quarta-feira, 24 de setembro de 2008

A Nova Crise do Real

Adriano Benayon*

Para futuro não muito distante gesta-se outra crise do real e mais um desgaste insuportável para a economia brasileira, semelhante ao de 1998, quando a taxa dos títulos públicos chegou a 50% aa., sem que isso tenha evitado a galopante desvalorização do real iniciada em 1999. A recorrente vulnerabilidade das contas externas é conseqüência inelutável do modelo comandado por bancos e empresas transnacionais. Enquanto perdure o atual regime (não me refiro apenas ao presente “governo”), não há qualquer chance de serem levadas em conta sugestões de política econômica capazes de sequer reduzir a amplitude e a profundidade do desastre, mesmo porque não há como tratar do problema, mantida a atual estrutura dos mercados.
Eis como começa a Nota para a Imprensa sobre o Setor Externo, divulgada pelo Banco Central (BACEN) em 28.07.2008: “O balanço de pagamentos registrou superávit de US$ 2,6 bilhões em junho de 2008. As transações correntes apresentaram déficit de US$ 2,6 bilhões acumulando, nos últimos doze meses, déficit de US$ 18,1 bilhões, .... A conta capital e financeira foi superavitária em US$ 6 bilhões. (Grifos meus).
A Nota é pouco esclarecedora. Traz dados a respeito de componentes do balanço de pagamentos quase que só para o mês de junho, sem mostrar o resultado do 1º semestre. Há apenas uma referência, logo no início, ao acumulado nas transações correntes, nos últimos 12 meses. A Nota parece orientada para minimizar a percepção do que mais interessa: a nítida e rápida deterioração das contas externas do Brasil.
Para recordar, o balanço de pagamentos compõe-se de dois grandes conjuntos: as transações correntes e a conta de capital. As transações correntes englobam, além das transferências unilaterais (principalmente remessas de trabalhadores brasileiros provenientes do exterior), os balanços: 1) comercial (mercadorias); 2) de “serviços”; 3) de rendas. Fazem parte deste as remessas de lucros e dividendos, e os juros. O balanço comercial teve, nos últimos anos, grandes saldos positivos, mas estes se vêm reduzindo muito. Já os serviços e as rendas resultam tradicionalmente em déficits, que vêm crescendo.
A Nota do BACEN omite que as transações correntes mostraram déficit de US$ 17,4 bilhões, em apenas seis meses (janeiro a junho de 2008), quantia quase igual à desse déficit nos últimos 12 meses. Ela é 25 vezes maior que a verificada de julho a dezembro de 2007. É inegável, pois, que a situação das contas externas do País se agravou aceleradamente mesmo durante a conjuntura externa ainda favorável para as commodities, que ainda prevalecia no 1º semestre de 2008.
O BACEN “esqueceu”, ademais, de utilizar outro dado de suas estatísticas, a saber, que os lucros enviados pelas multinacionais às matrizes somaram US$ 19 bilhões neste mesmo 1º semestre. Essa estarrecedora cifra é o dobro da do mesmo período em 2007 (US$ 9,8 bilhões).
Apesar de superarem sozinhas o déficit total das transações correntes (US$ 17,4 bilhões), as remessas de lucros não são o único determinante desse déficit. Há também: 1) o superfaturamento de importações e o subfaturamento de exportações, que fazem o superávit comercial ser muito menor do que seria de outro modo; 2) as despesas a título de juros e de “serviços”, em favor das matrizes das transnacionais.
Com o crescente déficit nas transações correntes, o balanço de pagamentos vai sendo, por enquanto, “equilibrado” por meio do ingresso líquido de capitais: os de curto prazo, aplicados em diversos ativos do mercado financeiro, aproveitando as obscenas taxas de juros “brasileiras”; e os “investimentos” estrangeiros diretos (IEDs), que totalizaram US$ 16,7 bilhões no 1º semestre de 2008 (US$ 20,9 bilhões no 1º de 2007). Quanto ao balanço de pagamentos o 1º de 2008 terminou com superávit de US$ 19,2 bilhões, menos de 1/3 do saldo do 1º semestre de 2007 (US$ 61,6 bilhões), com grande participação dos capitais de curto prazo.
A situação confrangedora das contas externas brasileiras não está somente nessas cifras, mas sobre tudo nestes deploráveis aspectos qualitativos:
1) o Brasil envia recursos financeiros líquidos ao exterior nas transações correntes, não obstante exportar colossais recursos naturais e, abusando destes, bens industrializados de baixo valor agregado;
2) tenta “equilibrar” o déficit das transações correntes com a conta de capital, subsidiando o ingresso de capitais estrangeiros, que implicam crescentes remessas de ganhos especulativos, e subsidiando a intensificação do controle dos meios de produção por parte de empresas transnacionais, a plataforma de lançamento ao exterior, por exemplo, dos US$ 19 bilhões de lucros às suas matrizes, no 1º semestre de 2008.
As cifras a seguir descrevem a explosão das remessas, que não passam de fração pequena dos lucros reais, transferidos ao exterior por outras contas do balanço comercial e do de serviços. Anotam-se também os ingressos de IEDs.

Remessas de lucros .............................................Ingressos IEDs

2003 - US$ 5,7 bilhões........................................US$ 10,1 bilhões
2004 - US$ 7,3 bilhões........................................US$ 18,1 bilhões
2005 - US$ 12,7 bilhões...................................... US$ 15,1 bilhões
2006 - US$ 16,4 bilhões...................................... US$ 18,8 bilhões
2007 - US$ 22,4 bilhões..................................... US$ 34,6 bilhões
2008 – US$ 19 bilhões, em 6 meses................................................

Vê-se, pois que os novos ingressos de IEDs mal equilibram as remessas de lucros, as quais crescem em velocidade bem maior. E o pior é que esses ingressos são a base para remessas de lucros ainda mais fantásticas no futuro. É evidente que quanto maior for o controle das atividades produtivas pelo capital estrangeiro, mais este disporá de meios de produção para realizar lucros e enviá-los para o exterior, inclusive lucros que não se apresentam como tais na contabilidade das transnacionais, livre para escriturar preços convenientes a fim de, além disso, evitar o pagamento do IRPJ e da CSLL.
No livro “Globalização versus Desenvolvimento” mostro que todos os países hoje ditos desenvolvidos criaram estruturas para isso por meio da participação direta do Estado na economia produtiva, além de todo um conjunto de políticas destinadas a viabilizar o setor privado nacional.
Exatamente o contrário do que o Brasil foi induzido a fazer: subsidiar grandes transnacionais, ajudando-as a apoderar-se dos mercados e a aprofundar seu comando sobre a política econômica do País. Isso decorreu da intervenção política, cultural e militar estrangeira, especialmente a partir do golpe de 1954 que derrubou o presidente Vargas.
Publicado em A Nova Democracia, nº 46, setembro de 2008
*Adriano Benayon do Amaral é diplomata de carreira, Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados e, depois, do Senado Federal, na Área de Economia, aprovado em 1º lugar em ambos concursos. Doutor em Economia pela Universidade de Hamburgo e Advogado, OAB-DF nº 10.613, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Foi Professor da Universidade de Brasília e do Instituto Rio Branco, do Ministério das Relações Exteriores. Autor de “Globalização versus Desenvolvimento”.

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