
O MUNDO COMO ESTÁ
Visão de Babuc escrita por ele próprio
De Voltaire
APRESENTAÇÃO
Por Nélson Jahr Garcia
Em "O mundo como está" temos o mesmo Voltaire irônico e crítico em relação aos costumes de sua época. Contudo, não é o sarcástico de outras obras. Foi escrito na fase em que ainda lhe restava certo otimismo e algum sorriso. Babuc foi encarregado, pelas divindades, representadas por Ituriel, de observar pessoalmente Persépolis e apresentar um relatório para que os deuses decidissem ou não pela destruição da cidade que julgavam irremediavelmente contaminada. Em suas observações demonstra que não é possível distinguir entre defeitos e virtudes como entidades estanques e opostas, noção já existente há milênios e recuperada por Hegel e Marx, muito mais tarde, sob o rótulo de "unidade dos contrários".
Após verificar a destruição e morticínio gerados por uma guerra arrasadora Babuc percebe a ingenuidade e ignorância dos soldados que participavam da batalha, inclusive do capitão:
Depois de dar um pequeno presente ao soldado, Babuc entrou no acampamento. Em breve travou conhecimento com o capitão e perguntou-lhe o motivo da. guerra.
- Como quer que eu saiba? - respondeu o capitão.
- E que me importa esse belo motivo? Moro a duzentas léguas de Persépolis; ouço dizer que foi declarada guerra; abandono em seguida a família, e vou procurar, segundo nosso costume, a fortuna ou a morte, visto que nada tenho que fazer.
Do lado contrário da contenda, reforçou sua visão de que nenhum dos lados poderia ser responsabilizado pelo mal que tinha duas faces:
Absorto nesses pensamentos, passou ao acampamento dos indianos. Foi ali tão bem acolhido como no dos persas, conforme lhe fora predito; mas viu os mesmos excessos que o haviam transido de horror. "Oh! oh! - exclamou consigo - se o anjo Ituriel quer exterminar os persas, também o anjo das Índias tem de exterminar os indianos". Informando-se em seguida, mais detalhadamente, do que se passara em ambos os exércitos, soube de atos de
desprendimento, de grandeza de alma, de humanidade, que o espantaram e comoveram.
"Inexplicáveis humanos - exclamou, - como podeis reunir tanta baixeza e grandeza, tantas virtudes e crimes?"
Até mesmo o negociante desonesto mostrou a Babuc outra perspectiva de suas práticas, aliás muito semelhante à defendida pelos neo-liberais de nossos dias:
- Não há nesta cidade nenhum negociante mais ou menos conhecido - respondeu-lhe o outro - que não viesse devolver-lhe a bolsa; mas muito o enganaram, dizendo-lhe que eu lhe vendera artigos quatro vezes mais caro do que valiam: vendi-os por dez vezes mais. E tanto isto é verdade que, se daqui a um mês o senhor quiser revendê-los, não obterá nem essa décima parte. Mas nada mais justo: é a fantasia dos homens que dá preço a essas coisas frívolas; é essa fantasia que faz viver cem operários que eu emprego, é ela que me dá uma bela casa, um carro cômodo, cavalos, é ela que anima a indústria, que mantém o gosto, a circulação e a abundância. Às nações vizinhas vendo eu essas bagatelas muito mais caro que ao senhor, e assim sou útil ao império.
Por vezes Babuc se assusta com a falta de caráter:
Tinham algum conhecimento da missão de Babuc. Um deles pediu-lhe em segredo que exterminasse um autor que não o louvara suficientemente cinco anos atrás. Outro solicitou a perda de um cidadão que nunca rira nas suas comédias. Um terceiro pediu a extinção da Academia, porque jamais conseguira entrar para ela. Findo o almoço, cada qual se retirou sozinho, pois não havia em todo o grupo dois homens que se pudessem suportar, nem falar-se a não ser em casa dos ricos que o convidavam para a sua mesa. Babuc julgou que não se perderia nada se toda aquela cambada perecesse na destruição geral.
Mais tarde, um sábio mostra um outro lado da realidade:
- O senhor leu coisas bastante desprezíveis - disse-lhe o sábio letrado. - Mas em todas as épocas, e em todos os países, e em todos os gêneros, sempre formiga o mau e escasseia o bom. E se o senhor recebeu em casa o rebotalho do pedantismo é porque, em todas as profissões, o que há de mais indigno de aparecer é sempre o que se apresenta com maior imprudência. Os verdadeiros sábios vivem entre si, retirados e tranqüilos; há ainda, em nosso meio, homens e livros dignos de lhe ocupar a atenção.
