Ameaça de ‘quebra’ do sistema justifica reformas há mais de dez anos. Mas os números mostram que a previdência brasileira tem apresentado superávits bilionários
Após dois meses de muitos debates, greves e manifestações contrárias nas ruas, a França aprovou, no fim de outubro, uma reforma na previdência que aumenta de 60 para 62 anos a idade mínima de aposentadoria — isso depois de uma série de tentativas que já vinham sendo feitas nesse sentido desde os anos 1990.
No Brasil, duas reformas – ou, como alguns autores preferem chamar, contrarreformas, pois tiveram caráter recessivo – aconteceram recentemente: a primeira em 1998, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e a segunda em 2003, como uma das primeiras ações do governo Lula. A história da previdência no Brasil, as implicações dessas duas reformas e as perspectivas para o futuro você fica conhecendo agora, nesta reportagem.
Mudar pra quê?
A previdência social, por definição, oferece benefícios como salário-desemprego, seguro-materninade e cobertura em caso de invalidez e doença dos segurados – além da aposentadoria, área que rende mais discussões.
Via de regra, hoje os brasileiros podem se aposentar aos 65 anos de idade ou com 35 anos de contribuição à previdência, se forem homens, e com 60 anos, ou 30 de contribuição, no caso das mulheres (veja as condições gerais para se aposentar) .
Só que o desenho da população do país está mudando. Se em 1980 a expectativa de vida de um brasileiro era de 61,8 anos, hoje é de 72,9, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); a diminuição da taxa de natalidade, por outro lado, leva a crer que, no futuro, haverá menos jovens para sustentar a previdência com suas contribuições. Ter uma população formada por mais velhos e menos jovens significa também ter mais gente recebendo pensões sem que a receita do sistema aumente. O raciocino é simples: se não forem feitas reformas na previdência, ela irá ‘quebrar’.
Essa lógica, que em geral serve de argumento para as propostas de (contra) reforma, não é consensual entre estudiosos do tema. Os relatórios da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Anfip), aliás, mostram que, embora muito se tenha dito que a previdência é deficitária no Brasil, o sistema tem apresentado superávits de bilhões de reais anualmente e não está nem perto de falir.
Os pesquisadores ouvidos pela Poli ajudam a compreender o que está por trás desses argumentos e quais são, de fato, as mudanças necessárias. Antes, porém, é importante entender como se construiu o sistema atual.
Como chegamos até aqui
Em sua tese ‘Previdência social no Brasil: da revolução passiva à contrarreforma’, a professora e pesquisadora Andréa Teixeira, da Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), localiza na década de 1920 o primeiro sistema previdenciário do Brasil: em 1923, a Lei Eloy Chaves criou as Caixas de Aposentadoria e Pensão (CAPs), inicialmente restritas às empresas ferroviárias e, mais tarde, estendidas às marítimas e portuárias. Ela lembra, no entanto, que as caixas, vinculadas às empresas, eram privadas, e o papel do Estado se resumia a fiscalizar o cumprimento da lei.
Assim, foi apenas em 1933, já no governo de Getúlio Vargas, que surgiu o sistema previdenciário público, com a concepção dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs), cuja receita era formada por contribuições dos segurados, das empresas e do Estado. Ao contrário das CAPs, os IAPs não estavam vinculados a empresas, mas sim a todos os trabalhadores de determinadas categorias profissionais, como os marítimos e os bancários – essas categorias, por sua vez, dispunham necessariamente de representação sindical.
É por isso que muitos autores consideram que o sistema dividia os trabalhadores e cooptava as lideranças sindicais – o presidente de cada IAP era designado pelo presidente da República. “Os IAPs representam uma grande mudança em relação às CAPs, que compunham um sistema mais localizado e menos controlado pelo Estado. Com os IAPs, o Estado chama para si essa proteção social e a organiza, embora os institutos ainda estivessem nas mãos dos trabalhadores. Esse é o formato da relação entre Estado e classe trabalhadora organizada. A fragmentação do sistema – cada categoria tinha uma proteção social com regras e benefícios diferentes – acabava reproduzindo as desigualdades da própria classe trabalhadora”, explica Sonia Fleury, professora da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getúlio Vargas.
