Política monetária dos EUA pilha o Brasil com dólares sem lastro
Trata-se de tentar sair da crise transferindo para os monopólios financeiros dos Estados Unidos as riquezas do Brasil e outros países
As declarações do ministro da Fazenda, Guido Mantega, no recente seminário “Investing in Brazil” (!?), patrocinado pelo “Financial Times” (?!), soam algo estranhas na selva escura a que a política monetária dos EUA levou o mundo nos últimos meses.Diz o ministro que, se não fosse a sobrevalorização do real, o Brasil estaria mais “competitivo” do que a China: “O país está tendo de trabalhar com isso e, mesmo assim, tem um saldo comercial favorável. Imagine se não houvesse sobrevalorização. Isso mostra o nosso potencial de competitividade”.
É verdade que a plateia não era muito propícia, porém, exatamente por isso, Mantega deve ter parecido a Chapeuzinho Vermelho naquele covil.
Jamais, desde 1930, alguém sério colocou em dúvida o nosso “potencial de competitividade” (Gudin, Campos e Fernando Henrique não contam, porque não eram gente séria). A plateia de Mantega sabe disso muito bem – por isso mesmo, é contra que desenvolvamos esse potencial. No entanto, ele não percebeu para quem estava falando.
Entretanto, por que o país tem de “trabalhar” com a sobrevalorização? A função do Ministério da Fazenda é traçar a política mais favorável para o Brasil – e não “trabalhar” com aquela que é mais favorável para os EUA, precisamente, para os grandes bancos norte-americanos. Até há pouco, isso era prerrogativa do Meirelles.
A sobrevalorização do real é consequência da enxurrada de dólares que o banco central norte-americano, o Federal Reserve (Fed), emitiu desde que a crise estourou. A expansão da base monetária dos EUA chegou a 350% em dois ou três meses (atualmente, ela ainda é mais de 100% daquela de antes da crise). Só no sistema financeiro, foram injetados US$ 14,9 trilhões, mais do que o próprio PIB dos EUA (cf. The Wall Street Journal, 21/05/2009, “U.S. Rescue Aid Entrenches Itself”). As taxas de juros nos EUA foram fixadas entre 0 e 0,25% - e não para estimular a indústria, mas para beneficiar os bancos, antes de todos o JP Morgan-Chase, fusão dos grupos Morgan e Rockefeller, que estão devendo a Deus, ao Diabo e ao mundo - desde às viúvas e fundos de pensão até aos bancos europeus e japoneses.
Com essa taxa de juros e com tanto dinheiro emitido, saem bilhões de dólares sem lastro para outros países – com objetivo tão somente especulativo, parasitário, numa palavra, predatório.
Por isso, a entrada de capital estrangeiro especulativo nos meses de julho, agosto e setembro foi 18 vezes àquela dos 12 meses do ano passado - e a entrada financeira (ou seja, não comercial) de dólares em outubro, segundo anunciou o BC,foi três vezes a de setembro.
Com essa invasão de dólares, que é pior ainda quando a taxa de juros dos países invadidos, como no caso do Brasil, é imensamente maior do que a dos EUA, desatam a sobrevalorização das moedas locais, encarecendo exportações, barateando importações – e, de resto, apertando o torniquete sobre a indústria dos outros países, em prol da falida indústria norte-americana.
Em suma, a sobrevalorização do real (o próprio Mantega citou o Goldman Sachs, principal banco especulativo de Wall Street, para dizer que o real está 51% sobrevalorizado em relação ao dólar) é consequência de uma política monetária deliberada dos EUA – o Fed é um banco central que tem a originalidade de seroficialmente um comitê de bancos privados. Nos EUA são diretamente os bancos privados que fazem a política monetária, através do Fed, inclusive emitindo o dólar.
Essa política monetária consiste, precisamente, em inundar o Brasil e outros países de dólares sem lastro, com os especuladores norte-americanos (sobretudo os próprios bancos) tomando dinheiro em seu país à juro zero, ou próximo disso, e entrando aqui para capturar recursos colossais. Trata-se de uma expropriação gigantesca dos nossos recursos – literalmente, a política monetária dos EUA no momento é fazer o resto do mundo pagar por sua crise, ou seja, sair da crise transferindo para os monopólios financeiros norte-americanos tremendas riquezas do Brasil e outros países.
Um economista cuja trajetória até há pouco não era progressista, o sr. Yoshiaki Nakano, está inteiramente certo quando chamou isso de “guerra cambial” (“... os EUA desencadearam uma guerra cambial dissimulada com sua política monetária escandalosa de juro zero e de emissão de dólares, inundando as economias emergentes, adquirindo ativos, inflando as Bolsas e apreciando suas moedas”).
No entanto, o ministro Mantega não acha que temos de nos defender nessa guerra. Pelo contrário, acha que temos de “trabalhar com isso”, ou seja, aceitar a política monetária dos EUA como se ela fosse um dado espontâneo da realidade, um fenômeno econômico não intencional e sem caráter político - talvez, sabe-se lá, uma determinação das “leis de mercado”.
