Mas, de antemão, é bastante importante que os brasileiros saibam do que se trata. O que é, afinal, a “Fundação José Sarney? Confiram e tirem as suas conclusões...
Por Said Barbosa Dib*
“Não saber o que aconteceu antes do teu nascimento seria para ti como permanecer criança para sempre”
Cícero (escritor e político romano, 106-43 a.C., De oratore, II, 9.)
Toda nação desenvolvida tem um ponto em comum inquestionável: o respeito, independente de ideologias e interesses específicos, aos seus líderes e figuras históricas, vistas sempre como exemplos a serem seguidos. Mesmo que saibam que fatores estruturais - como recursos naturais, posição geográfica ou condições educacionais e econômicas - tenham influenciado no desenvolvimento de suas sociedades, nenhum deles desconsidera o papel de suas lideranças políticas e intelectuais. O respeito a estes sempre permeia o “inconsciente coletivo” e fortalece o sentimento patriótico, por isso, são desenvolvidos. No Brasil, país que há anos patina no grupo dos países “em desenvolvimento”, as elites, justamente porque são exageradamente impregnadas de concepções estrangeiras pseudocosmopolitas, têm verdadeira ojeriza a tudo que é nacional, menosprezam nossas realizações, nossos líderes, nossa História, impedindo que o “Sentimento de Pátria” se desenvolva como deveria. Como exiladas em sua própria terra, geralmente, têm vergonha de suas próprias origens, tendem a ver o Brasil permeados de valores e sentimentos importados, caem no erro de viver a própria História apenas como apêndice da História das nações hegemônicas; e não conseguem perceber os benefícios do verdadeiro patriotismo. Por isso, duirante tanto tempo fomos uma nação cada dia mais tutelada por forças estrangeiras.
Ex-Presidente: mais que um indivíduo, uma entidade pública e histórica
Mas, o grande equívoco desta mesma elite não está apenas no fato de copiar apenas o que vem de fora, mas em copiar somente o que não presta nos países mais avançados. Um caso exemplar relaciona-se à cultura: nos EUA o patriotismo e o amor pelas raízes históricas são quase uma obsessão. Lá é costume, por exemplo, um ex-presidente, por ter tido acesso a documentos históricos importantes, por ter participado ativamente de reuniões e eventos decisivos para a pátria, criar uma fundação com o objetivo de se preservar documentos e acervos históricos e de catalisar na população o debate sobre temas importantes para o país. Esta tradição, mantida por quase todos os ex-presidente dos EUA, começou vinculada à criação da própria biblioteca do Congresso norte-americano. Criada em abril de 1800 para atender às necessidades dos deputados e senadores norte-americanos, a “Biblioteca do Congresso”, hoje a mais completa do mundo, teve seu destino alterado por força do acaso. Em 1814, as tropas inglesas incendiaram o Capitólio, destruindo os 3 mil volumes sobre política, economia e história que compunham o acervo. Thomas Jefferson, terceiro presidente dos EUA e apaixonado por livros, ofereceu sua coleção com 6.487 exemplares, versando sobre arte, arquitetura, literatura, entre outros assuntos, por 23.940 dólares. Para isso, criou uma fundação, com o apoio do governo federal, para que fosse garantida a preservação e ampliação dos acervos. Hoje, a mesma fundação criada por Thomas Jefferson administra não só o acervo doado, mas toda a biblioteca. Na época da doação o presidente estadunidense declarou que “queria que a Biblioteca do Congresso fosse a ´ biblioteca de Alexandria` dos novos tempos”. Aliás, esta, segundo se sabe pela egiptologia, foi a primeira biblioteca administrada por uma fundação, formada por sacerdotes e escribas. No mundo contemporâneo, em outros países desenvolvidos, a situação não é diferente. Tanto na França quanto na Alemanha é costume ex-chefes de Estado constituírem, sempre com o apoio do Estado, suas fundações, quase sempre localizadas em espaços cedidos pelos governos. Os exemplos são muitos, como a “Fundação François Miterrand”, a “Fundação Conrad Adenauer”, a “Fundação Giscard Destaing”, etc.
