domingo, 6 de abril de 2008

Crônica do leitor


O ÔNIBUS
*Pedro Augusto Teles de Almeida Barbosa

A rotina, companheira quase sempre sem sentido, era a difícil realidade de quase todos. Mas guardava, naquilo de há de mais horrível e cansativo, coisas belas pelo que iria revelar. Eu percorria o trajeto Goiânia-Aparecida num velho ônibus do “Eixo 85”. Coletivo cheio. Muito cheio. Pessoas desconhecidas transpirando cheiros e sentimentos. Vida atribulada, pulsante e muito corrida invadia a todos. Harmonia e respeito eram apenas esperanças inalcançáveis. Deveria ser outra a realidade, mas, definitivamente, não era. O tempo do verbo (futuro do pretérito) já diz tudo: “DEVERIA”. Naquele presente o que havia era o olhar resignado de cansaço “sobre-humano”, pessoas massacradas pelo esforço repetitivo do dia-a-dia. Cada um absolutamente convencido de que as próprias misérias eram as mais desgraçadas de todo o mundo. O companheiro ao lado, apesar do odor forte e do esfregar do corpo um contra o outro, era quase ignorado. Cada um tinha a convicção de que a própria labuta era a mais penosa, a mais sofredora, a mais merecedora de um lugar nos Campos Elíseos. E “Campos Elíseos” significava, para uns, reconhecimento e...dinheiro. Para a maioria, trabalhadores sofridos, era apenas “chegar ao seu ponto final” para, finalmente, descansar em casa.
A situação escabrosa parecia se intensificar nos olhos de cada novo passageiro que embarcava. E assim o ônibus seguia, como um Caronte à procura de almas cansadas rumo ao Inferno. Então, no meio do trajeto, começou a chuva que, teoricamente, deveria abrandar o calor daquela tarde. Mas, não. O calor persistia. Era insistente. A chuva, ao tocar o asfalto, virava vapor quente, tão ardente que parecia arrancar do chão todos os sofrimentos e mazelas pelos quais passaram aqueles tristes passageiros ao longo do mês.
Um grito resolve destoar do silêncio conformado: “Fechem as janelas!” Obedecida a ordem, só restou a rápida entrada de ar das portas que se abriam nas paradas, quando mais um corpo cansado era “desovado” ou outro entrava. Ali em pé, suado e cansado, estava eu, que, como um típico jovem de classe “média, média” (não acostumado com aquilo?!), me via maldizendo a situação: “não, não, mil vezes... NÃO! Mas todos ao redor, cada vida, cada rotina, cada... pessoa... continuavam a chegar ao “ponto final” de cada um. Desembarcavam na contra-mão dos que insistiam em recomeçar o ciclo, subindo no ônibus.
Iam para as suas casas, casebres, cortiços ou, quem sabe, para lugar algum – vá saber? O que via é que seguíamos todos, assustadoramente isolados dos demais, resignados, cada qual o seu caminho. Fiquei esperando a chuva passar, com uma idéia fixa que não me saía da mente: a injustiça como aquelas pessoas eram tratadas. Todos sentiam e maldiziam a situação. Mas, se calavam. Outros tinham conhecimento do descaso histórico para com a população. Entretanto, a forma áspera como todos se entreolhavam, a rispidez como se tratavam, o individualismo crônico, não podia unir ninguém. Parecia, na verdade, intensificar toda situação. Eram pobres solitários, ironicamente, sofrendo em conjunto.
Naquele dia ficou claro que até a forma mais simples de enxergar felicidade, também em coisas simples, que o pobre geralmente possui, está se acabando. Digo isso tendo certeza que a biografia de alguns dos que estavam ali mostraria de forma explícita o reflexo do tal descaso. Uma biografia de resignação total. Uma história de passividade assustadora.
E foi em meio a essa quantidade de pensamentos desordenados e confusos que, como “um tapa no cognitivo”, me ocorreu uma lembrança: este jovem “pequeno-burguês” aqui, pedante às vezes, além de passar um ínfimo pedaço daquela situação, tinha a certeza que poderia contar com um “apoio técnico”, ou seja, a minha família. Ou melhor, ainda: com o carro da família. Então, me encaminhei, depois de descer do ônibus, à guarita, onde geralmente espero meus pais em situações de necessidade. Ali, ainda presenciei uma cena que confirma esta “quase teoria” da perda de sensibilidade que o dia-a-dia impõe às pessoas. Uma senhora, que aparentemente tinha quase setenta anos, trazia pelos braços seu filho, que já devia ter seus cinqüenta anos. Muito magro, extremamente debilitado, em vestes bem usadas. Logo depois veio uma moça que parecia ser neta da senhora. Neste momento o homem externa toda sua fraqueza dizendo, trêmulo, que tinha medo de cair. Era claro que era um dependente. As várias pessoas presentes, que se escondiam da chuva, acabaram também fugindo do olhar da senhora e de seu filho necessitado. Pareciam-lhes que o sofrimento – ou a necessidade de ajuda – daqueles dois era algo contagiante. Entreolhavam-se, demonstrando desprezo, repulsa... ou seria medo? Olhei para os lados e percebi que o único lugar que daria para o homem sentar ali era um pedaço de toco a minha direita. Peguei-o rapidamente e o ofereci. Ele se sentou logo depois.
Esta foi a única coisa que fiz. Aliás, foi a única atitude tomada. Permaneci calado, passivo, imóvel, até que a moça que os acompanhava foi buscar um táxi. Assim eles se foram. Quanto ao problema do senhor, não me arrisco a dar palpite. Não importa. O que importa é que, diante da dificuldade daquele homem, definitivamente, não houve qualquer ação por parte das pessoas. Pouco depois chegava meu pai e eu saia daquela realidade incômoda, mas trazendo comigo duas palavras a me perturbar a cabeça. Palavras que resumiam aquele dia: “descaso” e “passividade”. Minha? Deles? De todos? Serão essas as questões de ordem do século XXI ? Quem sabe?

*Pedro Augusto Teles de Almeida Barbosa, estudante universitário em Goiânia
augustotab@hotmail.com

Um comentário:

  1. Descaso... engraçado que quanto melhor nossa situação, maior é nosso descaso. E quando tomamos alguma atitude positiva, com certeza é para aparecer pra alguém/algo.

    Sem soluções na minha mente... preciso correr e voltar a trabalhar, e melhorar a situação... :D

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