Não. O tema não trata do que acontece no sistema financeiro, não. É assombração mesmo, tema do mês do excelente portal de cultura e folclore, o “Jangada Brasil"
Assombração
Saul Martins
Saul Martins
O sertão que nasce da margem esquerda do médio São Francisco e pelo interior a dentro se embrenha dezenas de léguas até às vizinhanças do rio Carinhanha é, precisamente, o centro mais freqüentado por almas do outro mundo. E chegam sempre acompanhadas de ventanias, miados, aboios e outras tantas matinadas que metem pavor a solitários viajantes, pois, se mais das vezes essas "livusias" aparecem no breu de estradas desertas. São artes do "bicho ruim" com a finalidade de impedir o socorro dos vivos.
Há sertanejos, no entanto, que enfrentam heroicamente essas multidões de fantasmas, enquanto outros, mais prudentes, não se arriscam a sair de casa durante as horas mortas.
Mané Portera era da fibra dos primeiros. Usava e abusava de sua coragem. Sumia nas trevas e varava léguas e léguas de chapadões e caatingas. Um dia, recebeu o merecido castigo.
Quase morreu assombrado.
E foi pura coincidência.
Viajava ele, altas horas, para Cônego Marinho e, ao passar pelo Pouso do Juazeiro, nome que designa um dos pontos de rancharia de tropeiros naquelas plagas distantes, deu com uma rede armada ao pé da árvore, tendo ao lado um fogo quase apagado. Mané Portera resolveu "esquentar o estambo" e passar o resto da noite em companhia daquele "viajante".
Aproximou-se do juazeiro e dirigiu-se ao da rede:
– Boa noite, companheiro!
Não obteve resposta, mas deu pouca importância ao fato. Cuidou de desarrear o cavalo e peá-lo na vargem próxima. De volta, reavivou o fogo com o intuito de assar um naco de carne gorda para comer com farinha. Lembrou-se de convidar o vizinho.
– Companheiro, vamo cumê uma lasquinha de carne!
Silêncio.
Ele insistiu, com ligeiro desagrado:
– Aqui é de paz, companheiro! Vamo prosear um tiquim, que a gente tem vontade de conversar com alguém nesse oco de mundo!
Nem sinal.
Mané Portera levantou-se da beira do fogo, enfadonhamente, e dirigiu-se à rede:
– Esse diacho parece que tá morto ou que tem sono de pedra! Companheiro, ô companheiro, aqui é de paz.
Nada.
Pegou na rede para sacudi-la e notou que um pau atravessava de punho a punho.
Sentiu um calafrio.
E toca a chamar:
– Companheiro, companheiro, com...
Deu com a mão num pé gelado, tão frio que doía.
Recuou estarrecido.
Quase inconsciente Mané Portera segurou a sela pelo rabicho, jogou-a ao ombro e deu de disparada pelo carrasco afora. Nessa carreira desvairada as caçambas da sela batiam e, julgando fosse o defunto, dava mais, até que chegou à casa do José Antônio, que ficava a um quarto do Pouso.
Lá estava um grupo de pessoas bebendo pinga. Quando Zé Antone viu Mané Porteira, gritou alarmado:
– Num traz a luz que esse homem tá assombrado!
A pessoa que viu "livusia" e correu, ou desmaiou de pavor, não pode ver a luz. Está sujeito a engolir a língua e nunca mais falar.
Mas a Mané Portera nada houve, porque Zé Antone conheceu logo o que tinha ele e evitou que o alumiassem.
Passada a fase de semi-inconsciência, Mané Portera pôde esclarecer a razão que o levara àquele estado. Foi quando lhe disse Zé Antone, enquanto largava boa gargalhada:
– Ora, Mané, num é defunto, não. É sá Zupera que esticou as canelas. Essa cambada tá carregando ela pro cemitério e deixaro a véia no Pouso pra vim bebê cachaça.
Serviu-lhe de lição.
Até hoje, Mané Portera aconselha:
– É mió a gente botar o zóio pra drumi, que as noite num é pra vivo.
