domingo, 7 de setembro de 2008

Patriotismo


Entrevista concedida pelo prof. Said Barbosa Dib, historiador, ao semanário “Jornal da Comunidade”, do DF, para a edição do dia 07 de setembro de 2003. São 5 anos, sem que o conteúdo tenha se desatualizado. Não foi, simplesmente porque os problemas estruturais do Brasil, no que se refere ao pouco patriotismo de nossas elites, continuam um problema a ser resolvido. As perguntas são da excelente repórter Maiesse Gramacho, que, com muita inteligência, soube encaminhar a entrevista com competência e senso crítico. Na época, nem todas as perguntas e respostas foram publicadas, ou por razões de espaço ou por critérios editoriais. Agora, segue na íntegra o que foi mais um debate espontâneo do que uma entrevista formal.

Jornal da Comunidade - Afinal de contas, o que é ser patriota?

Said B. Dib - Ser patriota é, antes de tudo, sentir-se pertencente a uma coletividade real chamada Pátria. É um sentimento tanto de identidade quanto de amor pela terra (país) onde nascemos e pelo povo que a habita (nação). Na Pátria nascemos, crescemos, adquirimos experiência, identidade e nos fazemos humanos, compartilhando nossa existência e comungando valores. Isto porque, como dizia Aristóteles, “homem nenhum é uma ilha”. É em sociedade que nos fazemos homens, aprendendo, convivendo, administrando conflitos, comungando sentimentos e atendendo demandas sentimentais e materiais. Pátria, portanto, acrescenta à noção de país um forte potencial emocional, porque enfatiza mais a idéia de continuidade histórica de um povo, garantia pela sucessão das gerações e a idéia de um patrimônio comum.

Jornal da Comunidade - Mas, porque este sentimento é – ou deveria ser - tão importante para as pessoas?

Said B. Dib - Por que se trata, antes de tudo, de uma questão ontológica, ou seja, envolve a própria noção do ser de um país. Quem somos? Qual a nossa História? O que nos distingue das demais nações? Um povo que não conhece e não admira sua História, não aprende com seus próprios erros e acertos, não pode compreender o presente e, portanto, não tem como projetar ações futuras. Imagine uma pessoa que leva uma pancada na cabeça e fica com amnésia. As primeiras perguntas que faz é: “quem sou eu?” “De onde vim?” “Para onde vou?” Com as nações, guardadas as devidas proporções, é a mesma coisa. Sem conhecer suas origens, sem compreender sua História, sem amar suas virtudes e reconhecer suas limitações, fica à deriva enquanto nação e perde rumo e, com certeza, torna-se uma presa fácil no conjunto das nações. Portanto, um povo que ainda não valorizou o patriotismo como elemento de coesão social está ainda na puberdade ou adolescência. Para se tornar adulto, portanto, para se autodeterminar, para criar a sua própria História, tem que amadurecer esta idéia. As nações que se destacam, hoje, no cenário mundial, todas as mais ricas e influentes do planeta, já aprenderam isso há muito.

Jornal da Comunidade - O povo brasileiro é patriota?

Said B. Dib - Nos países dependentes, apenas o povão ainda tem este sentimento, mas pouco pode fazer. Como exiladas em sua própria terra, as elites, geralmente, se acham cosmopolitas, têm vergonha de suas próprias origens, tendem a ver o Brasil permeados de valores e sentimentos importados, caem no erro de viver a própria História apenas como apêndice da História das nações hegemônicas, por isso, não conseguem perceber os benefícios do verdadeiro patriotismo. O caso dos técnicos que morreram em Alcântara é a prova que há felizes e alvissareiras exceções. Pessoas que sempre trabalharam pelo Brasil com esperança e determinação. Pessoas que sabem que ao contrário do que se pensa, países como o Brasil não são tomadores de dinheiro, mas, pelo contrário, estão há muito exportando capitais para alimentar justamente as forças que os subjugam, capitaneadas pelas ONGs estrangeiras e as instituições multilaterais.

Jornal da Comunidade – Quer explicar melhor este comentário.