As experiências no Brasil
No Brasil, fundações culturais sempre existiram, não relacionadas necessariamente com políticos, muito menos com ex-presidentes. Pensadores destacados tanto no campo intelectual quanto no político tiveram seus acervos pessoais e suas heranças intelectuais transformadas em fundações. Especializada em Ciências Sociais, a “Biblioteca Mario Henrique Simonsen”, por exemplo, é administrada por uma fundação e possui importante e tradicional acervo nas áreas de Economia, Administração, Finanças, História do Brasil, Ciência Política e Sociologia. Localizada no 7º andar do edifício sede da FGV no Rio de Janeiro, dispõe de cerca de 110.000 livros, monografias, teses, relatórios, etc., 2.000 títulos de periódicos nacionais e estrangeiros, além de vídeos e várias bases de dados.
A “Fundação Casa de Rui Barbosa”, por seu lado, tem sede na casa onde residiu o grande jurista e intelectual brasileiro entre 1895 e 1923, data de sua morte. Comprada pelo governo brasileiro em 1924, juntamente com a biblioteca, os arquivos e a propriedade intelectual das obras de Rui Barbosa, a casa foi aberta ao público como museu - o primeiro museu-casa do Brasil - em 1930. Mas, Rui Barbosa, embora tenha tentado bastante, nunca foi presidente.
A “Fundação Sarney”: primeira experiência na América Latina
O primeiro e único presidente brasileiro que decidiu dividir seu patrimônio pessoal com a sociedade brasileira foi o também intelectual José Sarney, notoriamente envolvido com a área cultural há bastante tempo. Seguindo o exemplo de Thomas Jefferson – sem, ao contrário, ter cobrado nada por isso – criou a “Fundação Sarney”, primeira entidade cultural instituída nos moldes das bibliotecas presidenciais norte-americanas em toda a América Latina. Como centro de estudos e pesquisas políticas e sociais, está localizada no Convento das Mercês - até então quase abandonado e sem uma função definida que fosse à altura de sua importância histórica-, esta monumental obra da arquitetura religiosa mercedária, foi inaugurada em 1654 com o “Sermão de São Pedro Nolasco, do Padre Antônio Vieira, que então fez a profecia, hoje realizada: “AQUI TRAGAMOS NOSSAS MEMÓRIAS”. Mas a Fundação não foi criada apenas para preservar e divulgar o acervo doado pelo ex-presidente. Ela é composta tanto pelo “Memorial José Sarney”, quanto pelo “Centro Modelar de Pesquisa da História Republicana”, para preservar dados de todas as presidências; pelo “Instituto da Amizade Latino-Americana” e pelo “Instituto de Amizadde dos Povos de Língua Portuguesa”. Ou seja, assim como o acervo de Thomas Jefferson tornou-se a própria Biblioteca do Congresso norte-americano, as funções, o acervo e a importância da “Fundação Sarney” se ampliaram e, hoje, abarcam várias áreas de interesse do povo brasileiro e vem servindo, também, para o desenvolvimento do turismo e da cultura no Maranhão e, de lambuja, viabiliza a preservação do espaço histórico do convento.
O acervo e sua importância para o Maranhão e o Brasil
Assim, a Fundação, através desses órgãos, promove, cumprindo seus objetivos, seminários, pesquisas, congressos, cursos, encontros internacionais; publica livros e documentos relacionados com a história política do Brasil, dos países da língua portuguesa e latino-americanos, bem como o estudo sistemático de problemas sociais e políticos. A Fundação abriga um acervo, doado pelo Presidente Sarney, de 40.000 livros; e mais de 500.000 documentos; destes, 80.000 manuscritos; 70.000 recortes de jornais (clippings, charges, sinopses); 70.000 cartas enviadas de todos os quadrantes do País. O acervo audiovisual corresponde a 18 mil negativos, 1.500 filmes de 16 mm, milhares de slides, discos, ábuns fotográficos, 4.000 horas de fitas VHS e V-MATIC. Acervo museológico de 2.500 peças, arte sacra, esculturas, quadros e artesanato de vários países. Gravuras, mapas antigos, obras raras e manuscritos de grande valor, destacando-se os originais de “Espumas Flutuantes”, de Castro Alves, Sermões de Pe. Antônio Vienra, originais de Eça de Queirós, Jorge Amado, Odorico Mendes, Camilo Castelo Branco, Tomás Antônio Gonzaga, entre muitos. Tudo isso, um patrimônio que não está enclausurado, egoistamente, como um patrimônio pessoal de um ex-presidente, mas um patrimônio histórico que está socialmente contribuíndo com a identidade da sociedade maranhense e de todo o povo brasileiro.
