quarta-feira, 20 de outubro de 2010

José Sarney

Do jornal “Brasil Econômico”.

Jogo não muito limpo

Nenhuma legislação foi tão sujeita a mudanças constantes quanto a eleitoral. Na história do Império e da República foram tantas as mudanças que, catalogadas, dão uma enciclopédia. Também há uma constante nessas mudanças: são todas elas casuísticas. É tão instável o processo eleitoral brasileiro que a lei prevê para cada eleição que o Tribunal Superior Eleitoral edite uma resolução regulando desde a propaganda até a contagem final dos votos. Ainda deve acrescentar-se uma anomalia que não se verifica na sistemática de nenhum outro tribunal: as consultas sobre como os juízes irão julgar determinada questão. E estas, uma vez respondidas, não têm efeito vinculante, e não raras vezes mudam de interpretação ou têm interpretação contraditória. Navegar nesse mar de incertezas resulta num processo que é danoso para a democracia: a judicialização da política. Nessas eleições, a experiência que fica não é a de que a Justiça Eleitoral fiscalizou a eleição, mas a de que ela própria fez a eleição. Basta ver o imbróglio que provocou a lei da Ficha Limpa para execução imediata, com os prazos correndo, o que fez com que muitos candidatos concorressem com uma espada sobre a cabeça, suas candidaturas pendentes de recursos. A Justiça Eleitoral passou a ser um terceiro turno, porque os outros dois ainda dependiam de decisões que os tribunais não tiveram tempo de tomar. A função principal da Justiça Eleitoral é assegurar a verdade eleitoral, e não substituir o processo político. Um candidato me disse que tinha mais advogados do que cabos eleitorais. Tudo isso, felizmente, foi salvo pelo avanço da urna eletrônica - que, depositária da decisão final, o voto, conquistou total confiança do povo, e nunca mais se discutiu fraude em apuração, como nos velhos tempos em que levávamos semanas para o resultado final - e pela integridade e nível jurídico e moral dos juízes, que dão total tranquilidade aos que demandam. A eleição atual, com as emoções e paixões que despertam a possibilidade de exercer o poder, decorreu até quase ao fim do primeiro turno no nível de uma democracia avançada. Depois as coisas mudaram, e já no segundo turno parece que desapareceram as menores regras do respeito que deve presidir uma eleição civilizada. As eleições a cacete do Império voltaram, com palavras e fatos manchando o processo democrático. Pela primeira vez, a religião entrou no debate e Deus passou a ser disputado, chegando um candidato a dizer que é do bem e o outro do mal. Uns condenados à salvação e outros ao inferno, além da baixaria correndo a solta, atingindo pessoas irresponsavelmente. Evidentemente, num clima desses, a cada ação responde-se com reação, e o resultado não é dos melhores. Lembro-me que Bush, em sua campanha, invocou o Império do Mal para despertar o sentimento dos fanáticos das seitas religiosas, e o que se viu foi o despertar do demônio do ódio a dividir a sociedade americana. Aqui não se chegou a tanto, mas o que tem sofrido dona Dilma não é para Tiririca dar risada.

José Sarney foi governador, deputado e senador pelo Maranhão, presidente da República, senador do Amapá por três mandatos consecutivos, presidente do Senado Federal por três vezes. Tudo isso, sempre eleito. São 55 anos de vida pública. É também acadêmico da Academia Brasileira de Letras (desde 1981) e da Academia das Ciências de Lisboa

jose-sarney@uol.com.br

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