A lógica da fragmentação só foi fortemente alterada em 1966, já durante a ditadura civil-militar, com a unificação dos IAPs no Instituto Nacional da Previdência Social (INPS). Mas Andréa Teixeira lembra que, embora a unificação pudesse representar um avanço, o quadro geral era ruim: “Por um lado, a unificação rompeu com a diferenciação corporativa que vinha das origens da instauração dos primeiros mecanismos previdenciários: universalizou-se, para todos os segurados, o mesmo padrão de benefícios. Mas, por outro, esta universalização se efetivou mediante uma nivelação por baixo, generalizando-se como padrão único os menores níveis anteriores de prestações”, escreve.
De acordo com Sonia Fleury, nesse momento, os trabalhadores foram eliminados da gestão da previdência, sob a alegação de que o sistema estava falido por problemas de gestão. “Realmente, a previdência estava falida, mas por conta da utilização dos recursos para fazer grandes obras nacionais – desde siderúrgicas até a cidade de Brasília – sem que esses recursos fossem devolvidos ao sistema”, conta. Ela diz ainda que havia também muitos problemas de evasão, por conta da inflação, que já era muito alta, o que levou a um quadro de grande debilidade financeira. “O governo culpou os trabalhadores por tudo isso, transformando a previdência num órgão do governo, e não mais dos trabalhadores”, completa.
Em 1977, foi criado o Sistema Nacional de Previdência e Assistência Social (Sinpas), que compreendia o INPS, responsável pelos benefícios previdenciários; o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps), que cuidava da assistência médica, o Instituto de Administração Financeira da Previdência e Assistência Social (Iapas), que se ocupava da arrecadação e da fiscalização das contribuições e da gestão dos recursos; a Legião Brasileira de Assistência (LBA), para a assistência social; a Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor (Funabem); e a Dataprev (Empresa de Processamento de Dados da Previdência Federal).
Reflexos na saúde
A assistência de saúde oferecida pelo Inamps era, segundo Sonia Fleury, baseada em uma medicina de caráter estritamente curativo. “Era para repor o trabalhador, com uma base hospitalar grande concentrada nas grandes cidades, onde estavam os trabalhadores sindicalizados”, conta.
Além disso, Andréa Teixeira avalia, em seu trabalho, que a previdência se colocou como uma grande fomentadora da privatização e da mercantilização da assistência, uma vez que o INPS se tornou o maior comprador de serviços do setor privado.
Para Sonia Fleury, tudo isso gerou grandes problemas para a construção do Sistema Único de Saúde (SUS), instituído pela Constituição de 1988: “Um país que opta por um sistema único de saúde não pode manter uma medicina previdenciária e outra do Ministério da Saúde (MS). É preciso juntar as duas coisas. E, ao se incorporar o Inamps ao MS, o modelo previdenciário – hospitalocêntrico, de ação curativa e com uma rede concentrada – era o preponderante”, comenta a pesquisadora.
O SUS não foi a única novidade dessa área na Constituição. Ela também estabeleceu o modelo de seguridade social, que integrava as ações de previdência, saúde e assistência social, preocupando-se em definir um sistema mais forte de financiamento. Até então, a fonte de financiamento era quase exclusivamente a contribuição de segurados. “Quando funciona dessa forma, se há crescimento econômico, com muitas pessoas empregadas e contribuindo, o sistema tem recursos, e em épocas de crise ele entra em falência. Com a Constituição, havia a preocupação de não ter como fonte exclusiva de financiamento da proteção social a folha de salário – buscou-se, então, ter fontes alternativas para reduzir essa dependência do financiamento ao ciclo econômico”, explica Sonia.
Por isso, foram criadas duas novas contribuições sociais voltadas para a seguridade: a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins), que incide sobre o faturamento das empresas, e a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), que incide sobre o lucro das empresas. As demais fontes de receita são as contribuições de empregados e empregadores sobre os salários e os recursos arrecadados com as loterias oficiais.