Said B. Dib – Toda a estutura de poder que hoje existe parte de um pressuposto imbecil que diz que precisamos de ajuda para nos desenvolver. Uma idéia energúmena de amestrados que tenta nos fazer crer que os investimentos, a tecnologia e o apoio das nações desenvolvidas são imprescindíveis ao nosso desenvolvimento. Em primeiro lugar é importante sabermos que não precisamos fazer toda uma série de ações absurdas para termos investimentos estrangeiros. Temos dinheiro de sobra. Estamos, na verdade, exportando capital há muito. A prova de que estamos pagando para sermos escravizados está no fato de que, no Brasil, segundo o prof. da UnB, Adriano Benayon , citado por recente artigo do Dr. Irineu Goldemberg, cientista político, “só a conta de juros pagos aos especuladores internacionais em 2002 foi quase três vezes maior do que a admitida pelo Banco Central (R$ 113.9 bilhões), quantia suficiente não só para investimentos em infra-estrutura e pesquisa altamente avançada, como serviria para melhorar efetivamente todo o déficit social e ético que temos nos setores de saúde, educação básica e média, assistência social e demais elementos imprescindíveis para a nossa cidadania. Isto porque, se abstrairmos os mitos propalados, só no Orçamento da União, em "Encargos financeiros", tivemos R$ 108,4 bilhões. Encargos estes que passaram de R$ 300 bilhões... é isto mesmo: R$ 300 bilhões!!!, cuja diferença fantástica (R$ 200 bilhões) decorreu de desvio de verbas da seguridade - e de outras contribuições sociais – somente para pagar juros.”

Jornal da Comunidade – Mas, voltando especificamente ao tema “patriotismo”, há uma tendência muito corrente em se associá-lo aos Estados totalitários, à xenofobia e coisas do gênero. Como se explica isso?

Said B. Dib - Quando falamos em patriotismo, estamos falando de uma ideologia como outra qualquer. Embora fundamental para o “amor próprio” de uma nação, é apenas uma idéia. Idéias não têm cor nem cheiro. E como tal, sempre há uma diferença entre o que se deseja do mundo e como este funciona efetivamente. As idéias, por si mesmas, não matam, não destroem, não prejudicam. Mas uma mesma idéia, em contextos diferentes e submetida a interesses conflitantes, pode se tornar uma coisa boa ou ruim, como uma faca, que pode matar ou alimentar, dependendo do uso que se faz dela. Quem pode dizer que conceitos tão bonitos e que contribuíram imensamente com a evolução da Humanidade, como cristianismo, socialismo, liberalismo político ou democracia sejam, por si mesmos, conceitos bons ou ruins, até que sejam confrontados com a realidade?


Jornal da Comunidade – Mas, o fato é que, estados totalitários sempre se utilizaram do nacionalismo exacerbado para respaldarem seus poderes...

Said B. Dib - Isto porque, em nome de boas ações, o Inferno está cheio. Em nome do cristianismo, quantos não foram queimados pela Inquisição? Em nome da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”, da Revolução Francesa, quantos não foram guilhotinados? Em nome do socialismo, quantos não foram exterminados ou exilados na Sibéria? Em nome da democracia, quantas nações não foram invadidas ou sofreram intervenções diretas ou indiretas dos pelos EUA?

Jornal da Comunidade – Mas os avanços da Civilização e os princípios do Estado Democrático de Direito, dependeram muito destas idéias e dos homens que acreditaram nelas.

Said B. Dib – Sim. E é justamente por isso que, falando de patriotismo, vemos que uma idéia importante e bonita que, se não for praticada nos tempos de paz e normalidade, pode se tornar alimento perigoso para as soluções “fáceis” nos momentos de crise e ameaça. Não quer dizer que a idéia, em si, seja boa ou má. Por isso, patriotismo, por definição, deve ser sempre regra e pressuposto de uma nação soberana e democrática, nunca uma exceção apenas para os momentos de dificuldade, pois, desta forma, pode tornar-se fermento certo para os exageros totalitários.

Jornal da Comunidade - Na História da Humanidade o conceito de patriotismo mudou?

