quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Senado Federal


Carta do antropólogo ao presidente Sarney

Sarney faz homenagem ao amigo Claude Lévi-Strauss

A memória do antropólogo Claude Lévi-Strauss, que morreu no último sábado, foi reverenciada no plenário do Senado pelo presidente Sarney, nesta terça-feira (3). Para Sarney, o autor da obra Tristes Trópicos "representou para as Ciências Humanas aquilo que Marx, Einstein e Freud representaram também nos seus devidos tempos para as suas respectivas áreas".

O presidente do Senado lembrou a ligação de Lévi-Strauss com o Brasil e a relação pessoal que mantinha com ele. "Trocávamos freqüentemente correspondências e guardo, com grande orgulho, a maneira como sempre me tratou nas vezes em que fui à França e estive com ele", destacou, solicitando registro de voto, nos Anais da Casa, "não de pesar, mas de louvor" ao grande homem que foi Claude Lévi Strauss.

    Autor

    José Sarney (PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro /AP)

    Data

    28/11/2008

    Casa

    Senado Federal

    Tipo

    Discurso

    O SR. JOSÉ SARNEY (PMDB-AP). Sr. Presidente, em primeiro lugar, eu tenho que agradecer, de todo coração, a sua generosidade, que é uma característica da sua personalidade e de sua vida. V. Exª, às vezes, se excede, mas nós compreendemos que o faz por este sentimento que V. Exª sempre teve, que é o sentimento da bondade e o sentimento da amizade. Muito obrigado.
    Sr. Presidente, venho hoje ocupar esta tribuna porque é uma data, para a cultura mundial, da maior importância. É uma data marcante, porque hoje completa 100 anos Claude Lévi-Strauss, uma das maiores inteligências da humanidade em todos os tempos.
    Uma das oportunidades do nosso tempo é justamente a extensão das nossas vidas. A vida do ser humano se prolongou graças aos avanços da ciência e das melhorias da qualidade de vida. Não há muitos anos, ainda na geração dos nossos pais, a velhice começava num período que para nós, hoje, é um período de atividade normal: o dos 50 anos. Hoje, temos podido comemorar centenários de grandes homens que, ainda vivos, continuam em plena atividade.
    Neste 28 de novembro, faz 100 anos Claude Lévi-Strauss. É um grande nome da cultura francesa, também da cultura brasileira e do humanismo universal.
    Já fiz aqui a observação de que em todos os tempos são raras as pessoas que se projetam além da sua época, com uma dimensão que rompe as fronteiras da história. Claude Lévi-Strauss, sem sombra de dúvida, teve nas ciências humanas um impacto do mesmo nível de Marx, na economia, de Freud, de Darwin, equivalente nas ciências exatas a Einstein e a Newton. Para ele o Collège de France criou a cadeira de Antropologia Social. Em qualquer lugar do mundo, ele é reverenciado, estudado e admirado.
    No discurso em que recebeu Claude Lévi-Strauss na Academia Francesa, Roger Caillois, o grande pensador, sociólogo e ensaísta, dizia que “sua obra é tão rica, tão diversa, tão complexa por sua natureza tão labiríntica”, que ele não ousava examiná-la. Eu também, da mesma maneira, não desejo examinar a obra do criador do estruturalismo, a modéstia aqui é necessária a todos que se deparam com essas figuras raras que marcam etapas na história do pensamento, e por isso não quero aventurar-me a uma análise do seu pensamento. São mais palavras de homenagem.
    Mas, para saudar Lévi-Strauss, temos mais motivos que os demais. Desde 1935, Sr. Presidente, o Brasil se tornou o palco da sua descoberta fundamental, a de que o homem constrói sua cultura, como sua linguagem, em estruturas básicas que independem de nossa visão ocidental de progresso. Há alguns anos, em 2005, em entrevista ao Le Monde, Lévi-Strauss disse que: “O Brasil representa a experiência mais importante da minha vida”.
    Tudo começou quando, no final de 1934, o Diretor da École Normale Supérieure o convidou para ser professor de Sociologia na Universidade de São Paulo. Abrindo este livro de uma beleza que cativa todos os leitores, que é Tristes Trópicos, Lévi-Strauss diz que detesta as narrativas de viagem. Mas sente necessidade de contar como aconteceu o processo que o levaria a compreender mais profundamente o ser humano, abolindo, de uma vez por todas, a idéia de que os valores humanos são melhores em algumas sociedades, abolindo toda e qualquer base para o racismo.
    Não foi o Brasil que lhe abriu as portas para a descoberta, mas foi no Brasil que ela se deu. E Tristes Trópicos está cheio de observações sobre o Brasil, da mais aguda compreensão do nosso País. Tornou-se um livro necessário para se entender o nosso País.
    Em um dos seus livros mais recentes, em que fala sobre arte “ Regarder, Écouter, Lire ” Claude Lévi-Strauss diz:

    Suprimir ao acaso dez ou vinte séculos de História não afetariam sensivelmente o nosso conhecimento da natureza humana. A única perda insubstituível seria a das obras de arte que estes séculos tivessem visto nascer. Porque os homens só se diferenciam, e mesmo só existem, por suas obras. Só elas dão a evidência de que ao longo do tempo, entre os homens, alguma coisa realmente aconteceu.

    O Brasil ficou associado ao trabalho científico excepcional do grande mestre e membro da Academia Francesa na medida em que constituiu o laboratório para as pesquisas de campo que iriam lastrear as suas reflexões e análises na área da antropologia estrutural. Em Tristes Trópicos, talvez o mais célebre de todos os seu livros, ele conta a expedição memorável que empreendeu ao Brasil Central em 1937, a fim de encontrar e observar as comunidade indígenas, a substância viva de suas formulações conceituais ao mesmo tempo de humanista e de cientista social. Em recente entrevista, ele conta que Tristes Trópicos era o título de um romance que ele começou a escrever quando voltou à França, e que chegou a escrever cerca de trinta capítulos. A identidade entre as duas obras era que ”tanto nos trópicos vazios da América do Sul “ diz ele “ quanto dos trópicos abarrotados da Ásia do Sul, onde estive alguns anos depois, eu tive, por razões diversas, a mesma sensação de tristeza”. Daí o título do seu livroTristes Trópicos.
    São recorrentes em suas entrevistas a referência à Histoire d”un Voyage Faict en la Terre du Brésil, de Jean de Lévy. Como o companheiro de Villegaignon, Lévi-Strauss tem um sentimento de tocar um mundo virgem, apenas aflorado. Ele conta:

    Um dia, nos confins da Baía do Rio de Janeiro, dona Heloísa Alberto Torres, que diretora do Museu Nacional, levou-me a um sítio arqueológico recém-descoberto, e vi sendo tirada da terra uma grande urna tupi, decorada exatamente como Lévy tinha descrito, e encontrada no mesmo local... sim, tive a sensação de que retornava alguns séculos.

    A relação entre os dois escritores, separados por muitos séculos, pode ser considerada além de meras coincidências e sensações. Jean de Lévy é, ao contrário de André Thevet, outro narrador da expedição da França Antártica “ que, como sabemos, acabou numa guerra interna e na autodestruição “ o observador atento, capaz da descrição minuciosa e exata. Foi, assim, o grande portador da revelação que tanto perturbou a Europa, do selvagem como mente autônoma, o outro, o diferente. Assim, o selvagem de Lévy coincide com o de Montaigne, outra das admirações de Lévi-Strauss.

    Sabemos que Montaigne teve a oportunidade de, em primeiro lugar, descrever os índios do Brasil que foram à França: primeiro, naquela festa de Rouen, em que eles foram apresentados, e, depois, quando eles chegaram a Notre Dame para serem recebidos por Luís XIII, que era então um menino, em que ele faz algumas observações.