Na prática, a integração que o modelo da seguridade social propunha acabou não ‘pegando’: saúde, previdência e assistência continuaram existindo como áreas paralelas. “No que diz respeito ao orçamento, por exemplo, temos que o direito à aposentadoria é um direito contratual: o segurado contribui e tem direito à aposentadoria. Não é a mesma coisa na saúde e na assistência. São direitos de naturezas diferentes. Portanto, após a aprovação do sistema, os recursos da seguridade acabaram se destinando prioritariamente ao pagamento dos benefícios previdenciários – até porque, antes, quem arrecadava era mesmo a previdência. O Inamps passou para o MS, mas não repassaram os recursos necessários”, pondera Sonia Fleury.
Dez anos depois…
Foi no governo de Fernando Henrique Cardoso, em 1998, dez anos após a promulgação da Constituição, que uma Emenda Constitucional (EC) apresentou as primeiras medidas importantes para mudar o sistema previdenciário: a EC 20, que havia sido proposta três anos antes. Em sua tese, Andréa Teixeira nota que, com a emenda, a seção sobre previdência social da Constituição foi alterada já no seu primeiro artigo, o no 201: “A previdência social será organizada sob a forma de regime geral, de caráter contributivo e de filiação obrigatória, observados critérios que preservem o equilíbrio financeiro e atuarial (…)”, diz a nova redação. A ênfase na preservação do equilíbrio financeiro e atuarial, que não existia no texto anterior, dá o tom da emenda. Entre outras medidas, ela acaba com o critério do tempo de trabalho para pedir aposentadoria, antes previsto no artigo 202, e estabelece, em seu lugar, o tempo de contribuição.
O regime geral de previdência social (RGPS), que trata dos trabalhadores do setor privado, passou a ter o limite máximo para o valor dos benefícios fixado em R$ 1.200, a ser corrigido anualmente (hoje, ele é de cerca de R$ 3,5 mil). Além disso, para os servidores públicos se aposentarem, passou-se a exigir uma combinação entre idade e tempo de contribuição – até então, era possível que eles se aposentassem ao atingir uma certa idade mínima ou após trabalhar por determinado período, sem conjugar os dois fatores. Segundo Andréa, a ideia era unificar os regimes de previdência, inserindo os servidores públicos no RGPS e submetendo-os ao seu teto de benefícios – mas isso não foi possível por conta da intensa oposição feita na época.
No ano seguinte, o governo aprovou ainda o fator previdenciário , que exige mais tempo de contribuição para que o aposentado receba sua pensão integralmente.
Mas talvez a maior mudança feita na legislação durante o governo de Fernando Henrique tenha sido, também com a EC 20, a instituição de um regime de previdência privada, “de caráter complementar e organizado de forma autônoma em relação ao regime geral de previdência social” – embora algumas empresas já contassem com previdência privada desde a década de 1970, a Constituição de 1988 não previa isso.
Privatizando o sistema
“A privatização possível na previdência é a do desmonte”. A afirmação é de Sara Granemann, professora da Escola de Serviço Social da UFRJ. De acordo com ela, assim como no caso das universidades federais, não é possível fazer uma privatização clássica da previdência, como se faz com empresas estatais. “A privatização possível é a da contenção do crescimento da previdência pública, que abre um enorme espaço para a venda de previdências privadas”, explica. E a fragilização da previdência pública se dá por meio de estratégias como o estabelecimento de um teto de benefícios de valor baixo e de dificuldades impostas para alguém se aposentar, como foi feito na reforma dos anos 1990 no Brasil, justamente ao mesmo tempo em que se abriu a legislação para a organização de um regime de previdência privada, também chamada ‘previdência complementar’ – de acordo com Sara, um modelo estadunidense que teve grande êxito em países como Inglaterra e Holanda.
A professora explica que há dois tipos de previdência complementar: a aberta e a fechada. A primeira pode ser adquirida por qualquer pessoa e é vendida por bancos e seguradoras, como o Vida Gerador de Benefício Livre (VGBL) e o Plano Gerador de Benefício Livre (PGBL). “São planos abertos para qualquer um que tenha a possibilidade de pagar uma certa quantia todos os meses. E eles são muito diferenciados: há a possibilidade de pagar quantias relativamente baixas, como R$ 100”, conta a professora.