Babuc também conheceu uma visão diferente da justiça humana:
Levou-o no dia seguinte ao tribunal, onde devia ser proferida importante sentença. A causa era conhecida de todos. Os velhos advogados que a discutiam pareciam flutuar nas suas opiniões; alegavam cem leis, nenhuma das quais era aplicável ao fundo da questão; consideravam o assunto por cem pontos de vista, nenhum deles o adequado; os juízes decidiram mais depressa do que o tempo que gastaram os advogados em hesitar. O veredicto foi quase unânime; julgaram bem, porque seguiam as luzes da razão, e os outros haviam
opinado mal, porque apenas tinham consultado os livros.
A pérola, a conclusão que é a obra prima do texto: Babuc comprova que não se pode pretender a perfeição absoluta do ser humano.
Eis como se houve para apresentar esse relatório. Mandou fazer no melhor fundidor da cidade uma estatueta composta de todos os metais, das terras e pedras mais preciosas e mais vis; e levou-a a Ituriel.
- Destruirias - disse ele - esta linda estátua, porque não é toda de ouro e diamantes?
O texto é um de um esplendor poético quase perfeito, é preciso senti-lo antes de razoar sobre ele. A genialidade não se julga, aprecia-se.
BIOGRAFIA DO AUTOR
FRANÇOIS-MARIE AROUET, filho de um notário do Châtelet, nasceu em Paris, em 21 de novembro de 1694. Depois de um curso brilhante num colégio de jesuítas, pretendendo dedicar-se à magistratura, pôs-se ao serviço de um procurador. Mais tarde, patrocinado pela sociedade do Templo e em particular por Chaulieu e pelo marquês de la Fare, publicou seus primeiros versos. Em 1717, acusado de ser o autor de um panfleto político, foi preso e encarcerado na Bastilha, de onde saiu seis meses depois, com a Henriade quase terminada e com o esboço do OEdipe. Foi por essa ocasião que ele resolveu adotar o nome de Voltaire. Sua tragédia OEdipe foi representada em 1719 com grande êxito; nos anos seguintes, vieram: Artemise (1720), Marianne (1725) e o Indiscret (1725).
Em 1726, em conseqüência de um incidente com o cavaleiro de Rohan, foi novamente recolhido à Bastilha, de onde só pode sair sob a condição de deixar a França. Foi então para a Inglaterra e aí se dedicou ao estudo da língua e da literatura inglesas. Três anos mais tarde, regressou e publicou Brutus
(1730), Eriphyle (1732), Zaïre (1732), La Mort de César (1733) e Adélaïde Duguesclin (1734). Datam da mesma época suas Lettres Philosophiques ou Lettres Anglaises, que provocaram grande escândalo e obrigaram a refugiar-se em Lorena, no castelo de Madame du Châtelet, em cuja companhia viveu até 1749. Aí se entregou ao estudo das ciências e escreveu os Eléments de le Philosophie de Newton (1738), além de Alzire, L'Enfant Prodigue, Mahomet, Mérope, Discours sur l'Homme, etc.
Em 1749, após a morte de Madame du Châtelet, voltou a Paris, já então cheio de glória e conhecido em toda a Europa, e foi para Berlim, onde já estivera alguns anos antes como diplomata. Frederico II conferiu-lhe honras excepcionais e deu-lhe uma pensão de 20.000 francos, acrescendo-lhe assim a fortuna já considerável. Essa amizade, porém, não durou muito: as intrigas e os ciúmes em torno dos escritos de Voltaire obrigaram-no a deixar Berlim em 1753.
Sem poder fixar-se em parte alguma, esteve sucessivamente em Estrasburgo, Colmar, Lyon, Genebra, Nantua; em 1758, adquiriu o domínio de Ferney, na província de Gex e aí passou, então, a residir em companhia de sua sobrinha Madame Denis. Foi durante os vinte anos que assim viveu, cheio de glória e de amigos, que redigiu Candide, Histoire de la Russie sous Pierre le Grand, Histoire du Parlement de Paris, etc., sem contar numerosas peças teatrais.
Em 1778, em sua viagem a Paris, foi entusiasticamente recebido. Morreu no dia 30 de março desse mesmo ano, aos 84 anos de idade.