    Fundaram, talvez, a etnologia, numa versão prévia, noutra futura, esse famoso estruturalismo que não enquadra Lévi-Strauss.
    Numa entrevista que introduz uma pequena edição do livro de Lévy, Lévi-Strauss, depois de elogiar a espontaneidade do olhar de Lévy em comparação com o de Thevet, enumera as coincidências:

    O que vou dizer pode parecer presunçoso, me desculpe, mas tenho a impressão de uma conivência, de um paralelismo entre a existência de Lévy e a minha. Eu a senti, desde o começo, e ela só fez crescer ao longo dos anos. Lévy parte para o Brasil aos vinte e dois ou vinte e três anos; eu tinha vinte e seis quando fiz a mesma viagem. Lévy espera dezoito anos antes de redigir seu Viagem; eu espero quinze anos antes de escrever Tristes Trópicos. No intervalo, durante esses dezoito anos para Lévy, esses quinze para mim, o que aconteceu? Para Lévy: as guerras de religião [...] E para mim: a Segunda Guerra Mundial, do mesmo modo a fuga diante das perseguições. [...] Eu vos deixo imaginar o que os surrealistas teriam podido tirar de tais coincidências. De minha parte, e você compreende porque, senti constantemente se desenvolver uma intimidade...


    Mais adiante, aumenta o elogio a Lévy: “Ele conserva intacta a sua capacidade de ver”.

    Uma das áreas de meu interesse tem sido sempre a da compreensão do papel da obra escrita. Tenho a visão do seu significado para a cultura. Mas há um outro lado da escrita que surge já no diálogo construído por Sócrates entre Thot e o Rei de Tebas, Thaumus:

    Eu descobri um remédio contra a dificuldade de aprender e recordar.”. “Engenhoso Thot, você lhe atribui o contrário de seu efeito verdadeiro. Ela só produzirá nas almas o esquecimento dos que tiverem conhecido a sabedoria, fazendo com que negligenciem a memória; confiando neste auxílio, eles deixarão a caracteres materiais o cuidado de lhes recordar as lembranças de que seu espírito terá perdido o traço. Dás a teus discípulos a sombra da ciência e não a ciência. Quando eles tiverem aprendido muitas coisas sem mestres, eles acreditarão serem sábios, mas serão em geral ignorantes e falsos sábios insuportáveis no trato da vida.

    O nosso tempo vive profundamente a questão da tecnologia da escrita. Ela foi usada, desde os dias em que eram traços em cacos de cerâmica, como instrumento de poder “ as famosas tábuas descobertas na Mesopotâmia. E Claude Lévi-Strauss tem uma frase muito forte: a escrita “era usada para facilitar a escravidão de outros seres humanos”. Desde o começo a escrita esteve associada com a estruturação das sociedades, a formação de hierarquias internas e de supremacia externa. A escrita, a nossa civilização de comunicação, é, em parte, uma das causas do rápido desaparecimento dessas culturas que ele ainda pode observar em relativa pureza a meros 70 anos.
    Este dilema da informação anima a obra de Lévi-Strauss:

    Eis, pois, à minha frente, o círculo instransponível: quanto menos as culturas humanas podiam comunicar-se entre si e, por conseqüência, corromper-se pelo contacto, menos também os seus respectivos emissários eram capazes de perceber a riqueza e a significação dessa diversidade.

    Lévi-Strauss foi também um dos primeiros a denunciar os riscos da poluição. Dava ao conceito uma grande amplitude, e, infelizmente, foi um profeta dos 50 anos que passaram desde Tristes Trópicos e do que se passa hoje, na destruição da natureza e na destruição da diferença e do diferente. Foi ele que, em primeiro lugar, disse que o homem era o maior destruidor da terra.
    Sr. Presidente, a saga intelectual de Claude Lévi-Strauss no Brasil começou em 1935, quando ele, então jovem professor de Sociologia, aqui chegou, no quadro da missão universitária francesa, para emprestar sua contribuição, fecunda e inestimável, à fundação da Universidade de São Paulo. Em seus livros, considera o advento da USP como um dos atos-fundadores da modernização do Brasil.
    Regressando à Europa em 1939 e exilando-se pouco depois nos Estados Unidos por causa da guerra e da ocupação nazista da França, o professor Claude Lévi-Strauss passou anos sem maiores contatos com o Brasil. Depois da guerra, já em Paris, em meio às suas intensas atividades universitárias e à produção de sua obra monumental, pouco a pouco, retomou os vínculos com o nosso País, por intermédio de antigos alunos e dos amigos que deixou em São Paulo. E, assim, foi adiando o reencontro direito com o nosso País.