De acordo com ela, a previdência complementar aberta funciona mais ou menos como um título de capitalização – como uma ‘poupança previdenciária’ que se contrata por um largo tempo. “Em geral, há contratos rigorosos, e os bancos ganham no longo prazo, com os juros sobre essa poupança. Assim, quando é preciso retirar o dinheiro antes do tempo contratado, o contratante perde significativas importâncias, que vão desde 50% a 75% do que já foi poupado. E eles são uma carta em branco aos bancos, já que são de longo prazo. Muitos pais têm feito essa poupança para os filhos – inclusive os bancos, com estratégias de marketing eficazes, têm feito esse tipo de propaganda”, completa Sara.
A outra forma de previdência complementar é a fechada, também conhecida como fundo de pensão. Os fundos não são abertos a qualquer pessoa física: para fazer parte, é preciso ser trabalhador de uma determinada empresa ou de uma determinada categoria. De acordo com Sara, ambas as formas cresceram no país na última década, mas sua construção remonta à ditadura. “Nos anos 1970, a previdência complementar foi o principal instrumento impulsionador do mercado de capitais no Brasil. Era preciso dinheiro para movimentar esse mercado, e a grande ideia planetária já era a da previdência complementar. Aqui, isso foi ofertado primeiramente para os trabalhadores das empresas estatais – o general Ernesto Geisel, que foi presidente da Petrobras, foi um grande animador da construção de fundos de pensão no Brasil, como é o caso da Petros, o fundo da Petrobras”, conta a professora.
De acordo com ela, hoje há cerca de 400 fundos de pensão no Brasil, que movimentam entre 15% e 22% do Produto Interno Bruto (PIB) do país – os três maiores são o Previ, do Banco do Brasil, a Petros e o Funcef, da Caixa Econômica Federal. “Os trabalhadores depositam todos os meses uma certa quantidade de dinheiro que se transforma em massas gigantescas de capital, porque é investido em capital fictício , em títulos públicos ou capital portador de juros, em ações de empresas como a Vale, a Embraer e outras”, diz Sara, descrevendo uma capitalização que está presente também na previdência complementar aberta.
Ela afirma ainda que, durante o governo de Fernando Henrique, os fundos de pensão foram os esteios das privatizações das estatais, emprestando dinheiro para realizar as operações. “Já no governo Lula, foram instrumentos fundamentais para a sustentação das taxas de juros e a compra de títulos da dívida do Estado brasileiro”, comenta.
2003: o processo continua
A contrarreforma feita no fim dos anos 1990 ficou incompleta: embora tenha endurecido as regras para os trabalhadores do setor privado, com o estabelecimento de um teto de benefícios baixíssimo, não conseguiu atingir tão largamente os servidores públicos. A EC 41, aprovada no fim de 2003, já no primeiro ano do governo Lula, aprofundou as mudanças da década anterior. O texto institui a contribuição de inativos e pensionistas e acaba com a aposentadoria integral para servidores que ingressassem no serviço público a partir de 2004, estabelecendo como teto de benefícios para servidores o teto do RGPS.
Para Sara Granemann, as mudanças nas regras para servidores impulsiona fortemente a venda de previdência complementar. “Os servidores públicos são, potencialmente, os trabalhadores que o capital mais quer ver envolvidos com fundos de pensão. Isso porque, além de formarem uma massa significativa de trabalhadores, eles têm uma característica importante: a garantia de recebimento de salário. É mais difícil o Estado quebrar do que uma empresa. E, se ele quebra, tem maiores condições de se reconstituir. Dados os contratos e a estabilidade dos servidores públicos, eles seriam os potenciais compradores de fundos de pensão”, observa.
