Bolhas e câmbio
No Brasil até se nega que houve crise durante o colapso financeiro global de 2008-2009. Nos EUA e na Europa, onde o colapso foi mais agudo, os falsos discursos oficial e da grande mídia dizem que a situação está voltando a ficar sob controle e que não haverá recaída em 2010. O índice médio da Bolsa de Valores de São Paulo (BOVESPA) que caíra para 37.550 pontos no final de 2008, atingiu 70.000 pontos em 19.01.2009. Valorização, portanto, de 86% em pouco mais de um ano. Tudo isso com a economia produtiva em nível bem abaixo do de 2008. Outro indicador da especulação, que conta com as bênçãos da política econômica governamental, é o prosseguimento, em 2009, da valorização do real em relação ao dólar: 32%, de dezembro de 2008 a setembro de 2009, quando a cotação chegou ao nível atual. A força do real não decorre de melhora nas contas externas. As transações correntes com o exterior (balanços comercial, de serviços, de rendas e transferências unilaterais) acumulam mais de US$ 40 bilhões de saldo negativo, na soma de 2008 e dos três primeiros trimestres de 2009. De fato, a apreciação do real provém da entrada de capitais para se cevar com as elevadíssimas taxas de juros no Brasil, que trazem graves danos, que o Banco Central faz questão de infligir ao País. Para quem ainda não prestou atenção nisto, o BACEN, teleguiado por banqueiros estrangeiros, tem poder acima do que toca ao governo federal. A entrada líquida daqueles capitais, atraídos pelas taxas de juros, está possibilitando o precário equilíbrio do Balanço de Pagamentos, ao compensar o déficit do balanço de transações correntes. Disso decorre exagerada e artificial alta da cotação internacional do real, bem como estas consequências:
1) os especuladores financeiros fazem o já tradicional carry-trade: tomam crédito em dólares, a taxas próximas de zero, convertem-nos em reais, e auferem duplos rendimentos astronômicos, devido aos juros e à valorização de ações, e, ainda, à apreciação do real;
2) as empresas produtivas têm prejudicada sua posição competitiva nas exportações, a qual só se mantém em mercadorias (commodities) em que é absoluta ou muito grande a vantagem comparativa advinda da dotação de recursos naturais, como ocorre no agronegócio e em minérios;
3) ao mesmo tempo, as importações são incentivadas pela taxa de câmbio, havendo, assim, grande redução dos saldos comerciais em relação aos de 2007 e antes; daí a passagem de superávits para saldos negativos no balanço de transações correntes com o exterior;
4) o Brasil acumula reservas em dólares, depositadas em bancos no exterior, as quais rendem juros ridiculamente baixos, em contraste com as elevadas taxas pagas pelo Tesouro Nacional nos títulos da dívida interna;
5) eleva-se o montante da moeda (reais) emitida, a qual é, em grande parte, esterilizada, isto é, deixa de ser utilizada para qualquer finalidade útil ao País e é, em parte, usada pelo Banco Central para adquirir títulos do Tesouro, que neles paga altos juros; a dívida do Tesouro com o Banco Central cresceu para espantosos 532 bilhões de reais, ou seja, quase 20% do PIB;
6) as reservas em dólares (mais de US$ 230 bilhões) estão fadadas a significar prejuízo nesse enorme montante, com a derrocada do dólar, por enquanto evitada pelos meios mais fraudulentos possíveis, mas destinada a acontecer, dadas as astronômicas emissões dessa moeda para fazer face ao colapso financeiro, ainda longe de se esgotar.
Entraves ao desenvolvimento
O presidente do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Luciano Coutinho, assim comentou a tênue recuperação do terceiro trimestre de 2009: “É o crescimento saudável (...) prefiro algo modesto e de melhor qualidade a um crescimento acelerado e desequilibrado.” Coutinho claudica ao preconizar crescimento limitado, “que permita controlar a inflação e minimizar a subida de juros”. Diz, ainda, “torcer” pela baixa dos juros. Coutinho adere ao enganoso comando do BACEN, para o qual produção elevada implica inflação. Ademais, repete o ridículo em que têm caído os presidentes da República que “torceram” pela queda de juros, em vez de determiná-la. Na realidade, no ano de 2009 não houve crescimento algum, embora o declínio tenha sido atenuado graças ao BNDES, principalmente, a outros bancos públicos, como Caixa Econômica, Banco do Nordeste (BNB) e Nossa Caixa, e a instituições mistas, como o Banco do Brasil. Em novembro, anunciou-se que o Tesouro fará grande aporte de capital para o BNDES a fim de ser reforçada a atuação deste. Outro fator de melhora na segunda metade do ano foram as despesas de consumo, com base no endividamento, o que coloca mais uma bomba-relógio na economia, pois os juros são muito altos, e isso causará queda no poder de compra dos consumidores. O Professor Carlos Lessa, ex-presidente do BNDES, assinala, em artigo de 13 do corrente (Valor Econômico), que a taxa de investimento no Brasil subiu para apenas 17,7%, enquanto é de 30% na Índia e 40% na China. Aduzo que no Brasil o governo federal tem investido o equivalente a 1% do PIB, e na China o investimento do Estado se aproxima de 20% do PIB. Na proposta orçamentária para 2009, o governo federal previa R$ 39,4 bilhões, e isso equivale a só 1,3% do PIB (em geral, a execução fica bem abaixo da proposta). O investimento total das estatais federais não passa de 2,6 % do PIB. A grande limitante do