Said B. Dib - Como tudo que é humano, o conceito de patriotismo também é histórico. Desde os primórdios todo grupo social humano sempre sentiu a necessidade em pertencer a um grupo. No Egito Antigo, o Faraó e seu aparato estatal desempenhavam a função de catalisador do sentimento de coesão coletiva e unia todos os clãs (nomos) para que obras públicas importantes e grandiosas fossem realizadas, como os templos e os canais de irrigação. Na Grécia Antiga, por particularidades geográficas e singularidades políticas, o sentimento de unidade sempre foi local, nas cidades-Estado, mas extremamente coeso e construtivo para aquela civilização no que eles chamavam “Paidéia”, a união cultural comum. Em Roma, houve um vasto Império construído, mas sempre o Império soube respeitar as peculiaridades culturais das várias nações que o integravam, ao ponto dos romanos freqüentemente tenham sidos influenciados pelas várias culturas dos países associados ou conquistados, mas sempre exortando as próprias características patrióticas. Era comum um romano se tornar cristão, cultuar deuses gregos, fenícios ou egípcios, mas sempre preservando os próprios valores, mitos e instituições. Na Antigüidade romana, nunca houve algo parecido com a atual “Mac-donaldização” da cultura dos dias de hoje. A conquista era eminentemente militar. Esta coisa perversa e destruidora é uma invenção do capitalismo em geral, mas principalmente da sua atual fase chamada “globalização”, capitaneata pelos EUA.

Jornal da Comunidade - Sim, vemos que, de diversas formas, sempre houve um elemento de ligação entre os diversos povos que, de alguma forma, se destacaram na História. Mas... quando a noção contemporânea de patriotismo tornou-se, efetivamente, uma realidade histórica?

Said B. Dib - Quando houve a união entre o Estado Nacional e seu pressuposto: a criação de um sentimento coletivo de identidade nacional, consubstanciado no patriotismo. Isto aconteceu a partir da Era Moderna, com o florescimento do capitalismo e o processo de formação dos Estados Nacionais Absolutistas, caracterizados pela necessária união entre a nobreza e a burguesia em ascensão, como lideranças políticas junto aos demais elementos do corpo social das várias nações. Para Portugal empreender a expansão ultramarina, logo seguido pelas demais nações, foi necessária uma união nacional que viabilizasse tão grandioso empreendimento. Em outros países europeus, atrasados no processo, este esforço em se obter certa unidade política levava freqüentemente à progressiva uniformização de um sentimento nacional. Com as guerras religiosas do século XVII, aliadas ao esforço constante por mercados, houve o início da formação da nacionalidade.

Jornal da Comunidade - Mas foi com a Revolução Francesa e a Era Napoleônica, como todos os seus símbolos e instituições, que este entendimento nacional descambou para um sentimento generalizado de amor pela Pátria. Não é mesmo?

Said B. Dib – Exatamente. Diante das revoluções constantes e do sofrimento infringido pelas guerras entre as várias nações, foi se formando o patriotismo enquanto ideologia, mas, principalmente, como elemento de identidade e preservação nacional. Ao longo dos revolucionários séculos XVII e XIX, no primeiro com a Revolução Francesa e principalmente a Era Napoleônica, e no segundo, com a “Primavera dos Povos” (1848), deu-se mais sentido e mais vigor a este processo, que culminaria na conformação das nacionalidades dos países mais adiantados da Europa.

Jornal da Comunidade – Mas, o processo de formação das nacionalidades não se restringiu à Europa...

Said B. Dib – Não. No século XIX, embora tenha sido um processo inicialmente europeu, germinou em outras partes do mundo, principalmente no Japão e na América. Aliás, são, hoje, os países que, através do que chamam de G-7, mandam no mundo.

Jornal da Comunidade – Pode explicar melhor isto?

