Ainda sobre a questão indígena no Brasil
Anos atrás, descendo o rio Amazonas pedindo carona, quando estávamos em Tefé, fui convidado para ser "crooner" de uma banda que tocava numa boate da cidade. Como sou completamente desafinado, levei o convite na brincadeira e, mais por curiosidade do que por interesse no emprego, perguntei o que tinha acontecido com o cantor anterior. A resposta foi fascinante. Ele tinha sido morto por um índio porque tinha desafinado quando cantava "Detalhes", a pedido dele, para uma mulher que o acompanhava.
Mas melhor ainda foi a forma como o índio fez o serviço. Conhecedor da lei dos brancos, com quem vivia e negociava, o hipotético selvagem foi para casa, pegou uma borduna, retornou para a boate, esperou o cantor sair e amassou-lhe a cabeça. Como cometeu o crime com uma arma típica da tribo, ficou fora do alcance da lei, porque a lei brasileira considera os índios inimputáveis de forma geral, mas a jurisprudência sofisticou o sistema, levando em conta a capacidade de compreensão do ato por parte do criminoso. Nesta linha de raciocínio, ao matar com uma arma indígena, o ilustre cidadão deixa de praticar um crime porque não sabe o que está fazendo, ainda que vivendo entre os brancos e usufruindo das vantagens da civilização. Ao passo que, se matar com seis tiros de 38, a coisa muda, porque se trata de arma de branco e, portanto, ele é civilizado e passível de condenação, já que entende o que está fazendo e sabe que é crime.Depois, quando morava na Alemanha, recebi uma carta, primorosamente bem escrita por um primo, que descrevia como índios de Rondônia faziam para caçar veados e transformar suas patas em cabos de espanador ou chicote e vendê-las na beira da estrada.
O sistema era simples e remontava a tempos ancestrais, quando o branco ainda não sonhava com a América. Eles descobriam a presa, estudavam o terreno, analisavam as rotas mais propícias para levá-la em direção a uma ravina ou outro canto apertado, onde pudessem matá-la com facilidade, e depois tocavam fogo no campo ou no pasto, para forçar o veado a fugir no rumo do ponto escolhido para o abate.
Como não se preocupavam em apagar o incêndio causado, destruíam hectares de vegetação nativa ou não, apenas para matar um veado que teria como utilidade ser esquartejado para que as patas fossem vendidas como peças exóticas para o homem branco.
Dizer que estes índios não sabiam o que estavam fazendo é acreditar em Papai Noel, ou na lenda do Boto, para ficar na região amazônica. Ninguém mata um veado pretendendo transformar a caça em artefato de uso doméstico se não souber que tem comprador para ele. Ou seja, eles se valiam de um comércio absolutamente ilegal e de medidas criminosas para conseguir seus produtos, protegidos por uma legislação fora da realidade, que eles sabiam que os protegeria.
Também vale lembrar toda a série de escândalos que marcaram a vida de alguns caciques que adquiriram visibilidade durante os anos 1980. De acusação de estupro a contrabando, indo ao corte indiscriminado das árvores de lei de suas reservas, eles passaram por várias saias justas, boa parte delas desculpadas com o argumento de que não sabiam o que estavam fazendo, o que não era verdade. Eles sabiam, e se valiam da lei para não responder por seus crimes, muitos dos quais, se praticados por qualquer outro cidadão maior de idade, dariam cadeia pesada, ainda que no Brasil isso sendo raro.
Hoje está claro para a maioria dos brasileiros que boa parte dos nossos índios prefere lanchas "voadeiras", aviões e peruas 4X4 a pirogas, ocas e tacapes. Em vez de pescar usando cipó-timbó para envenenar as águas e matar os peixes, eles acham mais cômodas as delícias dos restaurantes das cidades ou mesmo a dinamite, que, explodindo na água, mata muito mais, com menos esforço.
Em função desta percepção, está em andamento avançado um projeto de lei que altera o atual status dos índios, deixando de considerá-los inimputáveis apenas por serem índios.
Entrando em vigor, esta lei equipará os brasileiros, hoje vistos de duas formas diferentes, ou melhor, divididos em duas categorias. Enquanto milhões de cidadãos podem ser condenados penalmente, sujeitos aos rigores do Código Penal, alguns milhares, em nome de uma realidade inexistente em grande parte do território nacional, ficam à margem da lei, inatingíveis, ainda que cometendo as maiores barbaridades.
Mais que isso, a nova legislação dará dignidade ao índio, um cidadão como qualquer outro, que, por razões preconceituosas, vinha sendo tratado como um imbecil, incapaz de saber as consequências de seus atos, ainda que convivendo com as outras etnias, ditas civilizadas, que compõem a nação brasileira.
Não há dúvida que ainda existem tribos fora dos parâmetros de desenvolvimento alcançados pela sociedade em geral. Mas eles são a exceção da regra. E, mal e mal, totalizam alguns milhares de indivíduos, a maioria perdida nos cafundós da selva amazônica. A imensa maioria dos ameríndios brasileiros não foi morta pelo homem branco. (...)