Visão de Babuc escrita por ele próprio
De Voltaire
APRESENTAÇÃO
Por Nélson Jahr Garcia
Em "O mundo como está" temos o mesmo Voltaire irônico e crítico em relação aos costumes de sua época. Contudo, não é o sarcástico de outras obras. Foi escrito na fase em que ainda lhe restava certo otimismo e algum sorriso. Babuc foi encarregado, pelas divindades, representadas por Ituriel, de observar pessoalmente Persépolis e apresentar um relatório para que os deuses decidissem ou não pela destruição da cidade que julgavam irremediavelmente contaminada. Em suas observações demonstra que não é possível distinguir entre defeitos e virtudes como entidades estanques e opostas, noção já existente há milênios e recuperada por Hegel e Marx, muito mais tarde, sob o rótulo de "unidade dos contrários".
Após verificar a destruição e morticínio gerados por uma guerra arrasadora Babuc percebe a ingenuidade e ignorância dos soldados que participavam da batalha, inclusive do capitão:
Depois de dar um pequeno presente ao soldado, Babuc entrou no acampamento. Em breve travou conhecimento com o capitão e perguntou-lhe o motivo da. guerra.
- Como quer que eu saiba? - respondeu o capitão.
- E que me importa esse belo motivo? Moro a duzentas léguas de Persépolis; ouço dizer que foi declarada guerra; abandono em seguida a família, e vou procurar, segundo nosso costume, a fortuna ou a morte, visto que nada tenho que fazer.
Do lado contrário da contenda, reforçou sua visão de que nenhum dos lados poderia ser responsabilizado pelo mal que tinha duas faces:
Absorto nesses pensamentos, passou ao acampamento dos indianos. Foi ali tão bem acolhido como no dos persas, conforme lhe fora predito; mas viu os mesmos excessos que o haviam transido de horror. "Oh! oh! - exclamou consigo - se o anjo Ituriel quer exterminar os persas, também o anjo das Índias tem de exterminar os indianos". Informando-se em seguida, mais detalhadamente, do que se passara em ambos os exércitos, soube de atos de
desprendimento, de grandeza de alma, de humanidade, que o espantaram e comoveram.
"Inexplicáveis humanos - exclamou, - como podeis reunir tanta baixeza e grandeza, tantas virtudes e crimes?"
Até mesmo o negociante desonesto mostrou a Babuc outra perspectiva de suas práticas, aliás muito semelhante à defendida pelos neo-liberais de nossos dias:
- Não há nesta cidade nenhum negociante mais ou menos conhecido - respondeu-lhe o outro - que não viesse devolver-lhe a bolsa; mas muito o enganaram, dizendo-lhe que eu lhe vendera artigos quatro vezes mais caro do que valiam: vendi-os por dez vezes mais. E tanto isto é verdade que, se daqui a um mês o senhor quiser revendê-los, não obterá nem essa décima parte. Mas nada mais justo: é a fantasia dos homens que dá preço a essas coisas frívolas; é essa fantasia que faz viver cem operários que eu emprego, é ela que me dá uma bela casa, um carro cômodo, cavalos, é ela que anima a indústria, que mantém o gosto, a circulação e a abundância. Às nações vizinhas vendo eu essas bagatelas muito mais caro que ao senhor, e assim sou útil ao império.
Por vezes Babuc se assusta com a falta de caráter:
Tinham algum conhecimento da missão de Babuc. Um deles pediu-lhe em segredo que exterminasse um autor que não o louvara suficientemente cinco anos atrás. Outro solicitou a perda de um cidadão que nunca rira nas suas comédias. Um terceiro pediu a extinção da Academia, porque jamais conseguira entrar para ela. Findo o almoço, cada qual se retirou sozinho, pois não havia em todo o grupo dois homens que se pudessem suportar, nem falar-se a não ser em casa dos ricos que o convidavam para a sua mesa. Babuc julgou que não se perderia nada se toda aquela cambada perecesse na destruição geral.
Mais tarde, um sábio mostra um outro lado da realidade:
- O senhor leu coisas bastante desprezíveis - disse-lhe o sábio letrado. - Mas em todas as épocas, e em todos os países, e em todos os gêneros, sempre formiga o mau e escasseia o bom. E se o senhor recebeu em casa o rebotalho do pedantismo é porque, em todas as profissões, o que há de mais indigno de aparecer é sempre o que se apresenta com maior imprudência. Os verdadeiros sábios vivem entre si, retirados e tranqüilos; há ainda, em nosso meio, homens e livros dignos de lhe ocupar a atenção.
