"Exterminem todos os brutos": Gaza 2009
Artigo publicado originalmente no site de Noam Chomsky, em 19 de janeiro de 2009, um dia antes da posse do presidente dos EUA, Barack Obama
Artigo publicado originalmente no site de Noam Chomsky, em 19 de janeiro de 2009, um dia antes da posse do presidente dos EUA, Barack Obama
O poder dos homens do Hamas permanece intacto, e a maior parte dos que sofreram em Gaza é de civis: um resultado positivo, segundo uma doutrina muito bem difundida, a do terrorismo de Estado. Israel calculou que seria vantajoso parecer que “estava ficando louco”, causando terror largamente desproporcional à população. O recado era claro: deixem de apoiar o Hamas. Enquanto isso, observamos calmamente um evento raro na história, que o velho sociólogo israelense, Baruch Kimmerling, chamou de “politicídio”, o assassinato de uma nação. No sábado, 27 de dezembro, teve início o mais recente ataque de EUA-Israel contra palestinos desamparados. O ataque foi meticulosamente planejado, por mais de seis meses, de acordo com a imprensa israelense. O plano tinha dois componentes: militar e propaganda. Baseou-se nas lições da invasão israelense do Líbano em 2006, que foi considerada pobremente planejada e mal divulgada. Podemos, então, estar razoavelmente confiantes em que a maior parte do que vem sendo feito e dito foi intencional e programado. Isso certamente inclui o momento do ataque: pouco antes do meio-dia, quando as crianças estavam retornando da escola e multidões circulavam nas ruas densamente povoadas da Cidade de Gaza. Levou apenas poucos minutos para matar mais de 225 pessoas e ferir 700, um auspicioso começo de massacre em massa de civis indefesos, presos numa minúscula jaula sem saída.
Na sua retrospectiva “Inventário das Conquistas da Guerra de Gaza”, o correspondente do New York Times, Ethan Bronner, citou um dos mais significativos desses ganhos. Israel calculou que seria vantajoso parecer que “estava ficando louco”, causando terror largamente desproporcional, uma doutrina cujos traços remontam aos anos 50. “Os palestinos em Gaza entenderam a mensagem no primeiro dia”, escreveu Bronner, “quando os aviões de guerra de Israel atacaram numerosos alvos simultaneamente no meio da manhã de um sábado. Uns 200 morreram instantaneamente, surpreendendo o Hamas e na verdade toda Gaza”. A tática do “estava ficando louco” aparentemente tinha sido bem sucedida, concluiu Bronner: há “certas indicações de que a população de Gaza sentiu tanta dor com essa guerra que buscará pôr um freio no Hamas”, o governo eleito. Essa é outra velha doutrina do terrorismo de estado. Eu não lembro, incidentalmente, da retrospectiva do Times “Inventário das Conquistas da Guerra da Chechênia”, ainda que nesta os ganhos tenham sido grandiosos. O meticuloso plano também incluía o término do assalto, cuidadosamente marcado para logo antes da posse, a fim de minimizar a (remota) ameaça de que Obama pudesse dizer algumas palavras críticas a esses viciosos crimes apoiados pelos EUA. Duas semanas depois do Sabbath que inaugurou o assalto, com Gaza já espatifada e com o número de mortos chegando a 1000, a agência das Nações Unidas UNRWA, da qual muitos habitantes de Gaza dependem para sobreviver, anunciou que o exército israelense proibiu o carregamento de ajuda para Gaza, alegando que as estradas estavam fechadas devido ao Sabbath. Para honrar o dia sagrado, aos palestinos no limite de sobrevivência deveriam ser negados comida e medicamentos, enquanto centenas podem ser massacrados pelos aviões de bombardeio norte-americanos e por helicópteros.
Crueldade e cinismo em notas de rodapé
A rigorosa observância do Sabbath nesse duplo sentido atraiu pouco noticiário. O que faz sentido. Nos anais da criminalidade norteamericana-israelense, tamanha crueldade e tamanho cinismo merecem pouco mais que uma nota de rodapé. São também familiares. Para citar um paralelo relevante, em Junho de 1982 a invasão israelense apoiada pelos EUA no Líbano começou com um bombardeio do campo de refugiados palestinos de Sabra e Shatila, que depois iriam se tornar famosos como lugares de massacres terríveis supervisionados pelas IDF (Forças de “Defesa” Israelenses, o exército de Israel). O bombardeio atingiu o hospital local – o hospital de Gaza – e matou mais de 200 pessoas, de acordo com o relato de uma testemunha ocular, um acadêmico norte-americano especialista em Oriente Médio. O massacre foi o ato inicial de uma invasão que chacinou entre 15 e 20 mil pessoas e destruiu a maior parte do sul do Líbano e Beirute, e se realizou com o crucial apoio militar e diplomático dos EUA.