Said B. Dib – Sim. O sentimento patriótico – e o necessário processo histórico que lhe dá força – foi decisivo na construção do poder de países que, hoje, não fazem parte do cenário europeu, mas que têm grande poder no cenário internacional: Japão e EUA. No Japão, a chamada “Era Meiji”, e nos EUA, as Guerras de Independência (1776-1813) e a “Guerra de Secessão (1861-64), tiveram tanto o papel de formação das nacionalidades quanto, paralelamente, de uma conformação sentimental fortemente acentuada no patriotismo. Não é por outro motivo que até hoje, todos estes países que citei são hegemônicos e desenvolvidos no cenário mundial. Todos que construíram uma base socialmente valorativa no que se refere ao amor pelo que é nacional e no respeito pelo patriotismo, foram e são ainda extremamente poderosos no cenário internacional. Ou seja, são patrióticos. Em absolutamente todos eles, ao contrario do que se pensa, o papel do Estado foi importante tanto para o desenvolvimento de suas forças produtivas quanto no aproveitamento político do sentimento de unidade patriótica que ia se formando. Por essa razão, foram capazes de moldar o mundo aos seus valores e interesses e ao que conhecemos hoje como “Modernidade”.

Jornal da Comunidade - Mas hoje, com o processo de globalização, não há uma tendência a se refluir tal sentimento patriótico, na mesma proporção que vão se esvaindo as nacionalidades e as soberanias dos Estados?

Said B. Dib - Não. Também em geopolítica para toda ação há uma reação contrária e de igual intensidade. Nos países dependentes talvez este processo seja mais difícil, mas tende a existir na mesma proporção em que sofrem um processo de desconstrução de seus Estados que, em muitos casos, mal chegaram a se constituir de fato, como é o caso dos africanos. Em países como o Brasil, o problema está na elite, totalmente distante de nossa realidade em termos intelectuais, econômicos e éticos, sendo poucos os que compreendem as nossas verdadeiras possibilidades. Mas, também, temos amplos setores que compreendem o que acontece e tentam reagir. Os militares são um deles, mas não os únicos.

Jornal da Comunidade - Mas, diante da globalização e inserção do Brasil na economia mundial, principalmente depois de FHC, as coisas ficaram mais difíceis...

Said B. Dib – Claro! Mas, diante de qualquer imposição externa, por mais forte que seja, não se pode destruir uma nação. A China, que desde as guerras do ópio, foi violentada como nenhum outro país, hoje é o que é. Com tempo o patriotismo e as necessidades históricas de reação das sociedades subjugadas permitem a reconstrução do que importa.

Jornal da Comunidade – No Brasil, isto pode acontecer? Ou tem como acontecer?

Said B. Dib – Claro que sim. É difícil, mas, com certeza acontecerá, mais cedo ou mais tarde. Já se percebe certa reação de alguns setores. Contraditoriamente, o patriotismo se fortalece na medida justamente em que atingimos um momento preocupante das ações apátridas, como foi a Era FHC e parece continuar com Lula Nos chamados países do “Primeiro Mundo”, nunca houve e nunca haverá um abandono do patriotismo, pelo menos enquanto forem líderes mundiais. Em alguns casos, descambando mesmo para um nacionalismo xenófobo e perigoso - como o que está acontecendo com os EUA –, mas que não podemos confundir com o patriotismo. Este, como já disse, acontece em situações constantes da existência da nação e fazem parte do inconsciente coletivo dos membros da sociedade.

Jornal da Comunidade – E há realmente diferença? Quer dizer: realmente há diferença entre xenofobia e patriootismo?

Said B. Dib – Claro que sim. Xenofobias são patologias político–sociais decorrentes de graves crises institucionais e econômicas, quando não de guerras contra inimigos externos. Patriotismo é outras coisa. Não é uma situação patológioca, de desespero. Patriotismo é amor próprio...

Jornal da Comunidade – Mas ambos os casos não se enquadram no “11 de Setembro” e suas conseqüências, por exemplo?

Said B. Dib – Ótima pergunta. Boa oportunidade para esclarecer as coisas. Pois, reconhecer que o patriotismo é um imperativo, não significa que não devemos nos preocupar com a globalização. Na verdade, antes que o patriotismo, o que está em jogo é a própria noção de convivência democrática. Em especial uma característica importantíssima para a própria noção de democracia, em nível até planetário: a pluralidade cultural. Fala-se da vontade da maioria quando arrolamos as características democráticas, mas pouca atenção se dá à necessidade em se preservar a pluralidade e as idiossincrasias entre as nações. Fala-se muito em biodiversidade, mas despreza-se, num mundo cada vez mais friamente homogeneizado, mais cansativamente padronizado, mais estupidamente reificado, desprezando a etnodiversidade, que é a base e a razão de ser do patriotismo. Sucumbir ao que vem de fora, esvaziar nossos próprios valores e nos submeter a um mundo cada vez mais monolítico é empalidecer a pluralidade e a beleza da Humanidade, destruindo as nações, assim como, destruir a biodiversidade, é arruinar a vida. Ambas as perspectivas são estúpidas para a manutenção da vida.
Jornal da Comunidade – Mas, vamos ao que interessa. Quais são, hoje, os maiores empecilhos para que o patriotismo seja uma realidade comum no Brasil?

