostras de que estava provavelmente mentindo, 266 amostras de fraude e 720 imprecisões, das quais uma grande parte com indicação de fraude pelo perito. A análise concluiu que Mário Barreiros Neira “não está sendo verdadeiro quando relata que pertenceu ao serviço secreto uruguaio”. Trata-se de afirmação falsa, uma fraude. O mesmo ocorre quando relata em que consistia a Operação Escorpião, que seria centralizado principalmente em João Goulart. Em suma, a conclusão da análise foi a de que Mario Barreiros Neira “não foi verdadeiro na maior parte da entrevista e de sua participação nos fatos narrados”. Entretanto, fontes do Instituto João Goulart difundiram, através dos jornais Correio do Povo, de Porto Alegre, e La República, de Montevidéu, bem como de sites e blogs, a notícia segundo qual Mario Barreiros, por cerca de duas horas, detalhou episódios envolvendo a morte do líder político, e “durante boa parte do depoimento, o detector de mentiras apontou serem verdadeiras as informações relatadas por ele”. É uma informação falsa, irresponsável, que afeta a credibilidade da instituição e de qualquer investigação.
Continue lendo a entrevista no excelente “Blog do Argemiro Ferreira”...
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