Babuc também conheceu uma visão diferente da justiça humana:
Levou-o no dia seguinte ao tribunal, onde devia ser proferida importante sentença. A causa era conhecida de todos. Os velhos advogados que a discutiam pareciam flutuar nas suas opiniões; alegavam cem leis, nenhuma das quais era aplicável ao fundo da questão; consideravam o assunto por cem pontos de vista, nenhum deles o adequado; os juízes decidiram mais depressa do que o tempo que gastaram os advogados em hesitar. O veredicto foi quase unânime; julgaram bem, porque seguiam as luzes da razão, e os outros haviam
opinado mal, porque apenas tinham consultado os livros.
A pérola, a conclusão que é a obra prima do texto: Babuc comprova que não se pode pretender a perfeição absoluta do ser humano.
Eis como se houve para apresentar esse relatório. Mandou fazer no melhor fundidor da cidade uma estatueta composta de todos os metais, das terras e pedras mais preciosas e mais vis; e levou-a a Ituriel.
- Destruirias - disse ele - esta linda estátua, porque não é toda de ouro e diamantes?
O texto é um de um esplendor poético quase perfeito, é preciso senti-lo antes de razoar sobre ele. A genialidade não se julga, aprecia-se.
BIOGRAFIA DO AUTOR

Em 1726, em conseqüência de um incidente com o cavaleiro de Rohan, foi novamente recolhido à Bastilha, de onde só pode sair sob a condição de deixar a França. Foi então para a Inglaterra e aí se dedicou ao estudo da língua e da literatura inglesas. Três anos mais tarde, regressou e publicou Brutus
(1730), Eriphyle (1732), Zaïre (1732), La Mort de César (1733) e Adélaïde Duguesclin (1734). Datam da mesma época suas Lettres Philosophiques ou Lettres Anglaises, que provocaram grande escândalo e obrigaram a refugiar-se em Lorena, no castelo de Madame du Châtelet, em cuja companhia viveu até 1749. Aí se entregou ao estudo das ciências e escreveu os Eléments de le Philosophie de Newton (1738), além de Alzire, L'Enfant Prodigue, Mahomet, Mérope, Discours sur l'Homme, etc.
Em 1749, após a morte de Madame du Châtelet, voltou a Paris, já então cheio de glória e conhecido em toda a Europa, e foi para Berlim, onde já estivera alguns anos antes como diplomata. Frederico II conferiu-lhe honras excepcionais e deu-lhe uma pensão de 20.000 francos, acrescendo-lhe assim a fortuna já considerável. Essa amizade, porém, não durou muito: as intrigas e os ciúmes em torno dos escritos de Voltaire obrigaram-no a deixar Berlim em 1753.
Sem poder fixar-se em parte alguma, esteve sucessivamente em Estrasburgo, Colmar, Lyon, Genebra, Nantua; em 1758, adquiriu o domínio de Ferney, na província de Gex e aí passou, então, a residir em companhia de sua sobrinha Madame Denis. Foi durante os vinte anos que assim viveu, cheio de glória e de amigos, que redigiu Candide, Histoire de la Russie sous Pierre le Grand, Histoire du Parlement de Paris, etc., sem contar numerosas peças teatrais.
Em 1778, em sua viagem a Paris, foi entusiasticamente recebido. Morreu no dia 30 de março desse mesmo ano, aos 84 anos de idade.
O MUNDO COMO ESTÁ
Visão de Babuc escrita por ele próprio
Entre os gênios que presidem os Impérios do mundo, ocupa Ituriel um dos primeiros lugares, e tem a seu cargo o departamento da Alta Ásia. Desceu certa manhã à morada do cita Babuc, à margem do Oxus, e disse-lhe:
- Babuc, as loucuras e excessos dos persas atraíram nossa cólera; reuniu-se ontem uma assembléia dos gênios da Alta Ásia para decidir se se devia castigar Persépolis ou destruí-la. Vai a esta cidade, examina tudo; conta-me fielmente o que vires; e eu resolverei, conforme o teu relato, corrigir a cidade ou exterminá-la.
- Mas, Senhor - observou humildemente Babuc, - eu nunca estive na Pérsia; não conheço ninguém por lá.
- Tanto melhor - retrucou o anjo, - assim não serás parcial; recebeste do céu o discernimento, e eu acrescento-lhe o dom de inspirar confiança; anda, olha, escuta, observa, e nada temas: serás bem recebido em toda parte.
Babuc montou no camelo e partiu com os seus criados. Ao cabo de alguns dias, encontrou nas (...)
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