quarta-feira, 20 de agosto de 2008

Monteiro Lobato

Faço questão de publicar aqui este ensaio excelente do Pereira Jr. para ver se, por algum acidente, nossos filhos e netos, de uma outra geração - a geração internética -, possam tropeçar em Moteiro Lobato e cair de cara no colo de Emília, direto no gosto da boa leitura. E, também, para que nós, de gerações passadas, relembremos as diabruras da boneca de pano... e as nossas. Claro!


Said Barbosa Dib

A gramática de Emília
Luiz Costa Pereira Jr.(*)

A Editora Globo preparou a versão turbinada do mais contundente manifesto sobre o ensino do idioma, escrito por Monteiro Lobato (1882-1948). A nova edição de Emília no país da gramática chega às livrarias, em meio ao relançamento da obra completa do autor, iniciada no ano passado. A obra ganha cores, desenhos de Paulo Borges e uma atualização da nomenclatura, que pretende manter o frescor da abordagem gramatical proposta pela obra de 1934.O criador do Sítio do Picapau Amarelo produziu o livro na mesma década em que traduziu Alice no país das maravilhas, de Lewis Carrol (1832-1898). A referência, direta, está a serviço do projeto lobatiano de criar um paradidático sobre a língua portuguesa. Mais do que uma peça de ficção pedagógica, no entanto, Lobato constrói uma genuína gramática recreativa, complementar à da escola de seu tempo, ao disfarçar as regras em diálogos e dramatizações.Pedrinho diz a Dona Benta que o ensino do idioma é uma “caceteação”.
– Se meu professor ensinasse como a senhora, a tal gramática até virava brincadeira. Mas o homem obriga a gente a decorar uma porção de definições que ninguém entende. Ditongos, fonemas, gerúndios...
Emília, num sopro, sugere:
– Pedrinho – disse ela um dia depois de terminada a lição –, por que, em vez de estarmos aqui a ouvir falar de gramática, não havemos de ir passear no País da Gramática?
Em cenas como essa, Lobato solta o verbo contra a aprendizagem tradicional do idioma, ainda em voga em muitas escolas mais de 74 anos depois. E encara o ensino de português como o momento em que, mais do que ser apresentado a conceitos e nomenclaturas descontextualizadas dos textos em que os exemplos gramaticais foram retirados, vivencia-se o conhecimento, num divertido passeio.

Vossa Serência

Lobato dramatiza a gramática e literalmente humaniza seus termos. O verbo “ser”, os ditongos e as figuras de retóricas, por exemplo, viram gente e ganham até endereço – a cidade de Portugália, a mais próxima do sítio. O lugar lembra uma “fruta incõe” ou duas cidades “emendadas, uma mais nova e outra mais velha”. A separação entre as duas partes é marcada por um braço de mar, anota Lobato.Em carta ao educador Anísio Teixeira, de 21 de novembro de 1933, comentou:“Inda agora fiz a entrevista de Emília, na qualidade de repórter do Grito do Pica-Pau Amarelo, um jornal que ela vai fundar no sítio, com o Venerabilíssimo verbo SER, que ela trata respeitosamente de Vossa Serência! Está tão pernóstica, Anísio, que você não imagina. Estamos pensando no J. Carlos para ilustrar este livro. Aqui não vejo nenhum desenhista capaz. Ah, se a Emília soubesse desenhar...”

O aprendizado do idioma é um jogo, confere Emília no país da gramática. Lobato segue a gramática normativa, mas não como um purista. Cita e inspira-se na Gramática Histórica de Eduardo Carlos Pereira (a 49ª edição da Gramática Expositiva de Pereira chegou a ser editada pelo próprio Lobato, na Companhia Editora Nacional). A obra, é verdade, dava engulhos em Lobato, mas não a Quindim, que a comeu depois que o Visconde a esqueceu no pomar. Daí a insólita familiaridade do rinoceronte com o País da Gramática. É providencial a escolha do falante Quindim como guia da aventura, e não de Dona Benta, como de hábito. Dramaticamente, ele funciona como um educador ao nível da turma do sítio, e permite que as próprias crianças escolham o que desejam conhecer no novo mundo que descortinam.

Reforma ortográfica

Lobato muda a seqüência da apresentação de assuntos dada pela gramática de Pereira, para dar relevo à reforma ortográfica, um tema do momento, que eclodiria com o acordo de 1938. Assim, o tema ortografia migra das proximidades da morfologia para instalar-se após o capítulo da pontuação, ao fim do livro. Lobato preferia a grafia fonética, simplificada, à de tradição etimológica e faz Emília pregar o fim de consoantes e vogais desnecessárias. Também faz Quindim defender que os neologismos precisam envelhecer um bocado antes de receber autorização para morar no centro da cidade. Narizinho, por sua vez, acha um abuso que as palavras estrangeiras sejam obrigadas a usar “passaporte” (aspas) ao se transferirem para outras línguas. E uma empolada Dona Etimologia contextualiza a “importância” social do erro de português:
– Por fim há tanta gente a cometer o mesmo erro que o erro vira Uso e, portanto, deixa de ser erro. O que nós hoje chamamos certo, já foi erro em outros tempos. Assim é a vida, meus caros meninos.

