Curso básico de Brasil
O encontro das águas e dos impostos em São Paulo serve de excelente lição para entender por que o Brasil funciona tão mal, devagar e fora do prumo
Quer o calendário que coincidam, no começo de cada ano, os aumentos de impostos das prefeituras municipais com a temporada de chuvas de verão. Quis o destino que, neste ano de 2010, a prefeitura de São Paulo conseguisse juntar um dos aumentos mais infames já praticados na sombria história do imposto predial e territorial urbano com uma série devastadora de temporais, os piores que a cidade viveu nos últimos anos. O prefeito de São Paulo, Gilberto Kassab, sabia que ia aumentar o IPTU, e aumentar muito. Sabia também que ia chover. Mas não sabia que ia chover tanto, durante tantos dias seguidos, e que os prejuízos seriam tão arrasadores como foram ao longo de todo o mês de janeiro. O resultado é que as notificações do IPTU de 2010, caprichosamente, começaram a chegar aos paulistanos justo na pior hora possível: com a cidade debaixo d’água, a prefeitura impotente e a certeza de que o cidadão, em troca do mesmo serviço miserável que recebe do poder público, está pagando cada vez mais caro pelo direito de morar, trabalhar ou tocar um negócio em São Paulo.
A combinação de impostos municipais crescentes com as perdas materiais devastadoras que castigam indivíduos e empresas a cada enchente está empurrando cada vez mais para o alto o custo de São Paulo, com impacto direto na atividade econômica da maior cidade brasileira. Naturalmente, prefeitos e seus pajés da coletoria fiscal do município estão sempre atentos à lei da oferta e procura, e têm sido peritos em jogar com ela. São Paulo, para vastos setores de sua economia, continua sendo uma cidade altamente competitiva - em muitos casos, a mais competitiva do Brasil. Apesar de todos os seus custos, tem vantagens que não podem ser encontradas em outros grandes centros do país, ou atrativos superiores aos da concorrência; para um grande número de empresas, e consequentemente de cidadãos, estar em São Paulo é uma condição para a sobrevivência. O resultado, do ponto de vista fiscal, é que "sempre dá" para aumentar os impostos locais; os contribuintes, afinal, precisam da cidade. O raciocínio da prefeitura, nunca reconhecido em público e sempre exercitado na prática, poderia ser resumido no seguinte lema: "Eles acabam pagando".
Naturalmente, essa postura de governo é servida ao público em meio a doses maciças de tapeação, a primeira das quais é sustentar, com o maior sangue-frio do mundo, que não está havendo um aumento do IPTU; na verdade, afirmase mesmo que há uma redução e, no fundo, que é uma grande sorte para todos que a prefeitura tenha sido tão bondosa nos cálculos utilizados para fixar o montante a ser pago em 2010. É assim, por exemplo, que a primeira frase da notificação de lançamento ora em vias de distribuição diz que "neste ano, mais 224 000 imóveis não pagam IPTU na Cidade de São Paulo" - ou seja, a prefeitura imagina-se capaz de convencer o contribuinte que está executando um projeto social, e não um aumento de imposto. A palavra "aumento", aliás, não é empregada uma única vez; o que está havendo, no léxico da autoridade municipal, é uma "revisão" que "atualiza" os valores a serem pagos. Para completar, a prefeitura garante, como se estivesse fazendo um gesto de generosidade extrema, que o "reajuste" não vai ultrapassar "30%" para os imóveis residenciais e "45%" para os não residenciais. Não há nenhum aumento de custo, de uma ponta a outra da economia brasileira, remotamente comparável a esses números; que sindicato, por mais tresloucado que fosse, seria capaz de reivindicar um "reajuste" salarial de 45%? Mas os coletores de impostos de São Paulo nem sequer percebem a enormidade do que estão falando. Quanto às enchentes em si, por fim, nenhuma novidade. Desde que caiu a primeira gota de chuva, a prioridade absoluta do prefeito Kassab tem sido repetir, todos os dias: "A culpa não é nossa".
O encontro das águas e dos impostos em São Paulo serve de excelente curso básico para aprender por que o Brasil funciona tão mal, devagar e fora do prumo.
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