(Martins, Saul. "Assombração". O Diário. Belo Horizonte, 07 de maio de 1950)
Veja também:
Almas do outro mundo e botijas
Assombração
Na ilha do Medo há coisas de arrepiar os cabelos
Histórias de botijas e tesouros enterrados
Fantasmas de Barbacena
A casa mal-assombrada
Há sertanejos, no entanto, que enfrentam heroicamente essas multidões de fantasmas, enquanto outros, mais prudentes, não se arriscam a sair de casa durante as horas mortas.
Mané Portera era da fibra dos primeiros. Usava e abusava de sua coragem. Sumia nas trevas e varava léguas e léguas de chapadões e caatingas. Um dia, recebeu o merecido castigo.
Quase morreu assombrado.
E foi pura coincidência.
Viajava ele, altas horas, para Cônego Marinho e, ao passar pelo Pouso do Juazeiro, nome que designa um dos pontos de rancharia de tropeiros naquelas plagas distantes, deu com uma rede armada ao pé da árvore, tendo ao lado um fogo quase apagado. Mané Portera resolveu "esquentar o estambo" e passar o resto da noite em companhia daquele "viajante".
Aproximou-se do juazeiro e dirigiu-se ao da rede:
– Boa noite, companheiro!
Não obteve resposta, mas deu pouca importância ao fato. Cuidou de desarrear o cavalo e peá-lo na vargem próxima. De volta, reavivou o fogo com o intuito de assar um naco de carne gorda para comer com farinha. Lembrou-se de convidar o vizinho.
– Companheiro, vamo cumê uma lasquinha de carne!
Silêncio.
Ele insistiu, com ligeiro desagrado:
– Aqui é de paz, companheiro! Vamo prosear um tiquim, que a gente tem vontade de conversar com alguém nesse oco de mundo!
Nem sinal.
Mané Portera levantou-se da beira do fogo, enfadonhamente, e dirigiu-se à rede:
– Esse diacho parece que tá morto ou que tem sono de pedra! Companheiro, ô companheiro, aqui é de paz.
Nada.
Pegou na rede para sacudi-la e notou que um pau atravessava de punho a punho.
Sentiu um calafrio.
E toca a chamar:
– Companheiro, companheiro, com...
Deu com a mão num pé gelado, tão frio que doía.
Recuou estarrecido.
Quase inconsciente Mané Portera segurou a sela pelo rabicho, jogou-a ao ombro e deu de disparada pelo carrasco afora. Nessa carreira desvairada as caçambas da sela batiam e, julgando fosse o defunto, dava mais, até que chegou à casa do José Antônio, que ficava a um quarto do Pouso.
Lá estava um grupo de pessoas bebendo pinga. Quando Zé Antone viu Mané Porteira, gritou alarmado:
– Num traz a luz que esse homem tá assombrado!
A pessoa que viu "livusia" e correu, ou desmaiou de pavor, não pode ver a luz. Está sujeito a engolir a língua e nunca mais falar.
Mas a Mané Portera nada houve, porque Zé Antone conheceu logo o que tinha ele e evitou que o alumiassem.
Passada a fase de semi-inconsciência, Mané Portera pôde esclarecer a razão que o levara àquele estado. Foi quando lhe disse Zé Antone, enquanto largava boa gargalhada:
– Ora, Mané, num é defunto, não. É sá Zupera que esticou as canelas. Essa cambada tá carregando ela pro cemitério e deixaro a véia no Pouso pra vim bebê cachaça.
Serviu-lhe de lição.
Até hoje, Mané Portera aconselha:
– É mió a gente botar o zóio pra drumi, que as noite num é pra vivo.
(Martins, Saul. "Assombração". O Diário. Belo Horizonte, 07 de maio de 1950)
Veja também:
Almas do outro mundo e botijas
Assombração
Na ilha do Medo há coisas de arrepiar os cabelos
Histórias de botijas e tesouros enterrados
Fantasmas de Barbacena
A casa mal-assombrada
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