segunda-feira, 21 de janeiro de 2008

Por que Sarney se preocupa com Hugo Chaves?



A persistência de Sarney em defender a cláusula democrática como critério para o ingresso de países no Mercosul se justifica pela história do ex-presidente. São 52 anos de vida pública ininterrupta, sempre comprometida com as liberdades democráticas. Como udenista “bossa-novista”, já havia participado da luta contra a Ditadura Vargas, mais sanguinária que a dos militares. Único governador que ousou criticar o Golpe de 1964, durante o Governo Geisel ajudou o presidente a quebrar as resistências da “linha-dura” — e de seu próprio partido (ARENA) — contra o processo de distensão política. Assumindo a Presidência, soube garantir o delicado processo de redemocratização pós-Regime Militar, acabando com o “entulho autoritário”, convocando a Constituinte, legalizando partidos clandestinos e garantindo liberdades essenciais, como a da imprensa e a sindical. Portanto, quando idealizou e fundou o Mercosul, junto com Alfonsin, não poderia deixar de inserir nos cânones do bloco o imperativo democrático.
Mas, as preocupações de Sarney vão além da legítima e necessária defesa da democracia. Como profundo conhecedor da geopolítica e da História do “Setentrião” brasileiro, ele sabe que o totalitarismo do regime bolivariano, como catalisador de uma possível corrida armamentista na região, pode provocar problemas fronteiriços graves. Isto porque Hugo Chaves, de tempos em tempos, reivindica a região do Essequibo, uma área de dois terços da Guiana, como o outro tirano e amigo dos armamentos, Adolf Hitler, que reivindicava a Região dos Sudetos Tchecoslovacos, antes da eclosão da Segunda Guerra Mundial. A “política de apaziguamento” do então premier da Inglaterra, senhor Chamberlain, fez com que as democracias ocidentais fossem omissas diante das exigências de Hitler. Deu no que deu.
A reivindicação dos venezuelanos sobre o Essequibo é até legítima e já dura mais de um século, mas, como sempre acontece em todos os estados totalitários, vem sendo usada pelo presidente da Venezuela para exacerbar o nacionalismo agressivo em seu país e desviar a atenção dos seus patrícios das questões internas. Além do perigo do armamentismo em si, Sarney vem advertindo que o problema é de precedente: o processo histórico que fez com que a Venezuela perdesse para a Inglaterra (então dona da Guiana) o Essequibo, foi o mesmo que tirou a região do Pirara do Brasil, com a diferença de que, no caso brasileiro, a perda territorial foi aceita diplomaticamente. Para quem não se lembra das aulinhas de História, a “Questão do Pirara” começou quando a Inglaterra fomentou uma disputa fronteiriça com o Brasil, em um território a leste de onde hoje está o atual Estado de Roraima, com 33.200 km². Sob o argumento britânico de o território do Pirara seria ocupado por tribos independentes que reclamavam a proteção inglesa, o Brasil reconheceu provisoriamente a neutralidade da área em litígio e dali retirou seus funcionários e o destacamento militar, com a condição de que as tribos continuassem independentes. Era o mesmo discurso cara-de-pau das atuais ONGs “amigas” dos índios na “Raposa Serra do Sol”. Entretanto, em 1842, o cientista alemão Schomburgk, que havia feito diversas expedições “científicas” à região, com a autorização ingênua do governo brasileiro e sob as ordens da Inglaterra, deixou a ciência para lá e liderou uma expedição militar que colocou marcos fronteiriços sem o consentimento — e em detrimento — do Brasil. A questão se prolongou até 1904, quando, por fim, o governo do Brasil, diferente do caso da Venezuela, aceitou o laudo arbitral do rei Vitório Emanuel III, da Itália, que deu ganho de causa à Inglaterra. Assim, perdemos 19.630 km² de território e, conseqüentemente, os afluentes da bacia do Essequibo, que nos davam acesso mais rápido ao Caribe. Mas, com a conquista, a Inglaterra obteve acesso às águas do Rio Amazonas pelos rios Ireng e Tacutu. O raciocínio do ex-presidente Sarney é que, uma vez que a Venezuela, militarmente, consiga reaver o Essequibo, por princípio, o Brasil teria também direito em reaver o Pirara, o que seria trágico para um país que sempre apostou na solução pacífica de seus litígios de fronteira. Aberto o precedente, poderia haver uma confusão danada em toda a América do Sul. Coisas perigosas poderiam acontecer. A França, por exemplo, poderia voltar a questionar a soberania brasileira no Oiapoque, o Peru poderia querer de volta uma saída para o Pacífico em detrimento do Chile e por aí vai. Moral para falar do assunto, Sarney tem. É representante de um estado que, talvez, tenha sido, junto com o Rio Grande do Sul, um dos estados federados que mais lutaram para ser brasileiro: o Amapá. Sarney também sempre se mostrou preocupado com as fronteiras da Região Norte quando era presidente, quando estimulou o Projeto Calha-Norte e tentou integrar a Amazônia Legal ao resto do País, com a rodovia Norte-Sul. Também sempre foi um pacifista. Como presidente, propôs à ONU que o Atlântico Sul fosse área desmilitarizada. A proposta foi aprovada, mas acabou vetada pelos EUA. Por isso, sabe o que fala e é bom que seja ouvido.


* Said Barbosa Dib

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