No entanto, o que temos é uma política de rapina, uma guerra financeira deflagrada a partir dos EUA contra os outros países, para sair da sua crise às custas dos demais. Figuradamente, um aspirador de recursos dos outros, que se manifesta, primeiramente, pela invasão de dólares sem lastro. Disse o ministro, ao justificar para os convidados do “Financial Times” a ínfima e inócua taxação de 2% sobre a entrada de capital especulativo, que “é importante evitar um excesso de atração, uma fatal atraction”. Pode ser que essa invasão de dólares se pareça com a psicopata do filme. Se é assim, não vai ser uma taxação de 2% que impedirá o esfaqueamento do país.
Mantega afirmou que “saímos talvez mais fortes do que entramos, ao contrário de vários países que estão saindo enfraquecidos e com crescimento mais moderado”.
O Brasil ainda não recuperou o patamar econômico de antes da crise, na qual só entramos porque não tomamos as providências devidas – baixar imediatamente os juros, colocar o BNDES para financiar o conjunto das empresas nacionais, e não o clubinho de multinacionais e monopólios internos, etc. Como, então, “saímos mais fortes do que entramos”? Ah, sim, o ministro disse “talvez”. O que não quer dizer nada. Mantega sabe perfeitamente que o Brasil, devido ao seu tamanho, recursos e nível de desenvolvimento, pode ser comparado a poucos países no mundo. Ele próprio escolheu, para comparação, a China. Portanto, o problema é: por que o Brasil entrou em crise e a China não entrou?
Dizer que “se não fosse a sobrevalorização do real” o Brasil seria mais “competitivo” do que a China, é meramente fuga do problema: não houve sobrevalorização do yuan porque os chineses não permitiram. A China não entrou em crise porque irrigou o conjunto da economia com recursos do Estado, voltou uma parte maior dela para o mercado interno e não teve ilusões com câmbios “flutuantes”. Não foi um acidente que o real se sobrevalorizasse e o yuan, não. Em síntese, a China se defendeu da guerra cambial dos EUA.
O Brasil tem todas as condições para ter um crescimento até maior que o da China. Mas, numa guerra, ou o país se defende ou é saqueado. E não há nenhuma razão para não nos defendermos de uma agressão econômica, e passar a “trabalhar” com ela.
Trata-se de tentar sair da crise transferindo para os monopólios financeiros dos Estados Unidos as riquezas do Brasil e outros países
As declarações do ministro da Fazenda, Guido Mantega, no recente seminário “Investing in Brazil” (!?), patrocinado pelo “Financial Times” (?!), soam algo estranhas na selva escura a que a política monetária dos EUA levou o mundo nos últimos meses.Diz o ministro que, se não fosse a sobrevalorização do real, o Brasil estaria mais “competitivo” do que a China: “O país está tendo de trabalhar com isso e, mesmo assim, tem um saldo comercial favorável. Imagine se não houvesse sobrevalorização. Isso mostra o nosso potencial de competitividade”.
É verdade que a plateia não era muito propícia, porém, exatamente por isso, Mantega deve ter parecido a Chapeuzinho Vermelho naquele covil.
Jamais, desde 1930, alguém sério colocou em dúvida o nosso “potencial de competitividade” (Gudin, Campos e Fernando Henrique não contam, porque não eram gente séria). A plateia de Mantega sabe disso muito bem – por isso mesmo, é contra que desenvolvamos esse potencial. No entanto, ele não percebeu para quem estava falando.
Entretanto, por que o país tem de “trabalhar” com a sobrevalorização? A função do Ministério da Fazenda é traçar a política mais favorável para o Brasil – e não “trabalhar” com aquela que é mais favorável para os EUA, precisamente, para os grandes bancos norte-americanos. Até há pouco, isso era prerrogativa do Meirelles.
A sobrevalorização do real é consequência da enxurrada de dólares que o banco central norte-americano, o Federal Reserve (Fed), emitiu desde que a crise estourou. A expansão da base monetária dos EUA chegou a 350% em dois ou três meses (atualmente, ela ainda é mais de 100% daquela de antes da crise). Só no sistema financeiro, foram injetados US$ 14,9 trilhões, mais do que o próprio PIB dos EUA (cf. The Wall Street Journal, 21/05/2009, “U.S. Rescue Aid Entrenches Itself”). As taxas de juros nos EUA foram fixadas entre 0 e 0,25% - e não para estimular a indústria, mas para beneficiar os bancos, antes de todos o JP Morgan-Chase, fusão dos grupos Morgan e Rockefeller, que estão devendo a Deus, ao Diabo e ao mundo - desde às viúvas e fundos de pensão até aos bancos europeus e japoneses.