Said B. Dib – A tendência atual de desconstrução do Estado e das instituições brasileiras. Trata-se de reavaliar as condições de submissão que a pretendida transição do modelo de capitalismo nacional para o de capitalismo transnacionalizado. Devemos reconhecer que o “ciclo” de globalização do capitalismo em curso verm sendo uma ameaça poderosa à organização e dinâmica do Estado-nação. Os processos e as estruturas político-econômicos mundiais, compreendendo as corporações transnacionais e o FMI, o BIRD e a OMC, entre outras organizações e estruturas de poder, com freqüência atropelam a capacidade decisória de governos e setores sociais nacionais; atropelam nossa Soberania. É disso que estamos falando: o Estado brasileiro está sendo “desconstruído”, nosso patriotismo, detonado. Isto é grave...

Jornal da Comunidade – Voltemos ao tema: quando o patriotismo é nocivo? E quando é benéfico? Qual a diferença entre patriotismo e nacionalismo?

Said B. Dib - Quando é usado apenas nas soluções de crises agudas, não como uma prática constante e saudável de valorização cidadã do que nos pertence e do que amamos: nós mesmos, nossos imensos recursos, nossos valores, nossos cidadãos. O nacionalismo desesperado, engendrado em momentos de crise, se manifesta como estado febril e tardio do patriotismo. Por isso mesmo, corre-se sempre o perigo de se tornar, quando a situação apresenta-se insuportável, algo de chauvinismo e de xenofobia. Assim como o fato de que são os covardes fracos e os inseguros os que mais cometem traições e “jogo baixo”, para enfrentar os vitoriosos, a patriotada de um Lula da Silva da vida pode ser uma ruína para todos nós. Patriotismo verdadeiro, ao contrário, é sempre positivo, pois não visa a vantagens pessoais nem aos descaminhos da intolerância, mas, ao contrário, é capaz de sacrifício despojado, inclusive o da própria vida, pelo bem comum, como dizia Rui Barbosa. Como dizia sempre o padre Fernando Bastos de Ávila, toda Pátria se constituiu através do holocausto de inumeráveis patriotas anônimos ao longo de sua História que, na paz ou na guerra, alicerçam a sua grandeza no suor e no sangue. O caso dos nossos técnicos sacrificados em Alcântara é sintomático. Como Quixotes levaram adiante um sonho, enfrentaram imensas dificuldades, suportaram omissões do Estado, foram obrigados a contigenciar recursos, estudaram muito, tentaram, insistiram, ousaram, mas acabaram mortos, provavelmente, sabotados pelas forças que não aceitam que a tecnologia não é uma propriedade exclusiva dos mercenários internacionais do dinheiro, mas o resultado histórico do esforço de toda a humanidade na sua eterna luta pela sobrevivência, no direito inalienável de todos os seres humanos em estudar e pesquisar novas tecnologias voltadas para o bem comum. Por isso, fica a extrema admiração pelos homens que sonharam com Alcântara, exemplos de patriotismo, de espírito público, de desprendimento e de perseverança para todos nós. Pois, enquanto muitos, pensando apenas em suas carreiras, vão para o exterior, fazem fortuna e sucesso, eles optaram pelo caminho mais difícil, mas mais nobre, do Brasil. Isto é patriotismo.
Jornal da Comunidade - O que mudou no sentimento patriótico com o “11 de Setembro”?