Cautela
Alguns comentários vão se referir a ajustes pontuais de terminologia. Lobato, por exemplo, usava “verbo passivo” em lugar de “voz passiva”, hoje mais preciso. Mas há considerações de natureza mais conceitual e problemática.Quindim apresenta as cidades do País da Gramática: em Anglópolis moram mais de 500 palavras; em Galópolis vivem as palavras francesas; em Castelópolis, as espanholas e em Italópolis, as italianas. Ao comentar esse trecho, os especialistas da Globo perceberam que Lobato, para mastigar melhor os conceitos de sua época, terminou por reduzir o mundo das palavras ao da gramática. Na verdade, defendem os especialistas, a gramática rege a língua, não necessariamente as palavras do idioma, pois elas têm dimensões semântica, sonora e lingüística que não se contemplariam de todo apenas com o estudo gramatical. – É o tipo de conhecimento que se tem noção hoje, mas seria descabido Lobato deter-se nele.
Seu objetivo era simplificar as coisas para as crianças entenderem um pouco mais o idioma – pondera Arlete. Daí a cautela em “atualizar, preservando”.

(...)
– O certo em literatura é escrever com o mínimo possível de literatura – escreveu Lobato ao amigo e colega da Faculdade de Direito, Godofredo Rangel, em 1º de fevereiro de 1943
– A mim me salvaram as crianças. De tanto escrever para elas, simplifiquei-me. O universo infantil construído por Lobato há quase 90 anos (desde 1920, com A Menina do narizinho arrebitado), pode hoje padecer de um doce anacronismo – o da serviçal pós-escrava, o da menina cujo sonho é casar, o do garoto cujo destino é dominar o mundo, o da promessa de maravilhas escondidas na mesmice rural. Numa passagem aparentemente marginal ao tema de Brasil, o país da bola (Best Editora, 1989), no entanto, a psicanalista Betty Milan deu a chave do tamanho da vitalidade do Sítio do Picapau Amarelo em nosso imaginário: “À criança européia o adulto ensina com Chapeuzinho Vermelho a não desobedecer e com Pinóquio a não mentir; à brasileira ensinamos com Emília, personagem de Monteiro Lobato, a fazer de conta”. A força de Emília no país da gramática, portanto, não está tanto nos conteúdos gramaticais, que sempre se pode atualizar; mas no faz-de-conta, com que o autor elogiou a gramática ao pirlimpimpimente negá-la. Em suas fantasias mais peraltas, Monteiro Lobato torneou seu sítio das delícias de brincar, como alguém que, distraído, joga a fórmula fora e parte para a próxima aventura.
Lobato pensa a linguagem

A atenção que Monteiro Lobato dá à linguagem não se resume apenas a Emília no país da gramática. Está, por exemplo, no conto O colocador de pronomes, do livro Negrinha (1920), em que “Aldrovando Cantagalo veio ao mundo em virtude dum erro de gramática”. E numa crônica autobiográfica, O Doutor Quirino, publicada no jornal O Taubateano, em 12 de setembro de 1937, que narra o aprendizado do idioma de um Lobato ainda menino, misto de sofrimento ante as regras impenetráveis dos gramáticos normativos e a admiração pelo professor Antônio Quirino de Sousa e Castro, diretor do colégio em que estudava em Taubaté.


Em sintonia com Saussurre
O batismo do rinoceronte Quindim é uma das traquinagens da boneca de pano criada por Monteiro Lobato, em Emília no país da gramática. Em livro anterior, Reinações de Narizinho (1931), o personagem já aparecia, sem nome. O diálogo que dá registro a Quindim acompanha um conceito caro ao lingüista belga Ferdinand de Saussure: a arbitrariedade do signo.“ Nisto dobraram uma curva do caminho e avistaram ao longe o casario duma cidade. Na mesma direção, mais para além, viam-se outras cidades do mesmo tipo.– Que tantas cidades são aquelas, Quindim? – perguntou Emília.Todos olharam para a boneca, franzindo a testa. Quindim? Não havia ali ninguém com semelhante nome. – Quindim – explicou Emília – é o nome que resolvi botar no rinoceronte.– Mas que relação há entre o nome Quindim, tão mimoso, e um paquiderme cascudo destes? – perguntou o menino, ainda surpreso.– A mesma que há entre a sua pessoa, Pedrinho, e a palavra Pedro – isto é, nenhuma. Nome é nome, não precisa ter relação com o “nomado”. Eu sou Emília, como podia ser Teodora, Inácia, Hilda ou Cunegundes...”

