A crise mundial que vivemos não tem precedentes e está vinculada a outra que deixou o socialismo à morte. Marx concebeu sua teoria num mundo que não existe mais: nem na geografia política, econômica e social, nem no estilo de vida. O sonho de Marx em "O Capital" (1867-1894) -a cada um segundo sua necessidade, o fim da exploração do homem pelo homem e a sociedade sem classes, visão generosa- entrou para o cemitério das superações de que é formada a história. Não sobreviveu ao comunismo de Lênin, que levou a União Soviética a pensar em dividir o mundo e terminou melancolicamente no fim da década de 80. Adam Smith, em 1776, em "A Riqueza das Nações", imaginou que a liberdade econômica era a solução para compartilharmos o direito de viver utilizando os recursos naturais da terra, a distribuição de bens, o trabalho e a convivência humana, tese que também desapareceu.Sua visão entra no caminho do sepulcro. Tudo muda, porque cada geração é uma geração a construir um outro mundo. Como caiu o Muro de Berlim, desmoronou Wall Street, por coincidência também muro. E veio abaixo com ela a cadeia que sustentava em todos os países do mundo o sonho do mercado, objeto mais sagrado da economia capitalista. A crise é, portanto, a do capitalismo, seja o de Keynes que foi abandonado, seja o da era de ouro que foi o neoliberalismo, a doutrina de Chicago, a criação de uma economia de moedas que se expandiam num vazio, como se fosse um universo em expansão sem limites, chegando mesmo, num otimismo utópico, à proclamação do fim da história. Há quase 20 anos, quando estive em Xangai numa reunião do Conselho Mundial de Interação, escrevi, e depois repeti muitas vezes, que o mercado era atividade-meio da economia, podia muita coisa, mas não podia tudo. Que o fim do comunismo fora fruto de seus próprios equívocos. E enfatizei que, ao contrário de contar vitórias, o capitalismo tinha de se renovar, resolver seus erros e contradições internas, senão iria acontecer com ele a mesma coisa. E está acontecendo. A globalização está se desglobalizando, o protecionismo renasce com força. O comunismo de Estado matava a liberdade. O mercado sem freios expande a pobreza, explora os mais fracos e protege os mais fortes. Não falo em terceira via. Falo no início da visão de um mundo justo, fora do hedonismo do consumo escandaloso, do império do lucro sobre o humanismo do respeito ao direito de viver dignamente: sem fome, sem guerra, sem medo. Um dia essa utopia acontecerá. Poderá consumir muitos séculos se o homem em sua loucura não acabar com o mundo ele mesmo.
José Sarney é ex-presidente, senador do Amapá e acadêmico da Academia Brasileira de Letras
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