Said B. Dib - Para os EUA, mudou exatamente esta perigosa metamorfose do patriotismo norte-americano – que eles sempre tiveram, temos que admitir e admirar – em xenofobia, chauvinismo e intolerância. Estas são características de Estados e sociedades em decadência. Na verdade, não foi o “11 de Setembro” que provocou isso. Pelo contrário, foi a crise por que passava - e passa - a sociedade estadunidense, que impusera uma política agressiva daquele país em detrimento do mundo. Isto vem gerando reações como o “11 de Setembro” e suas repercussões. Os acontecimentos envolvendo o World Trade Center foram precedidos por uma crise profunda da economia ianque, que já sinalizava neste sentido de desvirtuamento do patriotismo. O que está em jogo é uma gama de interesses estruturais vinculados não somente à esfera governamental norte-americana e seu complexo industrial-militar, mas a todo o gigantesco sistema financeiro mundial baseado no patrão-dólar. Sistema criado em Breton Woods, no pós-Segunda Guerra, reelaborado unilateralmente em detrimento dos países em desenvolvimento durante a crise do petróleo na década de 70, mas que mostra-se especialmente frágil nos últimos anos por motivos diretamente vinculados à questão energética. Segundo W. Clark, do jornal "Indy Time", o temor do Federal Reserve (Banco Central americano) era - e é - o de que a Opep, nas suas transações internacionais, abandone o padrão dólar e adote definitivamente o euro. O Iraque fez esta mudança em novembro de 2000 (quando o euro valia cerca de 80 centavos de dólar) e na verdade escapou com perfeição da depreciação do dólar frente ao euro (o dólar caiu 15% em relação ao euro em 2002). Este foi um precedente que apavorou a cúpula de poder anglo-americano e provocou a "inexorabilidade" da guerra. Nada como inimigos externos para forjar a união nacional na solução forçada dos problemas internos, acreditaram eles.

Hino da Independência do Brasil



Jornal da Comunidade - Como fazer para aumentar o sentimento patriótico no povo brasileiro?

Said B. Dib - Fazendo com que nossos líderes e nossas elites intelectuais, políticas e econômicas tenham vergonha na cara. Precisamos acabar com o sentimento de vira-lata e passarmos a ver o Brasil com nossos próprios olhos. Precisamos deixar de depender de favores externos, de optarmos por caminhos mais fáceis, mas sempre desastrosos. A Elite brasileira vive como dependente químico. Somos drogados sem amor próprio, desiludidos, desconsolados e inúteis. Há um clima reinante de desesperança e impotência que deve ser superado. O Brasil foi o país que mais cresceu nos últimos 100 anos, com a espantosa média de 9% ao ano. Somos ricos em cérebros, riquezas naturais e capacidade criadora. Por isso, se não bastassem as absurdas perdas que já temos de capitais, não podemos aceitar a perda também de mão-de-obra especializada que vem ocorrendo porque não damos o devido apoio aos nossos jovens. Não adianta nada o povo ser patriota se o governo não der a mínima para nossos quadros.


Jornal da Comunidade - E a “Semana da Pátria”, como pode ajudar nesta conscientização?

Said B. Dib - Como privilegiado momento de convergência de todos nós brasileiros, das mais variadas tendências e interesses, a “Semana da Pátria” não pode ser apenas um ritual formal. Ela deve ter vida, substância, respeito. Deve ser o que uni a todos nós - políticos, intelectuais, artistas, operários, empresários, lavradores, estudantes, clérigos, enfim, nós ... brasileiros. Como se vê, não necessitaríamos, se tivéssemos mais patriotismo e “vergonha na cara”, dos “favores” das instituições monetárias multilaterias e das esmolas das famigeradas ONGs. Este é o ponto central de toda essa discussão: pagamos em torno de 40% de impostos diretos e indiretos para que o Estado brasileiro nos atenda devidamente, mas este dinheiro é roubado do Orçamento através da esperteza do que chamam de “Superávit Primário” e enviado para o Sistema Financeiro Internacional (mais de R$ 300 bi só de pagamento de taxas de juros). Este, através dos PNUDS da vida, finge que é bonzinho e, vez por outra, quando nos comportamos, quando fazemos “o nosso dever de casa”, nos envia esmolas a doses homeopáticas e ineficazes através de seus agentes: as ONGs. Sem patriotismo, não podemos nos livrar dessa dependência imbecil. Sem patriotismo, não há como solucionarmos todas as dificuldades por que passamos.Precisamos ajustar os rumos, compreendermos que não é apenas lamentando que poderemos nos desenvolver. É hora de pensarmos o Brasil, não como um País problema, mas como solução, pois temos, ao contrário de grande parte do concerto das nações, as melhores e as mais poderosas potencialidades da Humanidade. Em absolutamente todos os sentidos. Chega dessa cultura das lamentações, do pessimismo, da desilusão e da resignação. Chega da importação de modelos acabados e de pouca valia para nossas necessidades. Vamos ter vergonha na cara e mostrar ao mundo que somos o futuro. A educação de nossos jovens está por demais impregnada de valores negativos, estranhos a nós e desestimuladores. Estamos criando um exército de “chorões” existenciais, de masoquistas lamentadores, de seres passivos e inúteis. É esta postura mental derrotista e pessimista, estimulada por muitos formadores de opinião nada patrióticos - os patesis medíocres do neoliberalismo assassino -, que vem fazendo com que a realidade brasileira seja invertida e apagada nas mentes de nossos jovens, que nossas riquezas sejam esquecidas, que nossas inteligências sejam menosprezadas, que nossas esperanças sejam esvaziadas.

