quinta-feira, 1 de abril de 2010

Serra propagandeia milagres e privatiza até poema de Vinicius


«Privatize-se tudo, privatize-se o mar e o céu, privatize-se a água e o ar, privatize-se a justiça e a lei, privatize-se a nuvem que passa, privatize-se o sonho, sobretudo se for diurno e de olhos abertos. E, finalmente, para florão e remate de tanto privatizar, privatizem-se os Estados, entregue-se por uma vez a exploração deles a empresas privadas, mediante concurso internacional. Aí se encontra a salvação do mundo... E, já agora, privatize-se também a puta que os pariu a todos».
José Saramago

Professores, segurança pública, teatro e muitos outros foram vítimas do discurso de despedida

O discurso de despedida do governador José Serra está inscrito numa longa tradição da retórica, por que não dizer, universal – aquela que promete uma mulher para cada homem e um homem para cada mulher. Sempre na vanguarda, por pouco não revelou que sua operosa administração conseguiu uma mulher paulista para cada homem paulista e um homem paulista para cada mulher paulista.
Fora isso, conseguiu tudo, até que a criminalidade – em franca alta em todas as suas modalidades, segundo as estatísticas da Secretaria de Segurança – tivesse uma redução espetacular. Isso porque “repudiamos sempre a espetacularização, bravatas, a busca da notícia fácil, o protagonismo sem substância”. Por isso, revelou que “os professores e servidores estão ganhando mais”, do que se conclui que ele faz milagres – os servidores conseguem ganhar mais sem que ele tenha concedido aumento.
Porém, nada se compara a: “... não pude deixar de me lembrar de uma poesia do Vinícius de Morais, que eu, espero que acreditem, eu também fiz teatro, não é? Fui diretor de teatro na Escola Politécnica. (…) Aprendi muita poesia. Eu me lembrei de uma poesia do Vinícius que eu sabia de memória, até hoje eu sei quase toda de memória. Chamada ‘O Operário em Construção’. Ele dizia: ‘Pareceu me, então, que até aquele momento ele, o operário, desconhecia esse fato extraordinário, que o operário faz a coisa e a coisa faz o operário. Casa, cidade, nação... Tudo o que existia era ele quem o fazia, ele, um humilde operário, um operário que sabia exercer a sua profissão’. Eu me senti muito realizado, muito emocionado e pensei comigo: ‘Olha...Valeu à pena’”.

