O porteiro do condomínio
Moro em um condomínio faz mais de seis meses, mas só agora é que fui perceber que o porteiro daqui, este tipo de bigodes que jamais vi igual fora de uma guarita, olha para mim de um jeito estranho, assim meio torto, com ares de poucos amigos. Venho tentando relevar, afinal, não sei que código de conduta rege sua profissão, e ainda que soubesse decerto não me sentiria mais à vontade frente um cidadão que exerce uma autoridade tão brutal sobre minha vida, que num simples golpe de interfone poderia, de súbito, privar-me do direito de entrar e sair deminha própria casa. Disso que já não posso lhes dizer com convicção que não tenha, em algum momento, dado motivo para tais olhares de desconfiança. Não sou aquilo que se pode chamar de simpático ao acordar. Tampouco sou afeito a gorjetas ou ao peru de Natal que, todos os anos, muito antes até de eu pensar em morar pelas redondezas, os vizinhos depositam religiosamente em sua caixinha, pendurada de qualquer jeito em algum lugar. Ao cabo de algumas semanas, porém, sinto-me inelutavelmente culpado por ter criado caso com este porteiro. Isso porque já começo a arranhar minha reputação, que de resto não é das melhores. À parte não freqüentar as reuniões de condomínio e achar muito natural reclamar do conselho deliberativo, a síndica já me desfere o mesmo olhar, basta cruzar comigo em um dos corredores. Imagino o porteiro envenenando meu poço para Deus e o mundo, extraviando minha correspondência e fazendo barbaridades com as minhas visitas. De modo que hoje, só hoje, resolvo falar com ele. Acertar as contas. Armo-me de cara e de coragem. Sei que a coragem é pouca, e dou a cara ao tapa: entro na guarita. Ele está lá, lendo um velho jornal, e não demora muito para pousar o mesmo olhar de sempre sobre a minha pessoa. Atravessado, oblíquo. Olha para o jornal ainda uma vez, como se não notasse a minha presença, mas logo levanta a vista e me aplica o golpe baixo: "Então é você mesmo!". Numa das colunas do jornal vejo um sorriso familiar. Sou eu nesta foto antiga, que já deveria ter mudado a um bom tempo, na qual nem eu mesmo me reconheceria se não tivesse fresca a lembrança de que a foto é, sim, minha. "Mas você está muito diferente... sem barba...", diz oporteiro, e dobra o seu jornal comigo dentro. Pequeno, irreconhecível.
Moro em um condomínio faz mais de seis meses, mas só agora é que fui perceber que o porteiro daqui, este tipo de bigodes que jamais vi igual fora de uma guarita, olha para mim de um jeito estranho, assim meio torto, com ares de poucos amigos. Venho tentando relevar, afinal, não sei que código de conduta rege sua profissão, e ainda que soubesse decerto não me sentiria mais à vontade frente um cidadão que exerce uma autoridade tão brutal sobre minha vida, que num simples golpe de interfone poderia, de súbito, privar-me do direito de entrar e sair deminha própria casa. Disso que já não posso lhes dizer com convicção que não tenha, em algum momento, dado motivo para tais olhares de desconfiança. Não sou aquilo que se pode chamar de simpático ao acordar. Tampouco sou afeito a gorjetas ou ao peru de Natal que, todos os anos, muito antes até de eu pensar em morar pelas redondezas, os vizinhos depositam religiosamente em sua caixinha, pendurada de qualquer jeito em algum lugar. Ao cabo de algumas semanas, porém, sinto-me inelutavelmente culpado por ter criado caso com este porteiro. Isso porque já começo a arranhar minha reputação, que de resto não é das melhores. À parte não freqüentar as reuniões de condomínio e achar muito natural reclamar do conselho deliberativo, a síndica já me desfere o mesmo olhar, basta cruzar comigo em um dos corredores. Imagino o porteiro envenenando meu poço para Deus e o mundo, extraviando minha correspondência e fazendo barbaridades com as minhas visitas. De modo que hoje, só hoje, resolvo falar com ele. Acertar as contas. Armo-me de cara e de coragem. Sei que a coragem é pouca, e dou a cara ao tapa: entro na guarita. Ele está lá, lendo um velho jornal, e não demora muito para pousar o mesmo olhar de sempre sobre a minha pessoa. Atravessado, oblíquo. Olha para o jornal ainda uma vez, como se não notasse a minha presença, mas logo levanta a vista e me aplica o golpe baixo: "Então é você mesmo!". Numa das colunas do jornal vejo um sorriso familiar. Sou eu nesta foto antiga, que já deveria ter mudado a um bom tempo, na qual nem eu mesmo me reconheceria se não tivesse fresca a lembrança de que a foto é, sim, minha. "Mas você está muito diferente... sem barba...", diz oporteiro, e dobra o seu jornal comigo dentro. Pequeno, irreconhecível.
Renivaldo Costa é genial cronista do Diário do Amapá, jornalista e professor em Macapá
E-mail: tgmafra@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário