A ideologização de nossos Juízes
Juíza Marli . L. C. de Góes Nogueira*
É lamentável que o Poder Judiciário nacional (assim como as Universidades Federais e outras instituições públicas) esteja se contaminando por ideologias que o mundo há muito tempo já repudiou e que os países desenvolvidos jamais quiseram adotar porque contrárias ao próprio desenvolvimento.
As decisões emanadas do Colendo Superior Tribunal de Justiça e da Eg. 8a. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a respeito da "função social da propriedade" (Habeas-Corpus n. 4.399-SP e Apelação Cível 212.726-1-8, respectivamente), na medida em que procuram "minimizar" as desigualdades sociais acabam por usurpar a competência do Poder Executivo, já que pretendem substituir-se a este na adoção de políticas públicas nesse sentido1.
Decisões como estas vêm ocorrendo porque o artigo 5o., XXIII, da Constituição Federal de 1988 passou a ter interpretações de tal ordem que a apropriação passou a prevalecer sobre a propriedade. Como a lei, lamentavelmente, não define o que seja a "função social" da propriedade, surgiram "intérpretes" que lhe deram uma abrangência divorciada da cultura nacional, a ponto de se pretender a adoção de uma "política judicial" de distribuição de riquezas com base nesse dispositivo constitucional. A "função social" da propriedade passou a ser entendia em termos políticos, ao invés de receber uma avaliação efetivamente jurídica sobre o tema2. Perigoso entendimento. Como um dispositivo legal não deve ter interpretações baseadas em dois pesos e duas medidas, tais conclusões podem descambar para o absurdo de se entender cabível a apropriação até mesmo de simples objetos particulares que não estejam sendo utilizados. Que decisão judicial poderá ser esperada, portanto, se alguém vai a Juízo porque se vê esbulhado da posse de uma jóia trancada há anos em um cofre, de algumas roupas guardadas como lembrança, de uma travessa de porcelana que pertenceu a sua avó, ou de um simples relógio de estimação que não usa mais? Terá que se conformar com uma sentença que entenda justa a apropriação desses objetos pelo pobre que precise da jóia para empenhá-la para um empréstimo, ou que não tenha roupa para vestir, ou que precise converter a travessa em dinheiro para pagar o aluguel atrasado, ou que não tenha como ver as horas? Que dizer do que pode acontecer a outro que, tendo comprado um terreno por ocasião do nascimento de um filho ou de um neto, a fim de que quando ele cresça possa dele fazer o que quiser (o que pode levar até mesmo mais de vinte anos), se veja de repente esbulhado desse mesmo terreno por um grupo de "sem terra" ou de "sem teto", ao fundamento de que é preciso fazer "justiça social"? E se um terreno não estiver sendo utilizado devido a querelas sobre sua destinação entre os membros da família que o possui, ou em virtude de outras questões de foro íntimo?
É preciso refletir sobre essa imprudente intromissão do julgador em seara que não lhe compete, pois tudo leva a crer que, a se alastrar o entendimento esposado nas duas decisões comentadas, o que estará em ameaça não será mais o simples "bem estar" das camadas mais pobres da população, mas o próprio Estado Democrático de Direito, com inescapável insegurança dos cidadãos e, certamente, com a desconfiança destes no próprio Poder Judiciário.
Mas a "ideologização" não está contaminando apenas o Poder Judiciário. Os Comentários feitos ao final de ambas as decisões assim o demonstram. Os dois primeiros parágrafos desses Comentários bem revelam a proposta implícita de quebra do Estado Democrático de Direito, na medida em que, após induzirem o leitor e os próprios integrantes do Poder Judiciário na crença de que estes não estão "preparados" para "dar respostas satisfatórias e eficazes para os conflitos da atualidade", propõem a "resolução" desses mesmos conflitos, sem levar em conta que a competência para tal resolução (rectius, solução) é do Poder Executivo, já que ao Judiciário não compete resolver (ou solucionar), mas simplesmente decidir os casos concretos, sempre à luz dos preceitos legais emanados do Poder Legislativo. Não se trata, portanto, de imputar "comodamente" a este último Poder a responsabilidade por decisão injusta, como ali foi dito. Se a lei é injusta, injusta será, necessariamente, a decisão, sob pena de usurpação de competência, para não falar no perigo de implantação de um regime totalitarista, onde não há a clássica tripartição de poderes. Sim, porque a idéia que fica é a de que pode-se suprimir o Legislativo (que só sabe fazer leis injustas) e o Executivo (que não sabe ou não quer implantar políticas públicas) porque o Judiciário tudo proverá.
A conotação ideológica de tais Comentários é tão nítida, que neles se pode constatar o jargão típico da linguagem marxista-gramsciana, verificada no uso de expressões como "Estado burguês", "sistema", "conflituosidade de massa", "racionalidade alternativa", "classes dominadas", "lutas populares", "grupo dominador" (no caso da propriedade, o proprietário). Sem falar na indução à luta de classes, pois estimula a ação delituosa das "classes dominadas" contra o "grupo dominador", sob (pasmem!) a garantia do Poder Judiciário.
Vale observar, ainda, que esses Comentários utilizam com absoluta perfeição a doutrina gramsciana hoje plenamente adotada por "intelectuais" de esquerda (cf. Marilena Chauí, tão apreciada), estabelecendo um elo emocional com seus destinatários (no caso, Juízes), incutindo-lhes um sentimento de culpa que não deveriam ter, para, a seguir, inocular-lhes o ódio ao "grupo dominador" e, via de conseqüência, a tendência em proferir decisões de cunho claramente ideológico-partidário. A adotar-se o critério de julgamento ali exposto, aí sim haverá absoluta quebra da imparcialidade que deve nortear a decisão judicial. Não falo aqui daquela imparcialidade utópica, que somente seria de se esperar de robôs ou de anjos do paraíso, mas da imparcialidade caracterizada pela ausência de influências ideológicas de esquerda ou de direita, admitindo-se que o Judiciário não deve se transformar em palanques para divulgação desta ou daquela ideologia política.
O que é de fato espantoso é que os Juízes (e outros operadores do Direito) estão se deixando influenciar por tal doutrina, o que realmente revela (e aí tenho que concordar com o autor dos Comentários) seu despreparo cultural e sua total desinformação a respeito do que anda ocorrendo no mundo e em seu próprio país. Não percebem - porque muito sutil e "politicamente correta" - a avalanche de publicações ideológicas que lhes são dirigidas (basta ver as citações de rodapé dos Comentários, por exemplo), consubstanciadas num verdadeiro think tank a pretender justificar a deturpação da nobre missão de julgar com isenção e espírito de justiça.
Os temas que hoje são objeto de simpósios e congressos do Poder Judiciário demonstram, nitidamente, que seus integrantes estão caindo na esparrela de se acharem investidos de funções executivas e legislativas. Ao invés de levarem à discussão questões preponderantemente jurídicas, os organizadores desses encontros preferem colocar em pauta temas políticos que, em última análise, acabam por esvaziar a cultura jurídica dos participantes, criar sentimentos de frustração em Juízes bem intencionados e estimular o ódio naqueles que erraram de carreira. Por outro lado, nenhuma das publicações que se revelam contrárias ao statu quo e que apelam para a "sensibilidade" do Juiz traz algum projeto de mitigação dos problemas sociais, configurando, todas elas, mera produção científica teorizante sobre essas questões, com a intenção clara de "fazer a cabeça" dos integrantes do Poder Judiciário, que hoje, em grande parte, é composto por Juízes jovens, ainda não suficientemente experientes para perceberem o ardil em que estão sendo envolvidos.
É evidente que a justiça social deve ser o escopo de toda nação séria e que uma sociedade homogênea é o ideal a ser sempre perseguido. Mas não se pode pretender essa igualdade numa nivelação rasteira, aumentando o número de pobres na medida em que empobrece os ricos, transformando os Juízes em Arsènes Lupin ou em Robins Hood da atualidade.
Deverão mesmo os julgadores torcer e virar pelo avesso todo o ordenamento jurídico para conferir-lhe um fim político-partidário, como desejam os nossos "intelectuais"? Só falta mesmo exigir que eles dispam a toga e, de roupas surradas, passem a sentenciar com base em "O Capital" ou na "Revolução Cultural", na doce ilusão de estarem, assim, "resolvendo" os graves problemas que atingem a nossa sociedade.
Brasília, 05 de julho de 2001
Juíza Marli . L. C. de Góes Nogueira*
É lamentável que o Poder Judiciário nacional (assim como as Universidades Federais e outras instituições públicas) esteja se contaminando por ideologias que o mundo há muito tempo já repudiou e que os países desenvolvidos jamais quiseram adotar porque contrárias ao próprio desenvolvimento.
As decisões emanadas do Colendo Superior Tribunal de Justiça e da Eg. 8a. Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, a respeito da "função social da propriedade" (Habeas-Corpus n. 4.399-SP e Apelação Cível 212.726-1-8, respectivamente), na medida em que procuram "minimizar" as desigualdades sociais acabam por usurpar a competência do Poder Executivo, já que pretendem substituir-se a este na adoção de políticas públicas nesse sentido1.
Decisões como estas vêm ocorrendo porque o artigo 5o., XXIII, da Constituição Federal de 1988 passou a ter interpretações de tal ordem que a apropriação passou a prevalecer sobre a propriedade. Como a lei, lamentavelmente, não define o que seja a "função social" da propriedade, surgiram "intérpretes" que lhe deram uma abrangência divorciada da cultura nacional, a ponto de se pretender a adoção de uma "política judicial" de distribuição de riquezas com base nesse dispositivo constitucional. A "função social" da propriedade passou a ser entendia em termos políticos, ao invés de receber uma avaliação efetivamente jurídica sobre o tema2. Perigoso entendimento. Como um dispositivo legal não deve ter interpretações baseadas em dois pesos e duas medidas, tais conclusões podem descambar para o absurdo de se entender cabível a apropriação até mesmo de simples objetos particulares que não estejam sendo utilizados. Que decisão judicial poderá ser esperada, portanto, se alguém vai a Juízo porque se vê esbulhado da posse de uma jóia trancada há anos em um cofre, de algumas roupas guardadas como lembrança, de uma travessa de porcelana que pertenceu a sua avó, ou de um simples relógio de estimação que não usa mais? Terá que se conformar com uma sentença que entenda justa a apropriação desses objetos pelo pobre que precise da jóia para empenhá-la para um empréstimo, ou que não tenha roupa para vestir, ou que precise converter a travessa em dinheiro para pagar o aluguel atrasado, ou que não tenha como ver as horas? Que dizer do que pode acontecer a outro que, tendo comprado um terreno por ocasião do nascimento de um filho ou de um neto, a fim de que quando ele cresça possa dele fazer o que quiser (o que pode levar até mesmo mais de vinte anos), se veja de repente esbulhado desse mesmo terreno por um grupo de "sem terra" ou de "sem teto", ao fundamento de que é preciso fazer "justiça social"? E se um terreno não estiver sendo utilizado devido a querelas sobre sua destinação entre os membros da família que o possui, ou em virtude de outras questões de foro íntimo?
É preciso refletir sobre essa imprudente intromissão do julgador em seara que não lhe compete, pois tudo leva a crer que, a se alastrar o entendimento esposado nas duas decisões comentadas, o que estará em ameaça não será mais o simples "bem estar" das camadas mais pobres da população, mas o próprio Estado Democrático de Direito, com inescapável insegurança dos cidadãos e, certamente, com a desconfiança destes no próprio Poder Judiciário.
Mas a "ideologização" não está contaminando apenas o Poder Judiciário. Os Comentários feitos ao final de ambas as decisões assim o demonstram. Os dois primeiros parágrafos desses Comentários bem revelam a proposta implícita de quebra do Estado Democrático de Direito, na medida em que, após induzirem o leitor e os próprios integrantes do Poder Judiciário na crença de que estes não estão "preparados" para "dar respostas satisfatórias e eficazes para os conflitos da atualidade", propõem a "resolução" desses mesmos conflitos, sem levar em conta que a competência para tal resolução (rectius, solução) é do Poder Executivo, já que ao Judiciário não compete resolver (ou solucionar), mas simplesmente decidir os casos concretos, sempre à luz dos preceitos legais emanados do Poder Legislativo. Não se trata, portanto, de imputar "comodamente" a este último Poder a responsabilidade por decisão injusta, como ali foi dito. Se a lei é injusta, injusta será, necessariamente, a decisão, sob pena de usurpação de competência, para não falar no perigo de implantação de um regime totalitarista, onde não há a clássica tripartição de poderes. Sim, porque a idéia que fica é a de que pode-se suprimir o Legislativo (que só sabe fazer leis injustas) e o Executivo (que não sabe ou não quer implantar políticas públicas) porque o Judiciário tudo proverá.
A conotação ideológica de tais Comentários é tão nítida, que neles se pode constatar o jargão típico da linguagem marxista-gramsciana, verificada no uso de expressões como "Estado burguês", "sistema", "conflituosidade de massa", "racionalidade alternativa", "classes dominadas", "lutas populares", "grupo dominador" (no caso da propriedade, o proprietário). Sem falar na indução à luta de classes, pois estimula a ação delituosa das "classes dominadas" contra o "grupo dominador", sob (pasmem!) a garantia do Poder Judiciário.
