Em 1946, os EUA apresentaram na Organização das Nações Unidas (ONU) uma proposta de criação de uma Autoridade para o Desenvolvimento Atômico (ADA), entidade que deveria deter um virtual controle sobre todas as jazidas de minérios nucleares (urânio e tório) e todas as instalações nucleares do mundo. Apresentada pelo financista Bernard Baruch, amigo particular e financiador de campanha do presidente Harry Truman, a proposta ficou conhecida como Plano Baruch e as suas inconsistências, entre as quais o atropelo das soberanias nacionais dos seus eventuais Estados membros, causaram a sua rejeição pelo plenário da ONU, com a URSS liderando a oposição ao plano.
É relevante observar que um dos principais opositores do Plano Baruch foi o almirante Álvaro Alberto da Mota e Silva, o grande pioneiro do estabelecimento de uma estrutura de pesquisas nucleares no Brasil. Eleito para presidir a Comissão de Energia Atômica da ONU (embrião da AIEA), o brasileiro desmantelou o plano ao lograr que a Comissão aprovasse uma emenda especificando que a propriedade internacional das minas e minérios radiativos não seria um item obrigatório. Tamanha ousadia e os seus esforços posteriores para dotar o Brasil de uma capacitação científico-tecnológica na área nuclear lhe valeria, nos anos seguintes, um feroz antagonismo por parte dos EUA e seus agentes de influência no País.
No seminário do CEBRI, o recado de Washington foi transmitido, inicialmente, pela embaixadora Susan Burk, representante especial da Casa Branca para assuntos de não-proliferação nuclear, que também esteve em Brasília para uma reunião com as suas contrapartes brasileiras. Segundo a Folha de S. Paulo (29/10/2009), o Itamaraty ter-lhe-ia informado que tanto a criação do banco de urânio como a adesão aos Protocolos Adicionais são vistos como ingerência na soberania nacional. Em entrevista a O Globo de 2 de novembro, ela foi diplomática, dizendo apenas que o banco seria uma oportunidade para que países que tenham reatores nucleares não precisem investir em dispendiosas instalações de enriquecimento de urânio e de disposição dos resíduos nucleares.
Menos diplomático, o presidente do Ploughshares Fund, Joseph Cirincione, questionou abertamente as intenções nucleares brasileiras. O Ploughshares Fund é um dos numerosos think-tanks estadunidenses que atua como linha auxiliar do governo na promoção de certas diretrizes políticas de interesse do Establishment, e Cirincione é um veterano representante oficioso de tais posições. Portanto, suas palavras representam os poderes estabelecidos e não as de um acadêmico instalado em uma organização não-governamental falando em caráter particular. E ele foi direto: “Não há justificativa econômica para o Brasil prosseguir o enriquecimento de urânio. Há muita disponibilidade de combustível para reatores (Folha de S. Paulo, 30/10/2009).”
Cirincione disse com todas as letras que vê riscos de que o Brasil pretenda construir artefatos nucleares a partir dos programas de enriquecimento de urânio e de construção de submarinos nucleares. Ademais, afirmou que a recusa a aderir aos Protocolos Adicionais “cria um modelo negativo, por exemplo, para Egito e Arábia Saudita, que estão pensando em ter seus programas”.
Na mesma linha, foi o belga Pierre Goldschmidt, ex-diretor de Salvaguardas da AIEA e atual pesquisador da Fundação Carnegie na Bélgica. Com a arrogância típica dos altos serviçais do Establishment, Goldschmidt chegou a questionar a proibição constitucional de desenvolvimento de armas nucleares pelo Brasil: “Afirmar que o Brasil proíbe em sua Constituição o desenvolvimento de armas atômicas não é mais suficiente (Folha de S. Paulo, 31/10/2009).”
Semelhante investida gerou uma firme reação de alguns participantes brasileiros. O ex-diplomata e diretor do CEBRI Marcos de Azambuja foi efusivamente aplaudido ao afirmar:
O Brasil cumpre todas as normas da AIEA e acredito que eventualmente assinará o Protocolo Adicional, mas não fará isso diante de uma intimação e acusações que não são legítimas... O risco de proliferação nuclear não virá do Brasil. Somos obedientes ao TNP e não devemos satisfações. Somos o elemento de paz e segurança no continente. O Brasil acha que faz mais do que devia e que a bola agora está do outro lado do campo. Embora seja a favor de que o Brasil assine o protocolo, não tenho certeza se devemos fazê-lo agora ou usar nossa posição como uma estratégia para forçar a quem tem armas a se desarmar (Jornal do Brasil, 31/10/2009).
O presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), Odair Dias Gonçalves, ironizou: “O Brasil é um novo jogador que entra no esquema. E um jogador muito forte, porque somos um dos três países do mundo que têm urânio e capacidade de enriquecimento... O que é econômico? Deixar outras pessoas virem ao país, explorarem o nosso urânio e o levarem?”
Ademais, Gonçalves disparou uma farpa contra os representantes do poder hegemônico: “Temos um controle muito rígido. É impossível a hipótese de enriquecer sem que a AIEA fique sabendo. Todas as nossas instalações nucleares estão sob salvaguardas da AIEA, inclusive as militares, um dos poucos casos no mundo.”
Outro ponto de realidade no seminário veio do presidente do Centro Russo para Estudos de Políticas e consultor do Ministério da Defesa da Federação Russa, Vladimir Orlov, que disse sem meias palavras que os arsenais nucleares de Israel e do Paquistão (ambos não-signatários do TNP) constituem problemas mais graves do que o controvertido programa de enriquecimento de urânio do Irã. “Temos que mudar a lista de prioridades. O Irã está lá, mas não é o número um. Israel, sim, pode explodir a conferência [referindo-se à próxima revisão do TNP], e o Paquistão é um Estado falido com armas nucleares”, disse ele (Folha de S. Paulo, 30/10/2009).
Assim como já havia ocorrido com a celeuma criada pela AEIA em torno da publicação do livro A Física dos explosivos nucleares, do físico Dalton Ellery Girão Barroso (Resenha Estratégica, 9/09/2009), a arrogância e a agressividade dos representantes do Establishment hegemônico no seminário do CEBRI são exemplares das pressões rapidamente crescentes que as lideranças brasileiras terão que contra-arrestar no futuro imediato. Felizmente, as reações decididas de alguns dos debatedores nacionais sugere uma conscientização também crescente de que o País pode e deve estabelecer o seu caminho de forma plenamente soberana, deixando definitivamente para os livros de história a velha tendência de suas elites domésticas ao atrelamento semiautomático às potências hegemônicas de plantão.
Com respeito aos EUA, o mundo certamente agradeceria se, em vez de tentar reviver o fantasma do Plano Baruch, o presidente Barack Obama orientasse a ainda enorme capacidade científico-tecnológica de seu país para um esforço de desenvolvimento pacífico da energia nuclear em todas as suas formas (a maneira mais segura de evitar a não-proliferação) e eletrificação em escala mundial. Entretanto, se insistir em iniciativas precocemente condenadas como a do seu homófono, corre o risco de aprofundar ainda mais o desgaste de uma presidência que começou sob o signo e as esperanças universais de mudança.
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