segunda-feira, 15 de setembro de 2008

O CIMI e a Declaração da ONU

Denis Lerrer Rosenfield*
O Estado de S. Paulo

Declarações são desencontradas e os números servem mais para encobrir do que para esclarecer os fatos e as intenções dos agentes políticos. O julgamento em curso sobre a Raposa Serra do Sol coloca questões relativas à soberania nacional que devem ser seriamente consideradas. Relegá-las a segundo plano seria um grave equívoco. O Itamaraty assinou a Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas da ONU, contrariando pontos da própria Constituição brasileira. O Ministério das Relações Exteriores, por sua vez, procura se esquivar, afirmando, contra todas as evidências, que essa Declaração não precisaria ser ratificada pelo Congresso Nacional, quando é disso, precisamente, que se trata. Das duas, uma: ou a Declaração passa a ter vigência no País, independentemente de ser ratificada pelo Congresso, situando-se acima da Constituição brasileira, ou ela não tem nenhuma validade e, neste caso, não se sabe por que o Itamaraty a teria assinado. Uma simples assinatura sem nenhum valor? Custa a acreditar.
Da mesma maneira, o processo de identificação e demarcação de terras indígenas em Mato Grosso do Sul apresenta números conflitantes, que parecem corresponder a essa mesma estratégia de assinar uma coisa e dizer outra, como se o cidadão não merecesse o respeito à informação. Nesse Estado, as portarias do Incra abrangem 26 municípios (já aumentados, na semana passada, para 28), correspondendo a aproximadamente um terço do seu território. Esta é a realidade. O resto é tergiversação. Diante das reações suscitadas, certos antropólogos desinformados falam em 600 mil hectares e outros, em 3 milhões. Nem eles se entendem. O Conselho Indigenista Missionário (Cimi) calcula em torno de 4 milhões de hectares. Segundo o que foi publicado no Diário Oficial, a área a ser demarcada chega a aproximadamente 12 milhões de hectares, podendo atingir qualquer propriedade e qualquer município. A insegurança jurídica é total, prejudicando seriamente o Estado. Eles desinformam, em vez de informar. A quem interessa essa confusão?
Em 17 de setembro de 2007, o Cimi, órgão vinculado à Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), fez uma contundente defesa da aprovação da Declaração pela Assembléia-Geral da ONU, que ocorreu no dia 13 do mesmo mês - logo, apenas quatro dias depois de aprovada. Em seus próprios termos: “A Declaração se torna agora um importante instrumento na luta dos povos indígenas pela afirmação de seus direitos. A Declaração orienta os Estados a protegerem os territórios indígenas e os recursos que existirem nestes. Além disso, a ONU recomenda que nenhuma ação deve ocorrer em terras indígenas sem consentimento prévio e informado dos povos. As formas de consultá-los devem ser de acordo com a organização de cada povo.”
Constata-se o papel propriamente político da Declaração enquanto instrumento a ser utilizado em cada país pelas organizações que se colocam como representantes dos povos indígenas. No caso em questão, o Cimi se põe na situação desse interlocutor, ocupando o lugar de mediador, embora, na verdade, atue diretamente na nomeação e nas próprias ações da Fundação Nacional do Índio (Funai). É como se a Funai, de órgão do Estado brasileiro, passasse a funcionar como órgão da ONU e de seus intermediários, para além da soberania nacional. Mais especificamente, é recomendado que toda ação dentro dos territórios considerados indígenas seja feita somente com o consentimento desses povos, o que vem a significar: com o consentimento do próprio Cimi e de outros órgãos atuantes nessas terras e nesses territórios. Ou seja, o Cimi e as ONGs, com a intervenção da Funai, terminariam se colocando como os verdadeiros governantes (...).

Leia o artigo O Banco Mundial e as hidrelétricas completo.

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