Ela explica que, para que os servidores aposentados pudessem complementar seus benefícios, recebendo o que ganhavam enquanto estavam na ativa, a federação, os estados e os municípios criariam previdências complementares, sob a forma de fundos de pensão. “Só que ainda não se conseguiu regulamentar a constituição desses fundos. Houve uma tentativa com a apresentação do projeto do Fundo de Pensão dos Servidores Públicos Federais (Funpresp), que seria um fundo de adesão não-obrigatória. Na verdade, não tenho dúvidas de que, dependendo do trabalho de convencimento ideológico, o não-obrigatório se tornaria imperativo. Mas houve muita resistência à criação do Funpresp e o projeto foi engavetado – o que não quer dizer que tenha sido arquivado: foi apenas retirado de pauta momentaneamente”, diz Sara.
A professora acredita que a contrarreforma não está encerrada e que o assunto vai voltar à tona nos próximos anos. “O próximo passo será estabelecer, para todos os servidores públicos, o fundo de pensão, e, para os trabalhadores da iniciativa privada, um teto mais rebaixado da previdência pública”, aposta.
Argumentação
A previdência está quebrada. Quem nunca ouviu isso? A afirmação, que vem sendo usada constantemente para argumentar sobre a necessidade de mudanças no sistema previdenciário, não é recente. Um texto para discussão publicado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 1997, um ano antes da EC 20, dizia que “o Estado, como gestor da poupança alheia, teve desempenho catastrófico” e apontava, como solução, um regime de capitalização. O documento afirmava que, no sistema brasileiro, “os contribuintes ativos de hoje pagam pelos inativos de hoje, na esperança de que novas gerações de contribuintes venham a fazê-lo quando passarem para a inatividade”, e afirmava ser preciso ter uma “reserva capitalizada” para servir de “colchão amortecedor para o futuro do sistema”.
Então, usando gráficos e tabelas, o estudo mostra os problemas de financiamento por que passava o sistema brasileiro, com aumento do número de beneficiários e estagnação dos contribuintes em tempos de crise econômica, enquanto tenderia sempre a crescer o gasto com o pagamento de benefícios.
De acordo com Sara, o argumento dos problemas financeiros da previdência deixa de levar em conta aquelas contribuições sociais criadas em 1988 que você viu no início desta reportagem: a Cofins e a CSLL. “Essas duas contribuições, somadas à contribuição patronal e à contribuição do trabalhador sobre a folha de salário, permitem que a estrutura previdenciária e do sistema de seguridade em geral sejam muito eficazes”, diz Sara.
As análises da seguridade social divulgadas anualmente pela Anfip confirmam: o sistema brasileiro não apenas não é deficitário como tem apresentado, a cada ano, superávits bilionários. De acordo com Jorge Cezar Costa, presidente do conselho executivo da Anfip, mesmo em 2009, ano de crise, houve um saldo positivo de R$ 32,6 bilhões na previdência; em 2008, o valor havia sido ainda maior – R$ 64,8 bilhões. “É muito dinheiro”, diz Sara, completando: “Por isso se entende tanto interesse em torno da seguridade”.
Para Sonia Fleury, é preciso considerar que o saldo poderia ser ainda maior, mas “há uma apropriação indébita de 20% dos recursos de contribuições”, por conta de um mecanismo chamado Desvinculação de Receitas da União (DRU), que possibilita o uso de 20% das contribuições sociais para outras finalidades. Ela completa: “Além disso, ocorrem isenções fiscais. Há políticas governamentais que isentam certos setores ou reduzem a contribuição que eles devem à previdência social”.
E o envelhecimento da população? Não interfere nas contas? De acordo com Sonia, atualmente, é uma falácia dizer que esse é o problema do Brasil. “Não fizemos essa transição demográfica a ponto de termos hoje poucos jovens e muitos idosos. Nosso problema é que boa parte dos nossos jovens está desempregada, o que provoca um nível alto de exclusão previdenciária. Deveríamos aproveitar para aumentar o número de contribuintes, diminuindo a informalidade”, diz a pesquisadora.
