O fiado no folclore
("O fiado no folclore". A Tarde, Salvador, 07 de janeiro de 1955) O original está em O fiado no folclore, no excelente portal Jangada Brasil
Sempre achei interessante, incluindo, como original costume, no precioso folclore nacional, o hábito de alguns negociantes, dos mais modestos aos mais opulentos, afixarem cartazes grotescos uns, artísticos outros, em suas casas comerciais ou quitandas, sobre a venda a crédito, isto é, aquilo que não é logo pago ou, melhor ainda, o fiado... Todos sabemos que isso não livra o calote, quando tem mesmo de acontecer. Mas que é pitoresco o aviso, não resta a menor dúvida. Porque não há negociante por mais seguro que o seja, que se livre, mais cedo ou mais tarde, do logro irremediável, pois, para esperto, esperto e meio... Não faço a apologia do caloteiro inveterado e profissional. Mas que, muitas vezes, a coisa tem graça, pela habilidade com que age, isso tem... Do fiado nasce o espeto. Quem não paga incontinenti o que compra espeta a conta. E vai espetando... até, ele próprio ficar espetado, isto é, encalacrado, cheio de dívidas.
Daí a precaução que tomam certos comerciantes. Tenho lido muitos destes dísticos de precaução e previdência e um desse, que vivem a "espetar", já me disse que não há melhor chamariz para atrair os que pretendem "derrubar" o próximo.
Lembro-me de alguns de tais cartazes. Por exemplo: "Fiado só amanha", como se vê... é um amanhã que jamais chega, porque o dia de amanhã, não havendo data na tabuleta, será sempre o dia seguinte. E não há certa filosofia nessa advertência? Em Brás Cubas, de Machado de Assis, encontram-se frases como "Nem isso fiam as malditas quitandeiras" ou "É necessário comer, e as casas de pasto não fiam", de onde se vê que ainda por cima não é bem olhado quem não fia, embora Aulete tivesse dito que "Vende porque muito fia", Vieira, nos Sermões, também afirmou que "Nem fiam sua fazenda a sujeitos que lha possam roubar".
Na linguagem popular brasileira, que é conversa-fiada, senão o propósito de pessoa que não tem realmente intenção de cumprir o que diz? Até se parece com a "conversa mole para boi dormir", da nossa irreverente gíria, que nada mais é que conversação com intuito de embair, conversa sem futuro nem resultado prático, o mesmo que léria, lero-lero, leréia... Quanto a espetar, dizem os lexicógrafos que é pôr no espeto, isto é, fiar, creditar. As notas dos fiados são postas num espeto nos bares e casas de pasto ou outras. Na História do Flamengo, de Mário Filho, essa versão é plenamente abonada. E, ainda quanto ao verbo "espetar-se": dar um espeto, atrapalhar-se, comprometer-se, ficar em má situação. Na própria aviação, espetar-se é morrer. É a lição dos gramáticos. Mas... tornemos ao nosso singelo folclore, que é o intuito desta crônica e não "bancar" erudição...
Depois do "fiado só amanhã", vem o "Se é meu amigo, não me fale em fiado". Ou, ainda melhores, estes versos que encerram grande verdade:
Vendi fiado uma vez...perdi o amigo e o freguês.
De fato, às vezes, o freguês é dos melhores. Lá um certo dia compra fiado, não paga e não volta mais... Perde-se o amigo... e o freguês.
Se algum dos leitores for ao Danúbio Azul, ponto certo de muitos boêmios da cidade, repare o cartaz que ali existe. Sobre a figura de um pobre homem, acabado, esquelético, em meio a destroços de balcões vazios, mãos crispadas, arrancando os cabelos, lê-se: "Eu vendi tudo fiado". E, ao lado, sobre a de outro negociante nédio, sadio, exuberante de alegria e próspero, com um cofre recheado, esta legenda bastante expressiva: "Eu vendo é no apurado". Nesse mesmo cartaz, ainda se lê: "Fiado? Não, meu amigo... Nem pela primeira vez. Não quero criar inimigo. Não posso perder o freguês".