    Em 1982, ele afirmava numa entrevista a O Estado de S. Paulo, do qual foi colaborador durante sua permanência na USP: “Uma viagem ao Brasil, agora, era o que me poderia acontecer de melhor, mas não para fazer conferência ou entregar-me a recordações nostálgicas naqueles itinerários por mim percorridos e descritos em Tristes Trópicos”. Três anos depois dessa entrevista, em 1985, como Presidente da República, tive a honra inigualável e o imenso prazer de receber o Professor Claude Lévi-Strauss na sua volta ao Brasil, do qual se ausentara por quase meio século. Integrava a comitiva oficial do Presidente Mitterrand, que então visitava o Brasil. Posso dizer que esse encontro com a mais alta expressão intelectual da França, um dos maiores intelectuais do mundo de todos os tempos, a referência maior da antropologia neste século, foi um momento de grande emoção para mim, como Presidente da República.

    A partir de então, Sr. Presidente, fui distinguido com sua amizade, com as generosas referências do mestre aos livros que tenho publicado na França. Essa amizade é, sem dúvida, um dos grandes orgulhos da minha vida. Disse ele, em entrevista há alguns anos, com a simplicidade dos grandes, que os amigos no Brasil que lhe haviam ficado na memória eram Mário de Andrade, Paulo Duarte, Sérgio Milliet e José Sarney. A generosidade é também uma de suas virtudes.

    A visita de 1985, sobretudo “ e eis o essencial “, contribuiu certamente para que Claude Lévi-Strauss retomasse a expressão de suas reminiscências brasileiras, interrompidas em Tristes Trópicos. Nos álbuns Saudades do Brasil eSaudades de São Paulo, publicados nos últimos anos, ele nos apresenta o Brasil que viveu e que amou sob o ângulo da fotografia, fotos tiradas nos anos 30.
    Sr. Presidente, peço que o Senado encaminhe um voto de congratulações ao grande escritor a quem o Brasil tanto deve. É uma data que também é nossa, a data de hoje. Lévi-Strauss produziu uma vasta obra absolutamente inovadora e revolucionária. Sua influência na evolução das ciências humanas não pode ser superestimada, na medida em que cada nova leitura faz crescer o apreço dos intelectuais das mais diferentes áreas por sua obra e sua vida. A obra de Claude Lévi-Strauss é uma dessas obras de arte que marcam o homem e dão significado à humanidade. Sua vida é um presente ao nosso tempo.

    E devemos agradecer que tenhamos tido a graça de viver nos tempos em que viveu Lévi-Strauss, tendo a oportunidade de testemunhar a sua existência e de ler a sua obra. Todas as vezes que vou à França, Sr. Presidente, visito Lévi-Strauss. É como se visitasse um deus da literatura. Dele sempre temos muito a aprender, pela sua vida, pela sua cultura, pela sua sabedoria, pela sua genialidade. Sr. Presidente, em duas das vezes em que lancei livros na França, tive a honra da presença e do prestígio de Lévi-Strauss. Outra vez, ao ser recebido na Academia Francesa, ele lá estava para homenagear o Brasil “ não digo os acadêmicos que lá estavam, da Academia Brasileira de Letras, mas para homenagear o Brasil.

    É esse homem, esse grande homem, esse homem excepcional da história da humanidade, igual a Marx, como eu disse, igual a Freud, igual a Einstein, que hoje temos a felicidade de, juntamente com a França, homenagear. Hoje é um grande dia de comemorações e, no próximo ano, a França terá grandes comemorações pelos 100 anos de Lévi-Strauss. Por isso, quero me associar a essas alegrias e congratular-me com o povo francês e com todos nós, intelectuais de todo o mundo, por presenciarmos os 100 anos de Claude Lévi-Strauss.
    Muito obrigado.

    Este pronunciamento também encontra-se no site do Senado. Clique aqui para conferir...

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