A “Fundação Sarney”: coroamento de uma vida preocupada com a cultura
Esta importante iniciativa do político e intelectual Sarney não foi uma iniciativa isolada do ex-presidente. Na época em que estava no Palácio do Planalto, além da “lei de incentivo à cultura” e da criação do “Ministério da Cultura”, tomou outras providências importantes na áera cultural, como o apoio à criação de várias outras fundações associadas a outros intelectuais, como foi o caso do apoio decisivo que deu à criação da “Casa de Jorge Amado”. Plantada bem no coração do chamado “Centro Histórico” de Salvador, outro sítio tombado pelo IFHAM e pela própria UNESCO, a sede da “Fundação Jorge Amado” fica no “Largo do Pelourinho” e domina, do alto do seu mirante, uma fantástica paisagem: ladeiras centenárias, sobradões de fachadas austeras e beirais graciosos, telhados que se superpõem até onde a vista alcança e, mais além, o mar da baía onde, nos dias mais claros, a silhueta de alguma praia se insinua, mais adivinhada que vista pelos olhos deslumbrados. O Largo do Pelourinho está situado no coração da parte mais antiga da cidade de Salvador. Bem ao pé das velhas Portas do Carmo, pertinho do Terreiro de Jesus e de um dos mais famosos conjuntos de igrejas barrocas das Américas: a de São Francisco, toda em talha dourada, a do Rosário dos Pretos, a do Passo e a imponente Catedral Basílica, antes igreja do Colégio dos Padres, onde estudou o poeta Gregório de Mattos e pregava o padre Antônio Vieira. A escolha não podia ser mais apropriada. Afinal, o Largo do Pelourinho é um dos marcos deste imenso território que é a obra do escritor mais amado de sua terra. Entre fantasmas do passado e a variada população que hoje ocupa os velhos casarões assobradados, movem-se, com desenvoltura, os personagens deste criador que, extrapolando as fronteiras da língua, levou aos quatro cantos do mundo as histórias de sua gente. O presidente José Sarney não só apoiou a criação da “Fundação Casa de Jorge Amado”, como fez questão de ir à inauguração. E, hoje, nem há um bahiano que não se orgulhe da “Fundação Casa de Jorge Amado”, como a maioria esmagadora dos maranhenses também se orgulham da fundação “José Sarney”, com a diferença de que esta, além de ter sido fndada pelo escritor e acadêmico Sarney é também uma instituição criada pelo único maranhense que chegou à Presidência da República.