Para Jorge Abrahão de Castro, diretor de Estudos e Políticas Sociais do Ipea, mesmo que haja uma mudança na estrutura etária brasileira, o país vai manter sua população em idade ativa em um bom nível. “A relação de dependência no Brasil não vai se alterar fortemente”, acredita. Ele afirma ainda que, mesmo que diminuísse muito o número de trabalhadores, não necessariamente isso representaria um problema para a previdência: “Também dependemos da produtividade. O aumento da produtividade, com o progresso técnico, permite que menos trabalhadores produzam muito mais riquezas para o país, o que permite manter mais gente no sistema previdenciário. A questão demográfica não é a única variável importante”, observa.
Além disso, ele lembra, como Sara, que a previdência não é financiada apenas pela estrutura de seguro: “Ela está incluída dentro de uma estrutura legal que tem o arcabouço da ideia de segurança social. Isso significa que a previdência pode e deve ser também financiada com recursos de impostos, que também podem ser revistos. Nesse sentido, a seguridade não comporta a ideia de um déficit”.
Mas, para Jorge, é importante notar que a discussão não deve ser apenas “contábil”. De acordo com ele, esse tipo de debate se esquece de levar em conta os princípios pré-estabelecidos na estrutura brasileira. “O Brasil construiu uma estrutura institucional de proteção social que representou um avanço. É civilizatório. E não se pode discutir algo civilizatório com base pura e simplesmente em contabilidades, em balanços. O fundamental é manter a política social brasileira e avançar mais. Então, não se deve falar no assunto com um catastrofismo terrível, argumentando que não se tem dinheiro. Hoje, isso não é verdade. Se entrarmos em uma crise terrível, pode ser que chegue o momento de se renegociar. Mas não dá para renegociar os princípios”, diz.
Qual a mudança necessária?
Nem capitalização, nem aumento do tempo de contribuição, nem diminuição do valor dos benefícios. Para Sara Granemann, a reforma necessária na previdência deveria ir na direção oposta: “Deixar de limitar os tetos de benefício da previdência pública, para que nenhum trabalhador, para se sentir seguro, precise entregar sua vida à gestão dos capitais bancários sob a forma de previdência complementar. Ampliar o valor do benefício mínimo, que hoje é um salário mínimo. Considerar, para a aposentadoria, não o tempo de contribuição, mas o tempo de trabalho, como havia sido aprovado na Constituição de 1988. Determinar o fim do fator previdenciário e o fim das transferências da DRU para o pagamento de dívidas e juros. Essas são propostas avançadas, que melhoram a vida do trabalhador. Nenhuma poderá ser realizada em breve, já que os governos não estão operando nessa direção”, diz a professora.
Lá e cá
Não é só no Brasil que as contrarreformas vêm sendo feitas. Chile, Argentina, Espanha, Portugal, Itália e França são apenas alguns dos países que vêm sofrendo mudanças nos seus sistemas previdenciários. De acordo com Sara, o processo não é recente: “Em quase todos os países, especialmente na Europa, a privatização da previdência é simultânea à grande crise do capital da década de 1970, e veio como uma tentativa de solucioná-la, criando mais uma mercadoria para consumo da sociedade, além de transferir o fundo público para o capital”, explica, observando que as semelhanças entre as propostas são muitas: “Os projetos da última década para países como França, Itália e Portugal envolvem redução dos tetos de aposentadoria, aumento das exigências para se aposentar, como idade e tempo de contribuição – o mesmo que no Brasil”, exemplifica.
Não se trata de coincidência: segundo a professora, o modelo vem de um documento de recomendações publicado pelo Banco Mundial em 1994. “E a recomendação é justamente essa: que a previdência pública tenha um teto básico máximo, a ser definido por cada país, que deve haver fundos de pensão e que deveria haver um largo mercado de aposentadorias oferecido pelos bancos e seguradoras. É esse o modelo que os países vão implementando, com pequenas diferenças entre uns e outros, no mundo inteiro: da Ásia à América Latina, passando inclusive pelos ex-países socialistas, no Leste Europeu. É um projeto de transferência dos fundos públicos. É o estabelecimento de uma nova mercadoria para que quem não pode mais vender carros – já que há limites para vender carros neste mundo – possa ter outra coisa para vender”, conclui.
Reportagem publicada na revista Poli nº 14, de novembro/dezembro de 2010.
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