desenvolvimento do País é o modelo caracterizado pela concentração econômica dominada por transnacionais estrangeiras, não só por diminuir o espaço das empresas produtivas nacionais, boa fonte de empregos e de tecnologia, mas por ficar o “poder público” submetido a interesses estrangeiros. As privatizações fizeram cair os investimentos das estatais, sem que eles fossem substituídos por investimentos privados. O Estado investe pouquíssimo em infra-estrutura - o que, ademais, prejudica a produtividade das empresas - e na indústria. Tudo isso resultou em taxas de investimento baixas e em retorno produtivo menor. Alguém pensa que as transnacionais vêm ocupar os mercados no Brasil a fim de desenvolver indústrias intensivas de tecnologia avançada? Ora, quem pensa isso não atina para o fato de que, se as transnacionais o fizessem, estariam desalojando suas próprias matrizes dos mercados mundiais e criando aqui os empregos qualificados e bem remunerados que se concentram nos países onde essas matrizes têm suas sedes. Muitos acreditam em balelas, como a de que há falta de capital brasileiro, e que, por isso, os investimentos estrangeiros são úteis ao País. Na verdade, as transnacionais investem mais com recursos locais do que com os delas próprias. São, inclusive, as principais tomadoras de recursos do BNDES. Não há escassez alguma de capital no Brasil. Ao contrário, existe enorme quantidade ociosa no setor público e também copiosa massa de capital privado aplicada apenas financeiramente. Se o País se autogovernasse, tudo isso seria investido produtivamente, e o País teria desenvolvimento melhor e maior que o da China. Mais ainda: há as reservas do governo no exterior, de US$ 230 bilhões, que equivalem a R$ 414 bilhões, ou seja, mais de 10 vezes o que o governo investe anualmente. Há também, conforme dados do BACEN, os investimentos de empresas e pessoas físicas brasileiras no exterior, os quais chegaram, em 2008, a US$ 170,4 bilhões, equivalentes a R$ 318 bilhões. É, ademais, notório que essa quantia oficialmente declarada é possivelmente menor que a metade do total, no exterior, pertencente a brasileiros. Tampouco esses recursos são investidos no Brasil, porque isso é inviabilizado pelo modelo, já que o mercado aqui é reduzido pela concentração econômica e pelas demais razões acima expostas. Ademais, ele é terreno de caça particular das transnacionais.
Os empréstimos do BNDES
Vejamos uma amostragem dos empréstimos realizados pelo BNDES na área industrial, de 1/10/2008 a 30.09/2009. Os dois maiores foram para duas subsidiárias de transnacionais, ambas, até há pouco tempo, de capital majoritariamente nacional:
1) BRF Brasil Foods, para adquirir ações da antiga Perdigão (agronegócio), no montante de R$ 750 milhões, e outro financiamento para a Perdigão, antes da aquisição, de R$ 342,7 milhões, totalizando R$ 1,093 bilhão;
2) AMBEV, a cervejeira adquirida pela Anheuser-Busch InBev, com sede em Leuwen, na Bélgica: R$ 710 milhões.
Outras transnacionais beneficiadas:
3) FIAT – Automóveis: R$ 410,9 milhões; 4) BRENCO [1], energia renovável, dois empréstimos perfazendo R$ 597,7 milhões; 5) Renault do Brasil: R$ 319,3 milhões; 6) General Motors: R$ 194 milhões; 7) Cargill Agrícola (soja): R$ 164,9 milhões; 8) PDG Realty (imobiliária): R$ 144 milhões; 9) Carrefour: R$ 113,7 milhões. A PDG Realty, imobiliária transnacional, foi financiada para adquirir empresas e participações no Brasil. Transnacionais de outros setores também foram aquinhoadas para a mesma finalidade. Por outro lado, o maior montante dos empréstimos destinou-se a grandes usinas produtoras de etanol, setor em que as aquisições por parte de firmas estrangeiras está ocorrendo em grande vulto e velocidade. Em setores de maior conteúdo tecnológico, vêem-se apenas três empresas ainda brasileiras, apesar de terem participação estrangeira: Lupatech, de Caxias do Sul (RS): R$ 320 milhões; Weg, de Jaraguá (SC): R$ 266,1 milhões; Tupy, de Joinville (SC): R$ 195,8 milhões.
No 2º trimestre de 2009, a principal beneficiada com os recursos do BNDES foi a ALCOA, gigante norte-americano do cartel mundial do alumínio. Então, a mesma Anheuser-Busch InBev, dona da AmBev, ocupou a segunda posição. Seguiram-se nesse trimestre: uma joint-venture da British Gas com a Shell, que se apossaram da COMGÁS, de São Paulo, durante a farra das privatizações; a mesma General Motors; a IBERDROLA, espanhola, que se apropriou de boa parte das elétricas estatais durante a era FHC; a não menos golpista OHL, que explora pedágios em estradas brasileiras; por fim, a Jetblue, proprietária da Azul. Em suma, o BNDES, contribui para a desnacionalização, a concentração e a primarização da economia. Deveria fazer o que foi almejado por Getúlio Vargas, ao criá-lo, nos anos 50: fomentar o desenvolvimento de empresas estatais brasileiras e das firmas privadas de capital nacional. Desta vez o foco foi o Brasil. É provável que novos acontecimentos relacionados ao colapso financeiro nos EUA e na Europa levem a tratar desse tema no próximo artigo.
Adriano Benayon é Doutor em Economia pela Universidade de Hamburgo e Advogado, OAB-DF nº 10.613, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi Professor da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Autor de “Globalização versus Desenvolvimento”.
abenayon@brturbo.com.br
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