sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

FATO & TEORIA

Notícias repetidas, notícias inexplicadas

Por Eugênio Bucci, doutor em Ciências da Comunicação, área de Jornalismo, pela Escola de Comunicações e Artes da USP

São Paulo, enchente e falta d´água. Os dias que antecederam o Carnaval vieram marcados por esse descompasso inacreditável. Na mesma cidade, milhares de famílias viram gente e mobília arrastados por inundações urbanas e outras padeceram sem abastecimento, vendo suas caixas d´água secarem. O quadro me lembrou São Paulo: crescimento e pobreza, livro que Vinícius Caldeira Brant, então no Cebrap, organizou a pedido da Comissão Justiça e Paz, então presidida por Margarida Genevois. Lá se vão vinte, trinta anos. A metrópole crescia em desordem, gerando fortunas e miséria de uma só golfada. A pobreza não era uma premissa do atraso, mas sua conseqüência. O Carnaval nos engole e o cotidiano na terra da garoa torrencial desafia o senso comum. É contraditório, excruciante.
Pouco antes de Vinícius, Fernando Henrique Cardoso, que depois fundaria o Cebrap, escrevera algo sobre uma possível teoria do subdesenvolvimento, uma teoria da dependência. Não sei por onde passaram suas formulações. Li pouca coisa dessa obra, e do pouco que li acabei me esquecendo. Recentemente, penso mais na "Lei do Desenvolvimento Desigual e Combinado", de Leon Trotsky. Os meus amigos capitalistas que me perdoem, mas em muitos aspectos sou trotskista até hoje. Eles também, sem o saber: lucram com o desenvolvimento desigual e combinado. Eles são (trotskistas) sem nunca ter sido.
O que mais nos faz falta hoje é uma teoria de outra ordem: a teoria do subdesenvolvimento, necessariamente desigual e perversamente combinado. Crescimento no bolso e pobreza na carne. Crescimento que fabrica pobreza e afoga gente.
A Paulicéia inventou assim, meio sem querer, a "Lei do Subdesenvolvimento Desigual e Combinado". O resto é panfleto. O resto é notícia de jornal, que registra um mundo que não compreende. O senso comum se manifesta pelo espanto diante do previsível, e como condescendência em relação ao que seria intolerável.

Teorias não vendem jornal

Os praticantes do jornalismo se encontram na franja mais ruidosa do senso comum descombinado e sempre tão igual. São eles que veem primeiro, que se chocam primeiro com o fato espalhafatoso – e também são eles os que esquecem primeiro, não veem as leis internas do descompasso medonho; são eles os que deixam pra lá, antes dos demais: isso não importa, não é notícia.
Jornalistas, especializados em novidades, comprazem-se em ser avessos às teorias. Há nisso uma virtude própria do ofício: se se ocupassem do já sabido, perderiam a sensibilidade à notícia e, aí, deixariam de escrever a História a quente, ou seja, deixariam de procurar revelar o que ainda está oculto. Graças à sua forme por novidades, jornalistas são ágeis, elétricos, antenados, como se gosta de dizer.
Ao mesmo tempo, há nessa aversão às teorias um atraso: por desprezar o conhecimento de mais fôlego, talvez se deixem aprisionar com mais facilidade pelas espumas da superfície, mesmo quando elas apenas reeditam o já acontecido – e o já acontecido deveria ser ainda menos relevante que o já sabido. Enchentes são fatos repetidos e repetíveis. Não que elas devessem ser ignoradas nas manchetes, de modo algum. Acontece que as causas das enchentes, menos as causas hídricas, pluviais ou de engenharia (tudo isso aparece em infográficos cheios de detalhes técnicos), e mais as causas econômicas, migratórias, aquelas decorrentes da especulação imobiliária e das leis que (não) regulamentam o uso do solo urbano, essas parecem sempre mais inadequadas ao repertório jornalístico, como se fossem apenas assunto para coletâneas do Cebrap. Por isso, também, a informação jornalística ainda tangencia muito pouco o conhecimento.

Leia o ensaio completo no “Observatório da Imprensa”...

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