Lobato reclama da gramática

A pedido de Língua Portuguesa, o biógrafo Vladimir Sacchetta selecionou trechos das correspondências de Monteiro Lobato ao amigo Godofredo Rangel, incluídas na coletânea de cartas A barca de Gleyre (1944). É um bem-humorado painel da opinião de Lobato sobre fenômenos do idioma, seu mal-estar com os normativistas e suas inseguranças em assuntos gramaticais.

Entre o “você” e o “tu”

Apontas-me, como crime, a minha mistura do “você” com “tu” na mesma carta e às vezes no mesmo período. Bem sei que a Gramática sofre com isso, a coitadinha; mas me é muito mais cômodo, mais lépido, mais saído – e, portanto, sebo para a coitadinha. Às vezes o “tu” entra na frase que é uma beleza; outras é no “você” que está a beleza – e como sacrificar essas duas belezas só porque um Coruja, um Bento José de Oliveira, um Freire da Silva, um Epifânio e outros perobas “não querem”? Não fiscalizo gramaticalmente minhas frases em cartas. Língua de cartas é língua em mangas de camisa e pé-no-chão – como a falada. E, portanto, continuarei a misturar o tu com você como sempre fiz – e como não faz o Macuco. Juro que ele respeita essa regra da gramática como os judeus respeitavam as vestes sagradas do Sumo Sacerdote. Logo, o dever nosso é fazer o contrário. (São Paulo, 7/11/1904)

Da inutilidade das gramáticas

As minhas “batatas”, referidas em carta anterior, são: Congérie, Caramanchão (eu dizia carramanchão), Cérbero, epifanía, hábitat, hílare, homilía, homizío, dulía, hiperdulía, índigo, litanía, liturgía, mándria, mnemotecnia. Das mais não me recordo. Eu acentuava-os errado. Com exceção da terceira, nunca as empreguei na conversa; mas se viesse a empregá-las pronunciaria errado. Começo a perceber o meu relaxamento com o português. Quando calouro, furtaram-me um Aulete que fora de meu pai e eu levara para S. Paulo, e desde essa ocasião (dez anos!) fiquei sem dicionário! De gramática sou a personificação da ignorância. Depois que me vi livre do exame, botei fora a infernal gramaticorra do Freire da Silva, que tanto me martirizou e me valeu uma bomba, e nunca tive comigo nem a gramatiquinha do Coruja. E estou convencido da inutilidade delas, como também pensa o rei dos gramáticos, o Cândido de Figueiredo.O exemplo que citei foi apenas para frisar a beleza da palavra própria. Talvez por simpatia minha, acho o circunvagar mais próprio para designar o movimento lento e circular dos olhos em torno duma coisa do que o correr. Correr dá sempre a sensação de pressa. “O moribundo circunvagou os olhos”. Quando o movimento é rápido, então sim, cabe melhor o correr. “Corri os olhos pelo jornal”. (Areias, 23/10/1909)

Economia da releitura

O meu processo é anotar as boas frases, as de ouro lindo, não para roubá-las ao dono, mas para pegar o jeito de também tê-las assim, próprias. Dum de seus livros extrai 60 frases de encher o olho. Não releio mais esse livro – não há tempo – mas releio o compendiado, o extrato, e aspiro o perfume e saboreio. Formo assim um florilégio camiliano do que nele mais me seduz as vísceras estéticas. E não discuto nem analiso, porque seria fazer gramática, do mesmo modo que não analiso botanicamente um cravo ou uma gostosa laranja mexeriqueira. Cheiro um e como a outra. (Caçapava, 16/1/1915)

Guiado pelo faro

Confesso, Rangel, a minha ignorância do português-gramática e mais camarões da filologia. Guio-me pelo faro, como o pescador que sente que ali naquelas pedras há garoupas. Infelizmente, faro é nariz; e em dias de resfriado lá se vai o faro. (Ponta da Praia, 3/7/1915)

País dos letrudos

Grande bem me fazes com a denúncia das ingramaticalidades. De gramática guardo a memória dos maus meses que em menino passei decorando, sem nada entender, os esoterismos do Augusto Freire da Silva. Ficou-me da “bomba” que levei, e da papagueação, uma revolta surda contra gramáticos; e uma certeza: a gramática fará letrudos, não fez escritores. (Fazenda São José do Buquira, 30/9/1915)
Língua, não gramática