As lamentações dos derrotados e o ódio à cultura
Porém, há pouco tempo, com a “Fundação Sarney” em pleno funcionamento, por filigranas jurídicas que envolvem a transferência do usufruto do Convento das Mercês, setores minoritários e que nunca conseguiram se afirmar politicamente junto ao povo maranhense, procuram inviabilizar a iniciativa do ex-presidente Sarney. Com base em argumentos simplistas e pouco esclarecidos do Ministério Público maranhense, tucanos (são sempre eles) do estado procuraram tirar proveito partidário que poderiam prejudicar o funcionamento de tão bela iniciativa cultural, desconsiderando, por completo, a necessidade de se separar interesses pessoais do interesse geral. E o pior: na maior cara de pau, políticos meões como um tal Aderson Lago, brincaram com o povo do Maranhão, mas se esqueceram das próprias mazelas tucanas. Isto porque, diferente de José Sarney, que doou seu patrimônio pessoal para o Maranhão, quando poderia fazê-lo para qualquer outro museu da capital federal, o tucano-mor, Fernando Henrique Cardoso, tomou outro rumo nada digno de um homem que foi presidente da República. Nunca é demais lembar que, na edição 234, de 11 de novembro de 2002, a revista “Época”, com o título de capa “FHC passa o chapéu”, mostrou que o ainda então presidente da República tucano reuniu empresários para levantar R$ 7 milhões para ONG que bancaria palestras e viagens suas ao Exterior em sua aposentadoria . A revista mostrou que foi em noite de gala, dizendo: “Fernando Henrique Cardoso reuniu 12 dos maiores empresários do país para um jantar no Palácio da Alvorada, regado a vinho francês Château Pavie, de Saint Émilion (US$ 150 a garrafa, nos restaurantes de Brasília). Durante as quase três horas em que saborearam o cardápio preparado pela chef Roberta Sudbrack - ravióli de aspargos, seguido de foie gras, perdiz acompanhada de penne e alcachofra e rabanada de frutas vermelhas -, FHC aproveitou para passar o chapéu. Após uma rápida discussão sobre valores, os 12 comensais do presidente se comprometeram a fazer uma doação conjunta de R$ 7 milhões à ONG que Fernando Henrique Cardoso passará a presidir assim que deixar o Planalto em janeiro e levará seu nome: Instituto Fernando Henrique Cardoso (IFHC)”. A convocação de empresários para doar dinheiro a uma ONG pessoal do presidente, ainda com a possibilidade de assinar o Diário Oficial, constituiu o diferencial da atitude de ex-presidentes tão diferentes como FHC e José Sarney. O primeiro usou o Estado para benefício próprio para garantir suas viagens ao exterior, não para beneficiar o povo brasileiro. O segundo, usou seu próprio patrimônio pessoal para beneficiar um dos mais importantes interesses públicos: a cultura. São formas radicalmente de se encarar a vida pública.
Conclusões óbvias
O que difere um estadista de um político comum é a preocupação com o bem geral, que é sempre o interesse de todos os membros da sociedade. E não há elemento mais decisivo para se distinguir este interesse geral dos reclamos particulares do que a cultura e a memória histórica. Um povo que não conhece e não admira sua História, não aprende com seus próprios erros e acertos, não pode compreender o presente e, portanto, não tem como projetar ações futuras. Imagine uma pessoa que leva uma pancada na cabeça e fica com amnésia. As primeiras perguntas que faz é: quem sou eu? De onde vim? Para onde vou? Com as nações, guardadas as devidas proporções, é a mesma coisa. Sem conhecer suas origens, sem compreender sua História, sem amar suas virtudes e reconhecer suas limitações, fica à deriva enquanto nação, perde rumo e, com certeza, torna-se uma presa fácil no conjunto das nações. Portanto, um povo que ainda não valorizou o patriotismo como elemento de coesão social está ainda na puberdade ou adolescência. Para se tornar adulto, portanto, para se autodeterminar, para criar a sua própria História, tem que amadurecer esta idéia. As nações que se destacam, hoje, no cenário mundial, todas as mais ricas e influentes do planeta, já aprenderam isso há muito. Por isso, a iniciativa de José Sarney no sentido de preservar nosso patrimônio cultural e histórico deveria ser imitada, não destruída por interesses mesquinhos e oportunistas. Os políticos que sobrepõem celeumas partidários e interesses específicos em detrimento do bem comum são uma agressão à nacionalidade e ao Brasil. Por pura birra política de quem não consegue, definitivamente, ter votos no Maranhão, sem nenhuma preocupação para com o interesse público e a necessidade de se preservar e divulgar o patrimônio histórico, estão tentando dilapidar o patrimônio cultural do Maranhão e do Brasil, o que é muito lamentável. É isso.
* Said Barbosa Dib é hstoriador e analista político
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