segunda-feira, 3 de maio de 2010

Carlos Lessa

A crise nas ideias econômicas e a euforia

No Brasil temos a bolha da venda a longo prazo com cláusula de recuperação do bem

A humanidade saiu dos horrores da II Guerra Mundial. A descolonização e a Declaração dos Direitos do Homem deram alento à periferia do mundo. As Nações Unidas poderiam afastar os fantasmas da guerra, da fome, da doença e estabelecer a marcha em direção ao processo civilizatório. Surgiu a Guerra Fria; foram elevados, de forma explosiva, os gastos militares. O avanço tecnológico e científico foram derivados (e sustentaram) da corrida armamentista. Entretanto, no mundo bipolarizado, alguns países periféricos que não se situaram como satélites das duas potências desfrutaram de algum raio de manobra geopolítica para ensaiar projetos nacionais de desenvolvimento.
Ao sonho do Terceiro Mundo de cobrir a distância entre os padrões de vida do Centro e da Periferia, foram contrapostos dois vetos. A contundência neomalthusiana do Clube de Roma afirmou que a pretensão periférica de aproximar seus padrões de vida aos do Primeiro Mundo era um sonho impossível e inatingível pois o consumo crescente de recursos naturais não renováveis conduziria a humanidade ao Apocalipse. O segundo veto foi enunciado por McNamara, em A Essência da Segurança, onde afirmou que o risco da III Guerra Mundial seria derivado do crescimento demográfico explosivo dos países do Terceiro Mundo: tais países - disse, com a suficiência de potência - seriam incapazes de responder por si próprios aos anseios de suas populações e seriam praguejados por rebeliões, revoltas, golpes de Estado, conflitos internos. A alta fertilidade minava a poupança nacional e a periferia não deveria ter qualquer pretensão ao desenvolvimento.
Com a queda do Muro de Berlim acabou a Guerra Fria. Houve a consolidação definitiva de uma superpotência cujo gasto militar é superior à soma do gasto dos nove outros países que lhe sucedem em despesas bélicas. As super-empresas nascidas no útero da superpotência transbordaram suas filiais por todo o planeta. A moeda dominante, após o definitivo sepultamento da conversibilidade em ouro, passou a ser o indexador de toda a riqueza mundial e o sistema financeiro da superpotência, o eixo da vida das nações.
A retórica do Clube de Roma-MacNamara foi, posteriormente, revestida pelo discurso ambientalista. Em sua versão radical, adverte que o progresso humano é uma falácia e apenas acelera a marcha para a destruição do mundo. Não preconiza abertamente o genocídio, porém ele emana desse discurso. Na vertente não radical, fala-se de um hipotético desenvolvimento sustentável, que deixa implícita a necessidade de conter padrões de vida e supõe a necessidade de um "xerife" mundial.
A hegemonia da superpotência não conduziu à redução das distâncias entre o centro e a periferia. Não emergiram novas políticas mundiais apoiadas pela redução do gasto armamentista. Houve a emergência de um discurso ideológico que ressuscitou as ideias liberais da velha Economia Política clássica inglesa. David Ricardo formulou, como teoria do comércio exterior que cada país, se especializando no que fizesse melhor, levaria a economia mundial a seu máximo esplendor. Essa teoria caiu como uma luva para a Inglaterra de então, pois exportaria suas produções industriais e importaria do resto do mundo os alimentos e matérias primas que necessitasse.
A versão atualizada pelos EUA prega a "globalização". A economia mundial, pelo livre jogo dos mercados e com moedas flutuantes, seria convertida em um espaço para a livre circulação das mercadorias, das empresas, dos capitais e, por si só, caminharia para a civilização. Essa doutrina é perfeita para a superpotência que controla a moeda mundial, dispõe dos principais bancos e do mais forte mercado de capitais e espalhou suas filiais, suas marcas e aspirações de consumo pelo planeta. A atrofia das soberanias nacionais e eventuais pretensões desenvolvimentistas é um corolário do discurso pró-globalização. A hipocrisia neoliberal não preconiza a livre movimentação de força de trabalho e populações. Assim sendo, a questão social fica circunscrita à nação despojada de seus instrumentos discricionários. Cada nação da periferia deve, por esse discurso, confiar na livre movimentação financeira e na total passividade em relação aos procedimentos das frações de capital do exterior. É um corolário congelar os padrões de vida e preservar as distâncias entre o centro e a periferia. O calcanhar de aquiles está na enorme dependência do padrão de vida da disponibilidade de recursos energéticos não renováveis. O Primeiro Mundo consome mais de quatro vezes petróleo por habitante que a periferia mundial. É impossível, frente ao declínio dessas fontes energéticas, reduzir a distância centro-periferia.
É óbvia a contraposição entre o discurso da globalização e o da sustentabilidade da economia mundial. A última crise financeira deveria conduzir a reflexão mundial a uma discussão, em profundidade, desses dois temas.
A revista "Veja" de 24 de março exalta Robert Shiller, que descobre a pólvora: "a natureza humana é prisioneira de impulsos irracionais e, por conseguinte, é uma mentira que os mercados são sempre reacionais e eficientes". Shiller é um economista ultra-conservador que, frente à crise, vai provavelmente investigar técnicas de pesquisa sobre a animalidade que pode dominar mercados e, se construir modelos, poderá ser um candidato ao Prêmio Nobel. O UBS, o maior banco suíço, afirmou em 26/3/2010, que há uma bolha no mercado de ações brasileiro, enquanto, no mesmo dia, o super banco americano JP Morgan afirmou que a economia no Brasil está aquecida e o real está supervalorizado.
Esses avisos estão na contramão da euforia brasileira. Os dois arautos do superaquecimento receberam como resposta do Banco Central brasileiro que o Brasil pode impedir um crescimento maior de 2% ao ano. mediante a retirada de incentivos fiscais e aumento da Selic, a taxa básica de juros. O BC, que apoiou o intenso endividamento das famílias, não se preocupa com a atrofia de empregos de qualidade nem com a queda de renda das famílias endividadas; afinal, sabe que o empresário de bom senso não vai investir em ampliação de capacidade produtiva frente a sua enfática declaração contra crescimento e permanecerá atraído para aplicações rentistas para desfrutar da taxa de juros real brasileira firme no pódium da especulação financeira mundial.
No Brasil, em vez da bolha imobiliária da crise norte-americana, temos a bolha da venda a longo prazo com cláusula de recuperação do bem. Se o emprego e a renda do endividado com dezenas de prestações não crescerem, a bolha estoura e os financiadores vão ter uma enorme quantidade de veículos sem garagens para armazenamento. Sem investimento produtivo voltado para o mercado interno e a partir de um projeto nacional, o Brasil apresentará ao mundo uma nova forma patológica de "espírito animal" capitalista.

Carlos Lessa é doutor em economista. Foi professor do Instituto Rio Branco do Itamaraty (1961-1964) e da UFRJ. Também presidiu o BNDES no governo Lula.

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