Como, todavia, meu propósito é focalizar mais uma figura verdadeiramente popular e estimada, citarei, para concluir, o caso de Mariazinha que, com seu sortido tabuleiro, faz ponto na avenida Sete, perto do Tribunal de Contas. Ela também se orgulha dos versos de seu pedaço de papelão, que fica bem à vista dos possíveis caloteiros. E diz que foi ela mesmo quem os compôs, num dia de forte inspiração, isto é, em que levou um grande golpe. Eis sua quadra simples, respeitada, inclusive, sua grafia:
Daí a precaução que tomam certos comerciantes. Tenho lido muitos destes dísticos de precaução e previdência e um desse, que vivem a "espetar", já me disse que não há melhor chamariz para atrair os que pretendem "derrubar" o próximo.
Lembro-me de alguns de tais cartazes. Por exemplo: "Fiado só amanha", como se vê... é um amanhã que jamais chega, porque o dia de amanhã, não havendo data na tabuleta, será sempre o dia seguinte. E não há certa filosofia nessa advertência? Em Brás Cubas, de Machado de Assis, encontram-se frases como "Nem isso fiam as malditas quitandeiras" ou "É necessário comer, e as casas de pasto não fiam", de onde se vê que ainda por cima não é bem olhado quem não fia, embora Aulete tivesse dito que "Vende porque muito fia", Vieira, nos Sermões, também afirmou que "Nem fiam sua fazenda a sujeitos que lha possam roubar".
Na linguagem popular brasileira, que é conversa-fiada, senão o propósito de pessoa que não tem realmente intenção de cumprir o que diz? Até se parece com a "conversa mole para boi dormir", da nossa irreverente gíria, que nada mais é que conversação com intuito de embair, conversa sem futuro nem resultado prático, o mesmo que léria, lero-lero, leréia... Quanto a espetar, dizem os lexicógrafos que é pôr no espeto, isto é, fiar, creditar. As notas dos fiados são postas num espeto nos bares e casas de pasto ou outras. Na História do Flamengo, de Mário Filho, essa versão é plenamente abonada. E, ainda quanto ao verbo "espetar-se": dar um espeto, atrapalhar-se, comprometer-se, ficar em má situação. Na própria aviação, espetar-se é morrer. É a lição dos gramáticos. Mas... tornemos ao nosso singelo folclore, que é o intuito desta crônica e não "bancar" erudição...
Depois do "fiado só amanhã", vem o "Se é meu amigo, não me fale em fiado". Ou, ainda melhores, estes versos que encerram grande verdade:
Vendi fiado uma vez...perdi o amigo e o freguês.
De fato, às vezes, o freguês é dos melhores. Lá um certo dia compra fiado, não paga e não volta mais... Perde-se o amigo... e o freguês.
Se algum dos leitores for ao Danúbio Azul, ponto certo de muitos boêmios da cidade, repare o cartaz que ali existe. Sobre a figura de um pobre homem, acabado, esquelético, em meio a destroços de balcões vazios, mãos crispadas, arrancando os cabelos, lê-se: "Eu vendi tudo fiado". E, ao lado, sobre a de outro negociante nédio, sadio, exuberante de alegria e próspero, com um cofre recheado, esta legenda bastante expressiva: "Eu vendo é no apurado". Nesse mesmo cartaz, ainda se lê: "Fiado? Não, meu amigo... Nem pela primeira vez. Não quero criar inimigo. Não posso perder o freguês".
Como, todavia, meu propósito é focalizar mais uma figura verdadeiramente popular e estimada, citarei, para concluir, o caso de Mariazinha que, com seu sortido tabuleiro, faz ponto na avenida Sete, perto do Tribunal de Contas. Ela também se orgulha dos versos de seu pedaço de papelão, que fica bem à vista dos possíveis caloteiros. E diz que foi ela mesmo quem os compôs, num dia de forte inspiração, isto é, em que levou um grande golpe. Eis sua quadra simples, respeitada, inclusive, sua grafia:
Comprou pagou
Fiado não dou
Não falhe nisso
Por favor...
("O fiado no folclore". A Tarde, Salvador, 07 de janeiro de 1955)
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