Jornal da Comunidade - Qual pensador que você poderia destacar como símbolo de patriota e que tenha contribuído com a causa do Brasil?

Said B. Dib – O maior patriota, não só no discurso, mas na ação, foi do homem que deu um tiro no peito pelo Brasil: Vargas. Mas, para não ser injusto com vários importantes patriotas faço, na pessoa de Rui Barbosa, uma homenagem a todos os brasileiros que lutaram e lutam pelo Brasil. Acho-o muito atual e importante. Portanto, neste momento confuso de indefinições por que passa o mundo, com mudanças constantes de toda ordem, cada vez mais aceleradas e profundas, não podemos nos esquecer das advertências do ilustre nahiano, símbolo de civismo e dedicação ao Brasil. Ele apresentou a sua definição de Pátria por ocasião da solenidade de formatura de jovens no Liceu do Colégio Anchieta de Friburgo, em 1903, tornando-se um dos momentos mais conhecidos de sua oratória cívica. Fazendo uma exortação à união, mas sempre preocupado com o pluralismo democrático, ensinava: “A pátria não é um monopólio, a Pátria são os que não conspiram, os que não sublevam. Não foram poucas as ocasiões em que se tentou fazer dela e de seus símbolos monopólio de uma classe, de uma corporação, de uma ideologia. A pátria não é ninguém: são todos; e cada qual tem no seio dela o mesmo direito à idéia, à palavra, à associação. A Pátria não é um sistema, nem uma seita, nem um monopólio, nem uma forma de governo: é o céu, o solo, o povo, a tradição, a consciência, o lar, o berço dos filhos e o túmulo dos antepassados, a comunhão da lei, da língua e da liberdade. Os que a servem são os que não invejam, os que não infamam, os que não conspiram, os que não sublevam, os que não desalentam, os que não emudecem, os que não se acobardam, mas resistem, mas ensinam, mas esforçam, mas pacificam, mas discutem, mas praticam a justiça, a admiração, o entusiasmo. Porque todos os sentimentos grandes são benignos, e residem originariamente no amor. No próprio patriotismo armado, o mais difícil da vocação, e a sua dignidade, não está no matar, mas no morrer. A guerra, legitimamente, não pode ser o extermínio, nem a ambição: é simplesmente a defesa. Além desses limites, seria um flagelo bárbaro, que o patriotismo repudia."

Esta definição de Rui sobre a Pátria, encanta, pois encara o patriotismo não como uma manifestação de um ufanismo fácil, mas sim como uma vigorosa afirmação da abrangência universal do conceito, por cima de todas as divisões políticas, econômicas, religiosas, e outras. É uma definição perene, profundamente ligada ao conceito de democracia, formulada numa oratória clássica e elegante, que jamais deve ser esquecida, simplesmente porque hoje, como nunca, precisamos nos redescobrir, nos repensar, darmos a nós mesmos o devido valor.

Viva a Semana da Pátria!!!

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