Com essa taxa de juros e com tanto dinheiro emitido, saem bilhões de dólares sem lastro para outros países – com objetivo tão somente especulativo, parasitário, numa palavra, predatório.
Por isso, a entrada de capital estrangeiro especulativo nos meses de julho, agosto e setembro foi 18 vezes àquela dos 12 meses do ano passado - e a entrada financeira (ou seja, não comercial) de dólares em outubro, segundo anunciou o BC,foi três vezes a de setembro.
Com essa invasão de dólares, que é pior ainda quando a taxa de juros dos países invadidos, como no caso do Brasil, é imensamente maior do que a dos EUA, desatam a sobrevalorização das moedas locais, encarecendo exportações, barateando importações – e, de resto, apertando o torniquete sobre a indústria dos outros países, em prol da falida indústria norte-americana.
Em suma, a sobrevalorização do real (o próprio Mantega citou o Goldman Sachs, principal banco especulativo de Wall Street, para dizer que o real está 51% sobrevalorizado em relação ao dólar) é consequência de uma política monetária deliberada dos EUA – o Fed é um banco central que tem a originalidade de seroficialmente um comitê de bancos privados. Nos EUA são diretamente os bancos privados que fazem a política monetária, através do Fed, inclusive emitindo o dólar.
Essa política monetária consiste, precisamente, em inundar o Brasil e outros países de dólares sem lastro, com os especuladores norte-americanos (sobretudo os próprios bancos) tomando dinheiro em seu país à juro zero, ou próximo disso, e entrando aqui para capturar recursos colossais. Trata-se de uma expropriação gigantesca dos nossos recursos – literalmente, a política monetária dos EUA no momento é fazer o resto do mundo pagar por sua crise, ou seja, sair da crise transferindo para os monopólios financeiros norte-americanos tremendas riquezas do Brasil e outros países.
Um economista cuja trajetória até há pouco não era progressista, o sr. Yoshiaki Nakano, está inteiramente certo quando chamou isso de “guerra cambial” (“... os EUA desencadearam uma guerra cambial dissimulada com sua política monetária escandalosa de juro zero e de emissão de dólares, inundando as economias emergentes, adquirindo ativos, inflando as Bolsas e apreciando suas moedas”).
No entanto, o ministro Mantega não acha que temos de nos defender nessa guerra. Pelo contrário, acha que temos de “trabalhar com isso”, ou seja, aceitar a política monetária dos EUA como se ela fosse um dado espontâneo da realidade, um fenômeno econômico não intencional e sem caráter político - talvez, sabe-se lá, uma determinação das “leis de mercado”.
No entanto, o que temos é uma política de rapina, uma guerra financeira deflagrada a partir dos EUA contra os outros países, para sair da sua crise às custas dos demais. Figuradamente, um aspirador de recursos dos outros, que se manifesta, primeiramente, pela invasão de dólares sem lastro. Disse o ministro, ao justificar para os convidados do “Financial Times” a ínfima e inócua taxação de 2% sobre a entrada de capital especulativo, que “é importante evitar um excesso de atração, uma fatal atraction”. Pode ser que essa invasão de dólares se pareça com a psicopata do filme. Se é assim, não vai ser uma taxação de 2% que impedirá o esfaqueamento do país.
Mantega afirmou que “saímos talvez mais fortes do que entramos, ao contrário de vários países que estão saindo enfraquecidos e com crescimento mais moderado”.
O Brasil ainda não recuperou o patamar econômico de antes da crise, na qual só entramos porque não tomamos as providências devidas – baixar imediatamente os juros, colocar o BNDES para financiar o conjunto das empresas nacionais, e não o clubinho de multinacionais e monopólios internos, etc. Como, então, “saímos mais fortes do que entramos”? Ah, sim, o ministro disse “talvez”. O que não quer dizer nada. Mantega sabe perfeitamente que o Brasil, devido ao seu tamanho, recursos e nível de desenvolvimento, pode ser comparado a poucos países no mundo. Ele próprio escolheu, para comparação, a China. Portanto, o problema é: por que o Brasil entrou em crise e a China não entrou?
Dizer que “se não fosse a sobrevalorização do real” o Brasil seria mais “competitivo” do que a China, é meramente fuga do problema: não houve sobrevalorização do yuan porque os chineses não permitiram. A China não entrou em crise porque irrigou o conjunto da economia com recursos do Estado, voltou uma parte maior dela para o mercado interno e não teve ilusões com câmbios “flutuantes”. Não foi um acidente que o real se sobrevalorizasse e o yuan, não. Em síntese, a China se defendeu da guerra cambial dos EUA.
O Brasil tem todas as condições para ter um crescimento até maior que o da China. Mas, numa guerra, ou o país se defende ou é saqueado. E não há nenhuma razão para não nos defendermos de uma agressão econômica, e passar a “trabalhar” com ela.
CARLOS LOPES é colunista do excelente jornal Hora do Povo
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