Nilder Costa
Em que pese o solitário voto contrário do ministro Marco Aurélio de Mello, o veredicto do Supremo Tribunal Federal sobre a demarcação das reservas indígenas Raposa-Serra do Sol em território contínuo, já estava definido desde dezembro passado quando o julgamento do caso foi interrompido por pedido de vistas: o país perdeu a batalha de Roraima. Com isso, não se está a minimizar a importância das 19 condicionantes acolhidas pelo STF [1] e que passam a balizar futuras demarcações de terras indígenas impondo restrições, como a não ampliação das já homologadas, e garantindo outros direitos aos “não-índios”, como a efetiva participação dos entes federativos em todas as etapas do processo demarcatório. Em resumo, mesmo que tardias, as condicionantes devem tornar a criação e demarcação de terras indígenas muito mais difíceis de serem obtidas, o que é muito importante para o Mato Grosso do Sul, por exemplo, onde a Funai ensaia transformar a área onde se produz 70% da soja e do milho do Estado em reservas indígenas. Entretanto, qual o significado da perda da “batalha de Roraima” sob uma perspectiva estratégica mais ampla? A bem dizer, o indigenismo já conseguiu transformar 13% do solo pátrio em terras indígenas devidamente homologadas, sendo a quase totalidade (cerca de 98% ou 1,08 milhão de quilômetros quadrados) localizada na cobiçada Amazônia. Em paralelo a esse processo demarcatório, houve mudanças cruciais na condução e orientação do indigenismo no Brasil. Em um primeiro momento, que se pode situar na década de 1960 com a fundação do CEDI (Centro Ecumênico de Documentação e Informação, em 1965) e, logo em seguida, pela do Conselho Indigenista Missionário, (Cimi, em 1972), prevaleceu a orientação dos seguidores da Teologia da Libertação que redundou na criação da União das Nações Indígenas e, posteriormente, na Constituição de 1988, quando o tradicional conceito integracionista, observado em todas as constituições anteriores, foi substituído pelo separatista. Na ocasião, os constituintes determinaram uma espécie de limite às aspirações do indigenismo ao rejeitarem, taxativamente, a plurinacionalidade para os índios. Contudo, deixaram em aberto importantes questões, como o usufruto de recursos naturais em terras indígenas, algumas delas agora contempladas nas condicionantes estabelecidas pelo STF. Por outro lado, quando surgiram os primeiros efeitos da Constituição de 1988, observou-se uma mudança na orientação do indigenismo no Brasil onde a influência da Teologia da Libertação como ideologia instrumental começou a perder força. Tal mudança pode ser constatada com a criação do Instituto Socioambiental (ISA, em 1994), sucessor do Cedi, que incorporou a vertente ambientalista ao processo e se vincula mais abertamente a ONGs internacionais. Antigos líderes indígenas, como Mário Juruna e Raoni, foram substituídos por outros que estudaram em escolas dos “brancos” e a maioria tem curso superior. A exemplificar, Bonifácio Baniwa, Ismael Tariano, Orlando Baré, Élio Piratapuia, Euclides Macuxi, Jersen Baniwa, Álvaro Tukano e Jecinaldo Sateré. Eles criaram ums série de ONGs indigenistas, como a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) e a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro (Foirn), que coordenam uma miríade de entidades representando etnias ou aldeias de um determinado rio. [2] As novas lideranças indígenas romperam com os salesianos, afastaram-se do Cimi e dos antropólogos ligados à UNI, e começaram a construir a aliança com as ONGs. Vários dos novos líderes ficaram meses na Europa, para serem apresentados ao processo de captação de recursos. “Os novos líderes são herdeiros da cultura católica e romperam com ela”, diz Marilene Corrêa, da Universidade Estadual do Amazonas (UEA). A partir de então, com a ajuda das ONGs, as novas lideranças podem estar numa aldeia no interior da Amazônia num dia e desembarcar em um aeroporto europeu dois dias depois – não falta dinheiro nem articulação para criar uma agenda politicamente oportuna. Domingos explica as razões dessa nova estratégia: “Nós vivemos num Brasil que não está preparado para conversar conosco, não sabe conviver conosco”, sendo necessário, então, ensinar ao País como entender o processo indígena.Segundo Geraldo Andrello, coordenador do Instituto Sócio-Ambiental (ISA) em São Gabriel da Cachoeira (AM), “Há uma proliferação incontrolável de organizações”. Esse universo associativo copiado dos sistemas de representação social dos brancos, que não tem nada a ver com a organização social indígena, é estimulado e sustentado por ONGs de diversos tipos e finalidades e recebe apoio de universidades.As atuais lideranças indígenas não escondem que, no cento da sua luta, está a autonomia das terras indígenas. Eles querem que o Brasil seja reconhecido como um país plurinacional, como Canadá e EUA: “Lá os indígenas têm hidrelétricas e comercializam energia. Por que não podemos fazer o mesmo?”, indaga Jorge Terena, assessor da ONG americana The Nature Conservancy. Em suma, a confirmação da emblemática reserva Raposa-Serra do Sol, jóia da coroa do indigenismo internacional, sinaliza o final de um ciclo que se caracterizou pela conquista territorial. Motivados com tal vitória, os promotores do indigenismo podem agora se concentrar no ciclo seguinte e já em curso, a conquista da autonomia e da plurinacionalidade. Seus principais instrumentos são a Resolução 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), já ratificada pelo governo brasileiro, e a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas, que já foi aprovada pela Câmara dos Deputados e aguarda deliberação no Senado Federal.Assim, mesmo que ainda perdurem as disputas por demarcações de novas terras indígenas, o foco da movimentação do indigenismo internacional no Brasil se deslocará para a conquista da autonomia das “nações” indígenas.
