quinta-feira, 21 de agosto de 2008

Argemiro Ferreira

Gorbachev e a culpa de Bush na Geórgia

Não é preciso morrer de amores por Mikhail Gorbachev, o ex-presidente da Rússia, para perceber a relevância do que ele tem declarado sobre a Geórgia, seu conflito com os russos e o papel dos EUA. Apesar de ter desaparecido na poeira do tempo, a ponto de ser apenas figurante inexpressivo nas eleições da Rússia, na mídia dos EUA ele continua a ser, no mínimo, uma celebridade cortejada.
Foi nessa condição que reapareceu há menos de uma semana, como entrevistado de Larry King na CNN, para contestar a versão fantasiosa do governo Bush-Cheney e seu títere da Geórgia, Mikhail Saakashvili. O mínimo que declarou, tirando proveito de sua imagem de "herói" que desmantelou a União Soviética para os EUA, foi que Saakashvili e seu padrinho Bush estão mentindo.
"Não houve invasão russa e sim um assalto bárbaro perpetrado pela Geórgia na Ossétia do Sul. (.). A Geórgia começou isso", garantiu Gorbachev, para quem "a interferência de fora forçou as coisas na direção errada". A Rússia, disse, não podia ignorar o assalto, (.) a devastação, (.) aquele uso de armas sofisticadas contra pequenas cidades, contra pessoas que dormiam. Foi bárbaro". (Ver trechos da entrevista no final desta coluna.)


"Mentiras do princípio ao fim"

Saakashvili tinha dito à mesma CNN, na véspera: "Estamos testemunhando, nestes últimos dias, o assassinato brutal, calculado, premeditado e a sangue frio, pela Rússia, de uma pequena democracia". Para Gorbachev, "apenas mentiras, do princípio ao fim", mas em seguida à entrevista o mesmo Larry King ouviu nova performance de Saakashvili, repetindo tudo, no mesmo tom.
A CNN, ao menos, ainda trouxe a contestação do ex-presidente russo. Na sua rival Fox News, nem isso: o noticioso Fox Report, apresentado por Shepard Smith, preferiu fazer outra coisa - ouviu uma americana de 12 anos, ao lado da mãe, dizendo que estava num café quando a guerra estourou na rua, onde teve de fugir como centenas de civis surpreendidos por bombas e tiros na rua.
A versão da "pequena democracia brutalmente atacada" obviamente tem pouco a ver com a realidade. É parte da guerra de propaganda desencadeada em Washington. Antes da guerra do Iraque de 1991, é bom lembrar, a CNN foi usada pelo governo do outro Bush (o pai, George H. W.) para disseminar a versão mentirosa de que tropas de Saddam Hussein tinham invadido uma maternidade hospital para assassinar bebês.
É saudável que um veículo dê atenção ao que diz Gorbachev, que afinal é - ou foi - herói da direita americana. Isso pode contribuir de alguma forma para equilibrar a habitual veiculação leviana das versões do bushismo e seu bagrinho georgiano. Até porque até o candidato presidencial de Bush, John McCain, deu seu palpite insólito - de que a Rússia decretou "regime change" na Geórgia.


Reeditando o projeto do Iraque

Ora, "regime change" foi a receita da segunda aventura dos EUA no Iraque. Os ideólogos neocons inspiraram a lei que pôs os EUA nessa rota e conseguiram que a dupla Bush-Cheney bancasse a invasão invocando a mentira das armas inexistentes. O efeito prático é o atual controle do petróleo pelos EUA, que hoje namoram "regime change" no Irã e a conexão Geórgia-gás-petróleo-oleoduto. Mas atribuem à Rússia a própria receita.
Obviamente Gorbachev tenta tirar proveito da celebridade com que o Ocidente premiou seus serviços - entre outras coisas, com o Nobel da Paz. Talvez tenha consciência de que não vai derrotar Bush-Cheney na manipulação da mídia. Mas na certa ajudará a impedir a fabricação mentirosa de armas inexistentes, assassinato de bebês em maternidades e sabe-se lá mais o que.
Os EUA e seu títere georgiano falaram na covardia da invasão mas Gorbachev nega ter havido tal invasão. Falou com Eduard Shevardnadze, ex-chanceler da URSS e ex-presidente da Geórgia e ouviu dele o outro lado da história - a invasão da Ossétia do Sul para um expurgo étnico de sua população russa. "A cidade, Tskhinvali, dormia. De repente foi invadida de todos os lados e bombardeada".
Bombardeio aéreo, artilharia, lançadores de chamas - uma matança. "Atacaram pessoas, casas, hospitais, instalações de água e esgoto, a infra-estrutura de energia e de comunicação. Tudo foi completamente destruído Até velhos monumentos. Alguns dos mais antigos do Cáucaso. Sepulturas ancestrais foram arruinadas, tanques passaram por cima de tudo".

O militarismo crescente dos EUA

Gorbachev declarou-se perplexo com a cobertura da mídia ocidental, em especial a dos EUA. "Eles disseram ter havido invasão deliberada da Rússia, mas a Ossétia do Sul, onde tínhamos a força de paz, é que foi invadida por tropas georgianas. A Rússia respondeu. O que a mídia fez foi desinformação. Tudo mentira. Tinha havido na verdade um plano prévio para atacar a Ossétia".
Para o ex-líder soviético, Saakashvili enganou a Europa. "Enganou também os EUA, a não ser que tenha sido tudo um projeto americano implementado por ele". Gorbachev preocupa-se com o que ocorre hoje no mundo. "No Sul, na Ásia, no Sul da Rússia, no Oriente Médio. Preocupa-me em especial o processo de militarização. Orçamentos militares crescem em ritmo acelerado".
Ele chama atenção para o que aconteceu na Geórgia, hoje armada até os dentes. "Não fosse isso, não teria feito o que fez. É um pequeno estado com orçamento militar de US$1 bilhão. Os EUA, principalmente, armaram a Geórgia com armas sofisticadas - aviões, armas terrestres, montanhas de armas. O resultado disso é inevitável. Mas ainda há tempo de evitar uma volta ao clima da guerra fria".
Ele lamenta não haver ainda uma relação saudável entre Rússia e EUA, que cometem erros que o povo acaba tendo de pagar. "O orçamento militar dos EUA é superior a US$600 bilhões - metade de todos os orçamentos militares do mundo somados. (.) No mundo há situações que levam a conflitos. Saakashvili só criou o confronto porque teve apoio e proteção. Mesmo assim, os EUA ainda apóiam e justificam Saakashvili".

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