Vale observar, ainda, que esses Comentários utilizam com absoluta perfeição a doutrina gramsciana hoje plenamente adotada por "intelectuais" de esquerda (cf. Marilena Chauí, tão apreciada), estabelecendo um elo emocional com seus destinatários (no caso, Juízes), incutindo-lhes um sentimento de culpa que não deveriam ter, para, a seguir, inocular-lhes o ódio ao "grupo dominador" e, via de conseqüência, a tendência em proferir decisões de cunho claramente ideológico-partidário. A adotar-se o critério de julgamento ali exposto, aí sim haverá absoluta quebra da imparcialidade que deve nortear a decisão judicial. Não falo aqui daquela imparcialidade utópica, que somente seria de se esperar de robôs ou de anjos do paraíso, mas da imparcialidade caracterizada pela ausência de influências ideológicas de esquerda ou de direita, admitindo-se que o Judiciário não deve se transformar em palanques para divulgação desta ou daquela ideologia política.
O que é de fato espantoso é que os Juízes (e outros operadores do Direito) estão se deixando influenciar por tal doutrina, o que realmente revela (e aí tenho que concordar com o autor dos Comentários) seu despreparo cultural e sua total desinformação a respeito do que anda ocorrendo no mundo e em seu próprio país. Não percebem - porque muito sutil e "politicamente correta" - a avalanche de publicações ideológicas que lhes são dirigidas (basta ver as citações de rodapé dos Comentários, por exemplo), consubstanciadas num verdadeiro think tank a pretender justificar a deturpação da nobre missão de julgar com isenção e espírito de justiça.
Os temas que hoje são objeto de simpósios e congressos do Poder Judiciário demonstram, nitidamente, que seus integrantes estão caindo na esparrela de se acharem investidos de funções executivas e legislativas. Ao invés de levarem à discussão questões preponderantemente jurídicas, os organizadores desses encontros preferem colocar em pauta temas políticos que, em última análise, acabam por esvaziar a cultura jurídica dos participantes, criar sentimentos de frustração em Juízes bem intencionados e estimular o ódio naqueles que erraram de carreira. Por outro lado, nenhuma das publicações que se revelam contrárias ao statu quo e que apelam para a "sensibilidade" do Juiz traz algum projeto de mitigação dos problemas sociais, configurando, todas elas, mera produção científica teorizante sobre essas questões, com a intenção clara de "fazer a cabeça" dos integrantes do Poder Judiciário, que hoje, em grande parte, é composto por Juízes jovens, ainda não suficientemente experientes para perceberem o ardil em que estão sendo envolvidos.
É evidente que a justiça social deve ser o escopo de toda nação séria e que uma sociedade homogênea é o ideal a ser sempre perseguido. Mas não se pode pretender essa igualdade numa nivelação rasteira, aumentando o número de pobres na medida em que empobrece os ricos, transformando os Juízes em Arsènes Lupin ou em Robins Hood da atualidade.
Deverão mesmo os julgadores torcer e virar pelo avesso todo o ordenamento jurídico para conferir-lhe um fim político-partidário, como desejam os nossos "intelectuais"? Só falta mesmo exigir que eles dispam a toga e, de roupas surradas, passem a sentenciar com base em "O Capital" ou na "Revolução Cultural", na doce ilusão de estarem, assim, "resolvendo" os graves problemas que atingem a nossa sociedade.
Brasília, 05 de julho de 2001
* Marli L. C. de Góes Nogueira é juíza titular da 6a. Vara do Trabalho de Brasília, pós-graduanda em Direito Constitucional pela UnB e diplomada pela Escola Superior de Guerra em 2000
NOTAS
1. Veja-se, inclusive, que em ambas as decisões sequer houve participação do Ministério Público ( pelo menos não há menção a isso ) sugerindo a desapropriação das áreas com um fim determinado e específico: construção de hospital, escola, viaduto ou mesmo instalação de pessoas de baixa renda. O próprio Judiciário, sponte sua, decidiu "fazer política" com a coisa alheia, sempre com base na "função social da propriedade".
2. Em vez de se verificar, por exemplo, se um determinado bosque particular está sendo intencionalmente queimado, poluindo o meio-ambiente, ou se um terreno está avançando seus limites sobre área pública, prejudicando sua utilização para a construção de uma escola ou de outro bem público, passou-se a entender que uma propriedade deve ser "repartida" entre os pobres, caso não esteja sendo utilizada.
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