Isso inclui vetos nas resoluções do Conselho de Segurança visando a deter a agressão criminosa que estava sendo cometida, e mal escondida, para defender Israel da ameaça de um acordo político pacífico, contrário a muitas fabricações convenientes relativas ao sofrimento dos israelenses sob intensos foguetes, uma fantasia de apologistas. Tudo isso é normal e bastante discutido abertamente pelos altos oficiais israelenses. Trinta anos atrás o alto comandante do exército israelense, Mordechai Gur observou que desde 1948 “temos lutado contra uma população que vive em vilas e cidades”. Como o mais proeminente analista militar, Zeev Schiff resumiu em suas observações, “o exército israelense sempre atacou populações civis, proposital e conscientemente...o exército”, disse ele, “nunca distinguiu alvos civis [de militares]...mas propositalmente atacou alvos civis”. As razões foram apresentadas pelo distinto homem de estado Abba Eban: “havia um projeto racional, em última análise alcançado, de que as populações afetadas iriam fazer pressão para que as hostilidades cessassem”. O efeito, como Eban entendeu bem, seria permitir a Israel implementar, sem distúrbios, seus programas de expansão ilegal e de repressão áspera. Eban estava comentando uma análise do primeiro ministro Begin, do governo trabalhista, sobre os ataques desferidos contra civis, apresentando um quadro, disse Eban, “em que Israel brutalmente inflinge morte e aflição em populações civis, num estado de ânimo reminiscente de regimes que nem o senhor Begin nem eu ousaríamos mencionar os nomes”. Eban não contestava os fatos analisados por Begin, mas o criticava por tê-los exposto publicamente. Não concernia a Eban, nem a seus admiradores, que sua defesa do sólido terror de estado também seja reminiscente de regimes que ele não ousaria mencionar o nome. A tentativa de "educar" o HamasAs justificações de Eban do terror de estado são tomadas como convincentes por autoridades respeitadas. Enquanto o recente ataque israelo-estadunidense ainda fazia barulho, o colunista do Times, Thomas Friedman, explicava que a tática atual de Israel, como aquela adotada durante a invasão do Líbano em 2006, estava baseada num princípio louvável: “tentar educar” o Hamas, ao inflingir perdas pesadas aos seus militantes e sofrimentos terríveis à população de Gaza”. Isso se compreende em termos pragmáticos, como foi o caso no Líbano, em que “a única dissuasão de longo prazo foi expor os civis – as famílias e empregados dos militantes – a calamidades, para que eles não apóiem o Hizbollah no futuro”. E, por uma lógica similar, o esforço de Bin Laden para “educar” os americanos no 11 de Setembro foi altamente louvável, bem como os ataques nazistas a Lídice e Oradour, a destruição que Putin causou em Grozny, e outras notáveis tentativas de “educação”. Israel tem envidado esforços para tornar clara sua dedicação a esses princípios reguladores. O correspondente do New York Times, Stephen Erlanger, reporta que os grupos israelenses de direitos humanos estão “perturbados com os ataques israelenses em prédios que acreditam devam ser classificados como civis, como o parlamento, as delegacias de polícia e o palácio presidencial” - e, podemos acrescentar, vilas, casas, campos de refugiados densamente povoados, sistemas de água e esgoto, hospitais, escolas e universidades, mesquitas, instalações de ajuda humanitária das Nações Unidas, ambulâncias e na verdade qualquer coisa que possa aliviar a dor de vítimas sem valor. Um oficial sênior da inteligência do IDF explicou que o exército “atacou ambos os aspectos do Hamas – sua ala de resistência ou militar e seu dawa, ou ala social”, esta última, um eufemismo para a sociedade civil. “Ele argumentou que o Hamas era um todo”, continua Erlanger, “e, numa guerra, seus instrumentos de controle político e social eram alvos tão legítimos com o são seus abrigos dos foguetes”. Nem Erlanger nem seus editores acrescentaram qualquer comentário quanto à defesa aberta e à prática de terrorismo em massa alvejando civis, embora correspondentes e colunistas afirmem sua tolerância e mesmo a defesa de crimes de guerra, como já se notou. Mas, para manter a regra, Erlanger não deixa de enfatizar que os foguetes do Hamas são “uma óbvia violação do princípio de discriminação e se encaixa na clássica definição de terrorismo”. Assim como outros especialistas em Oriente Médio familiarizados com a região, Fawwaz Gerges observa que “o que os oficiais israelenses e seus aliados americanos não avaliam é que o Hamas não é apenas uma milícia armada, mas um movimento social com uma grande base popular profundamente consolidada na sociedade”. Portanto, quando eles levam ao cabo seus planos de destruir a “ala social” do Hamas, estão visando a destruir a sociedade palestina. Talvez Gerges esteja sendo gentil demais. É muitíssimo improvável que os oficiais israelenses e norte-americanos – ou a mídia e outros colunistas – não tenham uma avaliação desses fatos. Antes, eles implicitamente adotam a perspectiva tradicional daqueles que monopolizam os meios de violência: com um soco norte-americano esmagamos toda oposição, e se o saldo civil de nossos ataques brutais é pesado, também é bom: pode ser que os sobreviventes venham a ser convenientemente educados.
Leia na íntegra o ensaio...
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