quarta-feira, 27 de agosto de 2008

Ferreira Gullar

Notícia de um assalto inusitado

Havia necessidade de expressar o momento, quando um cheiro de jasmim atacou-me


Certa noite, ao sair do prédio onde mora a Cláudia, fui surpreendido -seria melhor dizer agredido? assaltado?- por uma onda perfumada que me arrebatou: era o perfume que, como uma espécie de gás, emanava das flores de um jasmineiro postado ali, a poucos passos do portão do edifício.Aturdido e inebriado, arranquei do jasmineiro um punhado de flores e, chegando-as ao nariz, aspirei-lhes avidamente o aroma que, para minha surpresa, revelou-se selvagem e quase me envenena. Embriagado, caminhei até o carro, nele entrei, atirei as flores sobre o banco ao lado e parti na noite, como não fosse para casa.Mas fui e, ao chegar, depus sobre a estante da sala as brancas flores que já não exalavam tanto odor. Era óbvio que daquela inusitada aventura, nascesse um poema. E foi o que ocorreu, mas não naquela noite, que já havia sido suficientemente avassaladora.Na manhã seguinte, sentei-me para escrever o poema que deveria expressar a aventura vivida na noite anterior, num jardim da rua Senador Eusébio, no Flamengo. Tinha diante de mim um papel em branco. Sim, e agora, o que fazer? Por onde começar? Não sabia. Tudo o que havia era uma necessidade de, com palavras, expressar aquele momento quando um cheiro de jasmim atacou-me e aturdiu-me, como um assaltante vaporoso surgido da treva.O poema, sabe, nasce do espanto, isto é, de um instante em que o enigma sempre não explicado e oculto da existência se põe à mostra. E então vemos que todas as explicações não explicam tudo, não explicam o que o cheiro de um jasmineiro nos revela, de repente, de noite, num jardim do Flamengo.Até certo ponto, por seu caráter inusitado, o poema é uma notícia: notícia de um fato fora da História mas que pertence a ela, e que o poeta, como um repórter bêbado, quer dar a conhecer ao mundo, um testemunho: um cheiro de jasmim atacou-o, de súbito, num jardim aparentemente seguro, às 11h50 de uma noite de quinta-feira.No entanto, dito assim como notícia, a ocorrência não chega a ser um poema. Seria, quando muito, uma nota na página policial do jornal, assim: "jasmim agride cidadão desavisado, no Flamengo". Caberia, na nota, uma referência ao policiamento ineficiente do bairro pelas autoridades competentes.E não haveria exagero, se se leva em conta que, quando saí do prédio e fechei o portão, mal desci os dois degraus até o chão de terra, o assaltante, embuçado no jasmineiro -e que era o próprio jasmineiro- saltou sobre mim, como sombra, ou melhor, como aroma, e me agrediu nariz a dentro. Um assaltante disfarçado de arbusto, agindo impunemente num bairro residencial constitui de certo modo um "furo" jornalístico. E nisso o poema se assemelha à notícia, frutos ambos do ineditismo e do espanto.Mas não se escreve um poema como se escreve uma notícia, com lide e sublide, tendo por objetivo principal relatar o ocorrido, de maneira o mais impessoal possível, com total isenção e sem ambigüidade. Já no poema, muito pelo contrário, o autor se confunde com o que diz, mistura-se com o fato, de tal modo que não se distingue o ocorrido do imaginado. O poeta, na verdade, não informa -inventa; não instrui o leitor, confunde-o deliberadamente, para deslumbrá-lo.E por que inventa e confunde? Porque o perfume do jasmim -qualquer perfume- é intraduzível em palavras, e é o perfume -a iluminação, na noite, pelo olfato- que o poeta quer dar no poema, ou quer, melhor dizendo, fazê-lo exalar no teu dia, leitor, já não através do nariz mas da boca, ao lê-lo. Quer te dizer o indizível. E ali está ele, diante da página em branco, onde tudo pode acontecer mas, onde, por ora, nada acontece: apenas o silêncio anterior à fala.Mas, se o perfume não se traduz em palavras, o que dizer com as palavras? O que há a dizer, de fato, ele não sabe, já que ainda não o disse: é só vontade, impulso indefinido. Assim, antes de ser escrito, o poema é apenas uma difusa intenção, não existe e pode nunca existir. Como a palavra não diz o aroma, escrevê-lo é um jogo de probabilidades, de necessidade e acaso, que começa quando a primeira palavra é posta na página em branco. Ela reduz a probabilidade, que era infinita, ao dar início a um discurso possível e não sabido.Essa primeira palavra, que poderia ser outra, deflagra a invenção do poema, a aventura imprevisível de escrever o impossível que o poeta dará por finda arbitrariamente. E assim o cheiro do jasmim, que não está nele, tornou possível inventá-lo, como a expressão da ausência do vivido, ou uma de suas possíveis presenças.
FOLHA DE S. PAULO

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