De Urupês em diante tacteio, na luta das transições, procurando saltar para o outro lado. Esse pulo não vai assim ao jeito dos pulos ginásticos; é pulo metafórico, pulo imperceptível de ponteiro de relógio. Estou com um pé na Cafra e o outro no ar, a descer com lentidão e medo sobre a língua lusa verdadeira. Conto saltar. Hei de saltar. No intento de apressar a coisa, voltei-me para a gramática e tentei refocilar num Carlos Eduardo Pereira. Impossível. O engulho voltou-me – a imagem do Freire e da bomba. Dá-me idéia duma morgue onde carniceiros de óculos e avental esfaqueiam, picam e repicam as frases, esburgam as palavras, submetem-nas ao fichário da cacofonia grega. A barrigada da língua é mostrada a nu, como a dos capados nos matadouros – baços, fígados, tripas, intestino grosso, pústulas, “pipocas”, tênias. Larguei o livro para nunca mais, convencido de que das gramáticas saem Silvios de Almeida mas não Fialhos. Mil vezes (para mim) as ingramaticalidades destes do que as gramaticalidades daqueles. E entreguei-me a aprender, em vez de gramática, língua – lendo os que a têm e ouvindo os que falam expressivamente. (Fazenda, 30/9/1915)


Método da ignorância



Est modus in rebus – nem tanto a Cândido, nem tanto a Graça. Olhe que se este nos autoriza ao “fazer com que”, ao “cumprir com o dever” etc., é o caso de nos mudarmos para o bairro dos que o não autorizam. Há sempre uma alta nobreza no estilo que se põe nos moldes sintáticos dos grandes antigos, procurando tomar como regra o que neles for regra, e não se autorizando a constituir como regra geral uma exceção, uma cinca, um desleixo de Vieira ou Camilo, quando é certo que até Homero cochilava. Quanto ao meu erro do “se o pratica” é coisa tão soez e chata que escusava te alongares tanto na demonstração. Já o expungi. Não foi à pecha de ignorante em gramática, e até proclamo essa ignorância. E na realidade guio-me pelo tacto e o faro, pelo aspecto visual e auditivo da frase. Se algum período me soa falso, releio-o em voz alta para perceber onde desafina. E achada a corda bamba, não a analiso, dispenso-me de saber que preceito gramatical foi ali ofendido: aperto a cravelha e afino a frase. O método, não será dos melhores, mas é o meu. (Fazenda, 23/10/1915)


Dúvida da silepse


Que bela gramática és, amigo! Recebi o cartão e graças a ele tirei do lombo o peso duma duvida horrenda. Como o que me pareceu asneira vinha logo no começo do artigo do Estado, corei e tremi ante a hipótese de 50.000 risinhos de mofa gramatical. Quis consultar uma gramática; só encontrei na minha biblioteca uns pedaços da gramática francesa de Sevène dos meus tempos de escola e lá vi a tal Silepse. E armei-me com o Sèvene para tapar a boca ao primeiro que me articulasse o desconchavo. Mas sem certeza nenhuma, porque desconfio que aquele Sèvene é uma besta. Estive depois com Amadeu Amaral e quase o interpelei. O Amadeu tem cara de entender de silepse. Mas recuei. E se alguém me abordava falando do artigo, eu desconversava. Na redação do Estado descobri uma gramática e abri-a furtivamente, como quem não quer; mas não tive ânimo de ir além. Medo da verdade. Qualquer coisa lá no fundo das tripas me bacorejava que aquilo não era silepse. Por fim resolvi consultar-te. Recebi a resposta e respirei. Renasci como se houvesse recebido na testa um beijo de Minerva. (Fazenda, 10/1/1917)


Lombrigas de Minerva


Se por “saber português” entendes conhecer por miúdo os bastidores da Gramática e a intrigalhada toda dos pronomes que vem antes ou depois, concordo com o que dizes na carta: um burro bem arreado de regras será eminente. Mas para mim “saber português” é outra coisa: é ter aquele doigté do Camilo, ou a magnificente allure processional do Ramalho, ou a sublime gagueira do Machado de Assis. Aqui em S. Paulo o brontossauro da gramática chama-se Álvaro Guerra, um homem que anda pela rua derrubando regrinhas como os fumantes derrubam pontas de cigarro. As regras desse homem tremendo, quando vêm ao bico da pena dos escritores, matam, como unhas matam pulgas, tudo o que é beleza e novidade de expressão – tudo que é lindo mas a Gramática não quer. Outro gramaticão daqui escreveu um enorme tratado sobre a Crase; e consta que o Silvio de Almeida tem 900 páginas inéditas sobre o Til. O livro vai chamar-se: “Do Til”...A esta gente o Camilo chamava lombrigas do intestino reto de Minerva. (São Paulo, 28/12/1917)
(*)Luiz Costa Pereira Jr. é editor da revista Língua Portuguesa

Leia o ensaio na íntega:

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