POEMA

“O Operário Em Construção” não é um poema sobre a mera criação de valor pelo trabalho. É um poema sobre a luta pela liberdade, a recusa do operário a aceitar a expropriação daquilo que é seu, daquilo que criou, e, em especial, é um poema sobre a integridade, sobre os que dizem não a se vender, sobre a eternidade dos que não traem aos outros - e, sobretudo, não traem a si mesmos -, sobre como um ser humano, se torna consciente, e recusa degradar sua própria humanidade aceitando o suborno, a traição ou rendendo-se à delação e à tortura. Daí, seu belo final: “E o operário ouviu a voz/ De todos os seus irmãos/ Os seus irmãos que morreram/ Por outros que viverão./ Uma esperança sincera/ Cresceu no seu coração/ E dentro da tarde mansa/ Agigantou-se a razão/ De um homem pobre e esquecido/ Razão porém que fizera/ Em operário construído/ O operário em construção.”
Esta é a razão porque Vinícius colocou como epígrafe do poema o trecho do Evangelho de São Lucas em que Jesus recusa o assédio de Satanás:
“E o Diabo, levando-o a um alto monte, mostrou-lhe num momento de tempo todos os reinos do mundo. E disse-lhe o Diabo:
“– Dar-te-ei todo este poder e a sua glória, porque a mim me foi entregue e dou-o a quem quero; portanto, se tu me adorares, tudo será teu.
“E Jesus, respondendo, disse-lhe:
“– Vai-te, Satanás; porque está escrito: adorarás o Senhor teu Deus e só a Ele servirás.”
No poema, Vinícius assim descreve a recusa do operário:
“Um dia tentou o patrão/ Dobrá-lo de modo vário./ De sorte que o foi levando/ Ao alto da construção/ E num momento de tempo/ Mostrou-lhe toda a região/ E apontando-a ao operário/ Fez-lhe esta declaração:/ – Dar-te-ei todo esse poder/ E a sua satisfação/ Porque a mim me foi entregue/ E dou-o a quem bem quiser./ Dou-te tempo de lazer/ Dou-te tempo de mulher./ Portanto, tudo o que vês/ Será teu se me adorares/ E, ainda mais, se abandonares/ O que te faz dizer não.// Disse, e fitou o operário/ Que olhava e que refletia/ Mas o que via o operário/ O patrão nunca veria./ O operário via as casas/ E dentro das estruturas/ Via coisas, objetos/ Produtos, manufaturas./ Via tudo o que fazia/ O lucro do seu patrão/ E em cada coisa que via/ Misteriosamente havia/ A marca de sua mão./ E o operário disse: Não!// Loucura! – gritou o patrão/ Não vês o que te dou eu?/ – Mentira! – disse o operário/ Não podes dar-me o que é meu.”
Serra, presidente da UNE, abandonou a luta no próprio dia do golpe de 1964 – refugiou-se na embaixada da Bolívia, deixando a UNE sem presidente, no momento em que os estudantes iriam se transformar na principal força que resistiria à ditadura nos anos subsequentes.
Depois de um período no Chile, e de um episódio pouco explicado, em que ele foi preso pelos golpistas de Pinochet, levado ao Estádio Nacional, e em seguida liberado sem problemas, Serra foi para os EUA – e, ao contrário de milhares de brasileiros que tiveram alguma participação política, os americanos permitiram que entrasse no país, e, mais: abrigaram-no em duas das universidades privadas mais caras da elite ianque, Cornell e Princeton, onde, mesmo sem graduação, Serra fez pós-graduação. Por que a casta norte-americana investiu num pobretão nascido na Mooca, que vivia fazendo discursos esquerdistas antes do golpe que ela patrocinou?
Ao voltar ao Brasil, sua associação com Fernando Henrique – e com o dinheiro da Fundação Ford (cf., “Os 40 anos da Fundação Ford no Brasil”, Fundação Ford, 2002) - é por demais conhecida, assim como o papel dessa fundação em repassar o dinheiro da CIA (cf. Frances Stonor Saunders, “Quem pagou a conta? – A CIA na Guerra Fria da Cultura”, Record, 2008).
Na mesma época, Serra tornou-se o principal editorialista da “Folha de S. Paulo” - como, aliás, ele mesmo afirma em seu baboso necrológio do dono desse jornal, conhecido por sua colaboração com a ditadura, pelo acobertamento e apoio a torturas e assassinatos, e uma das publicações mais reacionárias, antinacionais e antipopulares do país.

TEMPO

Sobre os anos imediatamente posteriores, melhor será reproduzir o testemunho de um homem que se considerou durante muito tempo um dos maiores amigos de Serra. Disse o jurista, depois ministro e vice-presidente do Superior Tribunal Militar (STM), Flavio Bierrenbach, no programa eleitoral da campanha de 1988: “Serra entrou pobre na Secretaria de Planejamento do Governo Montoro e saiu rico. Ele usa o poder de forma cruel, corrupta e prepotente. Poucos o conhecem. Engana muita gente. Prejudicou a muitos dos seus companheiros. Uma ambição sem limite. Uma sede de poder sem nenhum freio”.
O resto, os brasileiros mais jovens sabem – sua participação como ministro do Planejamento e presidente da Comissão de Privatização de Fernando Henrique, a proliferação de epidemias quando foi ministro da Saúde, sua indústria de dossiês difamatórios contra adversários, sua afinidade eletiva pelo neoliberal-entreguismo, a sofreguidão privatizadora que levou aos desastres no Metrô, Rodoanel, Tietê, Saúde, Educação, Segurança – e mais não dizemos, leitores, porque haverá tempo para dizer e informar tudo o que precisa ser dito e informado.

CARLOS LOPES (Hora do Povo)

Veja também:
“Continuar o projeto de Lula é a razão da minha candidatura”

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