O Brasil e a crise da globalização
Em Davos, templo dos executivos que prosperaram com a globalização - que foram, e ainda são, adeptos do neoliberalismo e, por conseguinte, profetas acima de qualquer suspeita -, o prognóstico de recuperação mundial daqui a quatro anos, feito por um banqueiro, foi considerado excessivamente otimista, segundo a mídia. O Brasil tem que aceitar que esta crise é mundial e duradoura. A principal projeção de crises extensas é a transformação estrutural do padrão organizacional, operacional e das hierarquias do sistema que entrou em crise. A crise marca o fim de uma era e o início de um processo de transição, do qual emergirá uma economia substantivamente modificada. Com os ouvidos abertos aos discursos políticos do epicentro dominante, registro que Barack Obama, além de indispensáveis intervenções pontuais, prometeu em seu discurso de posse que "os EUA voltarão a liderar". Sublinho que já delineou um programa de longo prazo que supõe a modernização e recuperação da infraestrutura da economia americana e uma concentração de esforços para inventar e inovar um vetor energético, pois corretamente percebe que esta questão é seu calcanhar de Aquiles. A União Europeia sinaliza sua exigência de uma profunda reorganização do sistema financeiro mundial, que deverá ter um novo padrão de regulamentação e fiscalização. O controle dos 72 paraísos fiscais está, progressivamente, adquirindo consenso. A China já formalizou ambicioso programa de investimentos públicos e explicitou que assumirá a ampliação de seu mercado interno como futura frente de desenvolvimento. A postura de cada nação ante estes prognósticos e decisões tem sido diferenciada. Com erro de todas as generalizações, afirmaria que muitas reagem a este cenário como se estivessem sob uma nuvem tempestuosa, porém passageira; acreditam que a dinâmica mundial será restaurada; permanecem esperando. Embora procurem minimizar as perdas e reduzir as emanações da crise em seu território, não ousam propor uma trajetória própria, um padrão desejado para o desenvolvimento nacional. Infelizmente, o Brasil parece estar nesta categoria.Passando por cima de qualquer crítica pontual, aceitando sem discutir que o Brasil está com uma melhor blindagem em relação à atual crise mundial e assumindo que, no cenário de devastação progressiva, o Brasil crescerá um pouco em 2009, quero deplorar a timidez com o que está enunciado com o olhar no futuro. Três decisões merecem ser visitadas. O PAC é correto, porém insuficiente. Sua magnitude e ritmo de execução não elevaram a participação do investimento público na economia. É um ensaio modesto de execução de alguns projetos inadiáveis no segmento de infraestrutura. Foram excelentes as diretivas do presidente Lula em relação ao pré-sal: afirmou que Brasil não se converterá num país exportador de petróleo, mas sim de produtos refinados e/ou outros itens que agregam valor à atividade dos brasileiros, beneficiados com a ampliação da energia por habitante. Determinou que os efeitos dinâmicos - à frente e para trás - da economia do petróleo serão exclusivos para desenvolver atividades internas geradoras de renda e emprego. Esta diretiva abre uma frente de expansão para o investimento privado dinâmico. Mas estas não parecem ser diretivas da pauta principal da Petrobras - nossa maior empresa tem hoje 40% de seu capital em mãos estrangeiras -, que anunciou uma associação extremamente perigosa com a China. Finalmente, foi formulado um programa de habitação que parece desconhecer a reduzida capacidade de endividamento de nosso povo. Reconheço o mérito, em tese, de ativar a construção civil, porém deveria ser matéria de amplo subsídio público e assumir que o próprio povo já demonstrou que é capaz de construir suas habitações. Seria preferível apoiar a construção "formiguinha" que o povo faz com o que poupa em materiais de construção. Acho que a combinação de um programa de criação de lotes edificáveis na rede urbana e um de aperfeiçoamento do transporte coletivo de massas na rede metropolitana seriam decisões mais consistentes para o desenvolvimento brasileiro.Aos trancos e barrancos, existe já um esboço de proposta de futuro. O que não estão explicitadas são as janelas ideológicas e as oportunidades que se abrem para o Brasil. Como se sabe, a questão social é nacional e nas sociedades abertas, apesar de democracia imperfeita, nenhum governo deixará de proteger seu povo, logo, sua economia. Haverá um neoprotecionismo, não necessariamente aduaneiro, provavelmente operacionalizado a partir de um sistema bancário mais estatizado e ultrarregulamentado. Haverá neonacionalismo. O Brasil é, dos "países baleia", o que está potencialmente melhor posicionado para o desenvolvimento de um projeto civilizatório. Nossa população é urbanizada e metropolitana; estamos no melhor momento de nossa história demográfica; dispomos de um povo que quer ser feliz e está disponível para ser empregado em atividades de mais alta produtividade; podemos, pelos nossos recursos naturais, exorcizar a questão energética, preservando e aperfeiçoando a matriz (temos o mais alto índice de formas energéticas renováveis) e elevando a disponibilidade de energia por habitante.Em contrapartida, é péssima a matriz logística brasileira, predominantemente baseada nas rodovias, cujo custo é quatro vezes superior aos transportes ferroviário e aquaviário. Não incorporamos a logística nacional às três bacias fluviais e desprezamos a navegação de cabotagem. Apesar de sete regiões metropolitanas estarem na linha da costa, optamos pela rodovia de norte a sul. Não integramos nem ampliamos o acesso territorial mediante ferrovia. Podemos converter o limão em limonada. Há uma ampla fronteira de investimentos produtivos na renovação e ampliação de nossa matriz logística. A grande e espetacular vantagem é que podemos fazer uma revolução tecnológica, reduzindo frete e elevando o poder de compra de nosso povo, a partir do desenho de uma nova matriz de transporte. Estas tecnologias (rodoviária e aquaviária) são conhecidas e dominadas pela engenharia brasileira e têm o mérito de ser puramente criadoras, ao contrário da renovação de uma matriz energética no Primeiro Mundo, que será igualmente criadora, porém também destrutiva.
Artigo publicado no jornal Valor Econômico (15/04/2009); Carlos Lessa é professor titular de Economia Brasileira da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e ex-presidente do BNDES.
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