“Metidos nesses trajes festivos, os Tikunas executam suas monótonas danças, que se resumem num sapateado e no balanço do corpo de um lado para o outro, ao som de cantos e de instrumentos de percussão. Isso se prolonga por três ou quatro dias e noites, ininterruptamente, durante os quais eles ingerem enormes quantidades de caiçuma, além de fumarem e cheirarem pó de‘paricá”.
Henry Walter Bates
O Cacique Tikuna João Farias Filho, da Comunidade Feijoal, Alto Solimões, é um líder nato, exercendo sua liderança com muita sabedoria e bom senso. Lúcido e inteligente, está a par dos acontecimentos nacionais e internacionais sobre os quais discorre com fluência e conhecimento impressionante.
Desfrutamos de um jantar, muito especial, com o cacique e amigos Tikunas. O cacique, que é evangélico, encabeçou uma prece em agradecimento ao Senhor. Cerimoniosamente, sentados no chão, consumimos o delicioso jantar preparado pela tia do amigo Arsênio, funcionário da Funai. Durante a refeição, provoquei o Cacique para que nos relatasse algumas de suas lendas e costumes. Ele nos relatou como foi criado o Povo Tikuna e detalhes da festa da Moça Nova.
Povo Tikuna - Mito da criação
Como as lendas se confundem com a própria origem dos povos indígenas, os quais eram ágrafos, a tradição oral permite, de acordo com a vivência e conhecimento do seu interlocutor, matizá-las, castrá-las ou incrementá-las mantendo intocado apenas o cenário de fundo. Embora tenha ouvido a mesma lenda contada em cinco oportunidades diferentes, em cada uma delas, pude observar novas ou diferentes nuances. Há, por exemplo, uma divergência muito grande na série de relatos ouvidos desde a morte até a ressurreição de Nutapá. Procurei, então, reproduzir, abaixo, um resumo dos pontos em comum a todas elas, suprimindo detalhes que não eram similares a todos os relatos.
No início, havia uma separação entre Tempo e Espaço. Antes da criação do mundo, no Tempo, Nutapá e sua mulher Mapana viviam às margens do ‘Igarapé’ Eware em lugares distintos, numa época de fartura em que a caça e a pesca eram abundantes. No primeiro dia de caça, os dois se desentenderam e Nutapá amarrou a mulher a uma árvore para morrer, porque ela não tinha órgão sexual para lhe gerar filhos. Um pássaro, chamado Canã, que sobrevoava o local, se transforma em gente para desamarrar a mulher de Nutapá e, mais tarde, participa do plano de Mapana para assassinar Nutapá.
Mapana atirou um ninho de ‘cabas’ nos joelhos de Nutapá quando este retornava da caça. Nutapá foi ferroado pelos animais em ambos os joelhos. Um grande tumor se formou nos joelhos ferroados e o grande chefe mandou abrir para ver se havia algum bicho nas feridas. Dentro dos tumores estavam dois meninos e duas meninas fazendo zarabatanas, flechas, alforjes, venenos e muitas outras coisas. Nutapá tirou do joelho direito um casal de meninos; chamou o menino de Djói e a irmã dele de Movaca. Do joelho esquerdo um outro casal que ele batizou de Ipi e Aucana. Djói fabricou a zarabatana e o curare, e Ipi o arco e a flecha. Aucana fabricou o cesto e a bolsa, e Movaca a ‘maqueira’ e a peneira. As crianças foram os artífices de todos os objetos que os Tikunas usam até hoje.
Igarapé - Rio pequeno que tem as mesmas características dos grandes; é, geralmente, navegável; os maiores denominam-se Igarapés-açus e os menores, Igarapés-mirins.
Caba (marimbondo) - designação dada aos insetos himenópteros, vespídeos.
Maqueira - rede artesanal.
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Um dia, quando os meninos pescavam com Nutapá, este foi engolido por uma onça depois de ter cruzado uma pinguela sobre o Igarapé Eware. Djói e Ipi tentaram rastrear a onça e, como não conseguissem, voltaram ao local de travessia e passaram no tronco, estendido sobre o Igarapé, gosma de peixe e de frutas. Enquanto esperavam a volta do animal, foram fazendo piranhas - pretas, vermelhas, brancas, afiando os seus dentes como haviam afiado os seus. Quando a onça tentou passar pelo tronco, escorregou e caiu na água, e as piranhas a mataram. Djói e Ipi secaram o Igarapé, tiraram o couro da onça e recolheram do seu estômago os pedaços de Nutapá, levando-os para casa e ressuscitaram o ancião.
A copa da grande ‘samaumeira’ cobria o mundo, escurecendo tudo, e os irmãos Djói e Ipi tentaram abrir um buraco na copa da árvore, jogando-lhe caroços de ‘arara-tucupi’ e, como não conseguissem, chamaram o pica-pau, que tentou, em vão, cortar o duro tronco com o bico. Resolveram então tirar o machado da cutia arrancando-lhe a perna de trás, que era o seu machado. Ipi começou a cortar a árvore, mas o corte tornava a fechar. Djói resolveu tentar e, com ele, o corte se mantinha aberto. Depois de cortar um bocado, passou o machado a Ipi, que continuou a cortar e, agora, para seu espanto, o corte não se fechava mais. O corte era profundo e, mesmo assim, a árvore não caía. Os irmãos olharam para cima e viram que era uma preguiça que a sustentava. Chamaram o ‘acutipuru’ pequeno (serelepe, caxinguelê, quatipuru ou caxixé) para subir e tirar a mão da preguiça do galho. O acutipuru subiu com formigas de fogo para jogar nos olhos da preguiça e conseguiu atingir-lhe os olhos. A samaumeira caiu e, daí por diante, se pôde ver o sol, o céu, as estrelas. A recompensa do acutipuru foi casar com a irmã dos meninos.
Samaúma ou Sumaúma (ceiba pentranda) - considerada, pelos nativos, como a ‘rainha da floresta’. Os indígenas a consideram a ‘mãe-das-árvores’. Conhecida como ‘Árvore da Vida’ ou a ‘escada do céu’. É uma das maiores árvores do mundo, atingindo 90m de altura. Suas sapopembas, além de ornamentais, podem ser transformadas em habitações pelos povos da floresta.
Arara-tucupi (parkia pendula) - conhecida vulgarmente como angelim-saia. Tem ocorrência natural na Amazônia brasileira e possui madeira com características atrativas para o mercado madeireiro.
Acutipuru (sciurus vulgaris) - admirado pelo seu aspecto peculiar, o serelepe ou esquilo brasileiro, também é conhecido na região por caxinguelê, caxinxe, catiaipé, quatimirim, quatipuru, acutipuru. O serelepe é um animal arborícola, vive nas copas das árvores. As sementes, insetos e frutas são as principais fontes de alimentação. Quando adulto, seu corpo chega a medir 25 cm e o rabo, de 25 cm ou mais.
Djói, usando isca de macaxeira, foi até o Igarapé Eware e pescou peixes que transformou em gente logo que eram retirados da água, criando, assim, o povo Maguta, que significa ‘povo pescado do Rio’, os ascendentes dos Tikunas.
Hiram Reis e Silva é Coronel de Engenharia, professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA). Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS), Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB) e Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS). É também colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional
Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br
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