Os Mesquita, o Estadão e a liberdade de imprensa
Nunca é demais lembrar a resistência de O Estado de S.Paulo (e Jornal da Tarde) à censura – com os versos de Camões, as receitas de bolo e as fotos de flores. É justo lembrar em livro, como fez no 40° aniversário do AI-5, em dezembro do ano passado, o jornalista José Maria Mayrink (veja ao lado a capa de seu Mordaça no Estadão), que viveu aqueles tempos difíceis (mais sobre a mídia e o AI-5 AQUI, num depoimento de Alberto Dines).
Mas é injusto esquecer que quando Fernando Gasparian, diretor de Opinião, decidiu impetrar mandado de segurança contra a censura em 1973, o mesmo Estadão, através de seu diretor Ruy Mesquita, ficou atemorizado, negando-se a ser parte da causa (saiba mais sobre Gasparian e seu jornal AQUI e AQUI).
Eu entenderia se a razão tivesse sido apenas o fato de ser Opinião um semanário alternativo, menor, enquanto o Estadão era um dos jornalões tradicionais do país, muito conhecido até no exterior. Mas Gasparian disse então a Ruy Mesquita que, se o Estadão preferisse não entrar junto com Opinião, estaria bem: entraria sozinho e o semanário, nanico, se somaria apenas depois à iniciativa.
Essa história, com mais detalhes, foi contada pelo próprio Gasparian e está no livro (veja a capa abaixo, à direita) Opinião x Censura – Momentos da luta de um jornal pela independência, de J. A. Pinheiro Machado (editora L&PM, 1978). O motivo real dos Mesquita (o irmão Júlio estava então fora do país), além do medo de represálias, era o fato de já ter a promessa do general Ernesto Geisel de que a censura do Estadão seria levantada.
Adauto Cardoso, outro herói esquecido
O episódio teve ainda outro herói: Adauto Lúcio Cardoso, jurista da UDN, conspirador no golpe de 1964 e ex-presidente da Câmara (em 1966, até renunciar em protesto pela cassação dos mandatos de seis deputados da oposição), ideologicamente mais afinado com o Estadão do que com Opinião. Nomeado para o Supremo, votara a favor de habeas corpus para Vladimir Palmeira e Darcy Ribeiro. Mas em 1971 aposentou-se, envergonhado com uma decisão que mantivera restrições à liberdade de imprensa.
Cardoso tinha prometido só voltar ao STF para defender a causa da liberdade de imprensa. Assim, ao ser procurado em 1973, concordou em ser o advogado de Opinião no caso. Como Estadão e Veja estavam também sob censura, explicou a Gasparian: a causa ganharia força se um deles (ou os dois) se somasse a ela. O dono de Opinião não tinha ilusões sobre os Civita, mas procurou Ruy Mesquita.
Ficou desapontado com a resposta negativa. Naqueles dias o Estadão, que participara do complô do golpe, apostava na troca de generais, a se consumar no Planalto. O então presidente, Garrastazu Médici, tinha Orlando Geisel à frente do ministério do Exército – uma garantia de que só um grave acidente de percurso seria capaz de impedir em 1974 a ascensão do irmão dele, o também general Ernesto Geisel.
Poupar o Estadão e esquecer o resto?
Um amigo comum do jornal e do futuro presidente, segundo Gasparian (foto ao lado), já tinha assegurado aos Mesquita que o novo governo ia tirar a censura do Estadão. De fato, isso ocorreria em 1975. Mas as vítimas menores – Opinião, O São Paulo, Tribuna da Imprensa, Movimento, etc – continuariam sob censura implacável. Ao confiar em Geisel, a família Mesquita ficou indiferente à sorte dos demais.
Toda a prática da censura, explicitamente proibida na Constituição em vigor, foi exposta – até com as minúcias ridículas e grotescas – na petição do mandato de segurança levada ao Tribunal Federal de Recursos, a 10 de maio de 1973, pelo advogado Adauto Lúcio Cardoso. Ao final, por 6 votos contra 5, o TFR decidiu: a censura prévia feita no Opinião pela Polícia Federal violava a Constituição.
Consumada a decisão judicial, no entanto, a Polícia Federal avisou a redação de Opinião pelo telefone: “Não publiquem o jornal sem obedecer à censura. Se isso acontecer, temos ordem para apreender a edição”. Na manhã seguinte o general-presidente Garrastazu Médici (veja-o abaixo, à direita, na Casa Branca), em simples despacho, mandou a PF ignorar a Justiça e manter a censura no jornal, com base no AI-5. Eis a íntegra do despacho, de 20 de junho:
Despacho do Presidente da República – Processo 5005/73
"Diante do exposto neste processo pelo Senhor Ministro da Justiça:
1. Ratifico o despacho exarado em 30 de março de 1971, na exposição de motivos n° 165 B, de 20 de março daquele ano, no qual adotei em defesa da revolução, com fundamento no artigo 9 do Ato Institucional n° 5, as medidas previstas no art. 152, parágrafo 2°, letra E, da Emenda Constitucional b. 1;
2. Tendo a decisão proferida no mandato de segurança impetrado pela Editora Inúbia Ltda. Afirmado não existir nos autos provas de imposição de censura por ato do Presidente da República, reitero a autorização de que a Polícia Federal estabeleça censura quanto ao período OPINIÃO."
Um detalhe escabroso de tudo isso é que o tal despacho citado no ítem 1 (de 30 de março de 1971) teria sido secreto, nunca fora revelado. Assim, o mandado de segurança de Opinião tivera no mínimo o mérito de forçar a ditadura ou a revelar a existência de “despachos secretos” (como sabemos, havia também “decretos secretos”), ou a fabricar um às pressas (e a posteriori), na obsessão de forjar cobertura jurídica para invalidar a decisão do TFR.
A mesma mídia covarde que hoje apregoa compromisso com a liberdade de imprensa – em ataques torpes ao governo Lula e especialmente a outros governos do continente, como o da Venezuela – acovardava-se então (leia AQUI sobre o heroismo do Estadão no passado e sua prepotência atual). Em 1973, recebeu uma lição de coragem cívica, dada por Gasparian, Opinião e o advogado Adauto Lúcio Cardoso. O Estadão, pelo menos, ainda noticiou o fato discretamente em sua primeira página do dia seguinte. O resto da mídia, nem isso.
Blog do Argemiro Ferreira
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