Notas:
[1] Diretrizes fixadas pelo Supremo para a demarcação de terras indígenas:
1 — O usufruto das riquezas do solo, dos rios e dos lagos existentes nas terras indígenas pode ser relativizado sempre que houver como dispõe o artigo 231 (parágrafo 6º, da Constituição Federal) relevante interesse público da União na forma de Lei Complementar;
2 — O usufruto dos índios não abrange o aproveitamento de recursos hídricos e potenciais energéticos, que dependerá sempre da autorização do Congresso Nacional;
3 — O usufruto dos índios não abrange a pesquisa e a lavra das riquezas minerais, que dependerá sempre de autorização do Congresso Nacional, assegurando aos índios participação nos resultados da lavra, na forma da lei.
4 — O usufruto dos índios não abrange a garimpagem nem a faiscação, devendo se for o caso, ser obtida a permissão da lavra garimpeira;
5 — O usufruto dos índios não se sobrepõe ao interesse da Política de Defesa Nacional. A instalação de bases, unidades e postos militares e demais intervenções militares, a expansão estratégica da malha viária, a exploração de alternativas energéticas de cunho estratégico e o resguardo das riquezas de cunho estratégico a critério dos órgãos competentes (o Ministério da Defesa, o Conselho de Defesa Nacional) serão implementados independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;
6 — A atuação das Forças Armadas da Polícia Federal na área indígena, no âmbito de suas atribuições, fica garantida e se dará independentemente de consulta a comunidades indígenas envolvidas e à Funai;
7 — O usufruto dos índios não impede a instalação pela União Federal de equipamentos públicos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além de construções necessárias à prestação de serviços públicos pela União, especialmente os de saúde e de educação;
8 — O usufruto dos índios na área afetada por unidades de conservação fica sob a responsabilidade do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade;
9 — O Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade responderá pela administração da área de unidade de conservação, também afetada pela terra indígena, com a participação das comunidades indígenas da área, que deverão ser ouvidas, levando em conta os usos, as tradições e costumes dos indígenas, podendo, para tanto, contar com a consultoria da Funai;
10 — O trânsito de visitantes e pesquisadores não-índios deve ser admitido na área afetada à unidade de conservação nos horários e condições estipulados pelo Instituto Chico Mendes;
11 — Deve ser admitido o ingresso, o trânsito, a permanência de não-índios no restante da área da terra indígena, observadas as condições estabelecidas pela Funai;
12 — O ingresso, trânsito e a permanência de não-índios não pode ser objeto de cobrança de quaisquer tarifas ou quantias de qualquer natureza por parte das comunidades indígenas;
13 — A cobrança de tarifas ou quantias de qualquer natureza também não poderá incidir ou ser exigida em troca da utilização das estradas, equipamentos públicos, linhas de transmissão de energia ou de quaisquer outros equipamentos e instalações colocadas a serviço do público tenham sido excluídos expressamente da homologação ou não;
14 — As terras indígenas não poderão ser objeto de arrendamento ou de qualquer ato ou negócio jurídico, que restrinja o pleno exercício do usufruto pela comunidade jurídica ou pelos silvícolas;
15 — É vedada, nas terras indígenas, a qualquer pessoa estranha aos grupos tribais ou comunidades indígenas a prática da caça, pesca ou coleta de frutas, assim como de atividade agropecuária extrativa;
16 — As terras de ocupação indígenas, o usufruto exclusivo das riquezas naturais e das utilidades existentes nas terras ocupadas, observado o disposto no artigo 49, XVI, e 231, parágrafo 3º, da Constituição da República, bem como a renda indígena, gozam de plena isenção tributária, não cabendo a cobrança de quaisquer impostos taxas ou contribuições sobre uns e outros;
17 — É vedada a ampliação da terra indígena já demarcada;
18 — Os direitos dos índios relacionados as suas terras são imprescritíveis e estas são inalienáveis e indisponíveis;
19 — É assegurada a efetiva participação dos entes federativos em todas as etapas do processo de demarcação.
[2]De Raoni a Evo Morales, Estado de São Paulo, 25/11/200
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