Leia o artigo na íntegra...
Anos atrás, descendo o rio Amazonas pedindo carona, quando estávamos em Tefé, fui convidado para ser "crooner" de uma banda que tocava numa boate da cidade. Como sou completamente desafinado, levei o convite na brincadeira e, mais por curiosidade do que por interesse no emprego, perguntei o que tinha acontecido com o cantor anterior. A resposta foi fascinante. Ele tinha sido morto por um índio porque tinha desafinado quando cantava "Detalhes", a pedido dele, para uma mulher que o acompanhava.
Mas melhor ainda foi a forma como o índio fez o serviço. Conhecedor da lei dos brancos, com quem vivia e negociava, o hipotético selvagem foi para casa, pegou uma borduna, retornou para a boate, esperou o cantor sair e amassou-lhe a cabeça. Como cometeu o crime com uma arma típica da tribo, ficou fora do alcance da lei, porque a lei brasileira considera os índios inimputáveis de forma geral, mas a jurisprudência sofisticou o sistema, levando em conta a capacidade de compreensão do ato por parte do criminoso. Nesta linha de raciocínio, ao matar com uma arma indígena, o ilustre cidadão deixa de praticar um crime porque não sabe o que está fazendo, ainda que vivendo entre os brancos e usufruindo das vantagens da civilização. Ao passo que, se matar com seis tiros de 38, a coisa muda, porque se trata de arma de branco e, portanto, ele é civilizado e passível de condenação, já que entende o que está fazendo e sabe que é crime.Depois, quando morava na Alemanha, recebi uma carta, primorosamente bem escrita por um primo, que descrevia como índios de Rondônia faziam para caçar veados e transformar suas patas em cabos de espanador ou chicote e vendê-las na beira da estrada.
O sistema era simples e remontava a tempos ancestrais, quando o branco ainda não sonhava com a América. Eles descobriam a presa, estudavam o terreno, analisavam as rotas mais propícias para levá-la em direção a uma ravina ou outro canto apertado, onde pudessem matá-la com facilidade, e depois tocavam fogo no campo ou no pasto, para forçar o veado a fugir no rumo do ponto escolhido para o abate.
Como não se preocupavam em apagar o incêndio causado, destruíam hectares de vegetação nativa ou não, apenas para matar um veado que teria como utilidade ser esquartejado para que as patas fossem vendidas como peças exóticas para o homem branco.
Dizer que estes índios não sabiam o que estavam fazendo é acreditar em Papai Noel, ou na lenda do Boto, para ficar na região amazônica. Ninguém mata um veado pretendendo transformar a caça em artefato de uso doméstico se não souber que tem comprador para ele. Ou seja, eles se valiam de um comércio absolutamente ilegal e de medidas criminosas para conseguir seus produtos, protegidos por uma legislação fora da realidade, que eles sabiam que os protegeria.
Também vale lembrar toda a série de escândalos que marcaram a vida de alguns caciques que adquiriram visibilidade durante os anos 1980. De acusação de estupro a contrabando, indo ao corte indiscriminado das árvores de lei de suas reservas, eles passaram por várias saias justas, boa parte delas desculpadas com o argumento de que não sabiam o que estavam fazendo, o que não era verdade. Eles sabiam, e se valiam da lei para não responder por seus crimes, muitos dos quais, se praticados por qualquer outro cidadão maior de idade, dariam cadeia pesada, ainda que no Brasil isso sendo raro.
Hoje está claro para a maioria dos brasileiros que boa parte dos nossos índios prefere lanchas "voadeiras", aviões e peruas 4X4 a pirogas, ocas e tacapes. Em vez de pescar usando cipó-timbó para envenenar as águas e matar os peixes, eles acham mais cômodas as delícias dos restaurantes das cidades ou mesmo a dinamite, que, explodindo na água, mata muito mais, com menos esforço.
Em função desta percepção, está em andamento avançado um projeto de lei que altera o atual status dos índios, deixando de considerá-los inimputáveis apenas por serem índios.
Entrando em vigor, esta lei equipará os brasileiros, hoje vistos de duas formas diferentes, ou melhor, divididos em duas categorias. Enquanto milhões de cidadãos podem ser condenados penalmente, sujeitos aos rigores do Código Penal, alguns milhares, em nome de uma realidade inexistente em grande parte do território nacional, ficam à margem da lei, inatingíveis, ainda que cometendo as maiores barbaridades.
Mais que isso, a nova legislação dará dignidade ao índio, um cidadão como qualquer outro, que, por razões preconceituosas, vinha sendo tratado como um imbecil, incapaz de saber as consequências de seus atos, ainda que convivendo com as outras etnias, ditas civilizadas, que compõem a nação brasileira.
Não há dúvida que ainda existem tribos fora dos parâmetros de desenvolvimento alcançados pela sociedade em geral. Mas eles são a exceção da regra. E, mal e mal, totalizam alguns milhares de indivíduos, a maioria perdida nos cafundós da selva amazônica. A imensa maioria dos ameríndios brasileiros não foi morta pelo homem branco. (...)
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