Eles são hoje três vilões combatidos – em nome da saúde pública – com força cada vez maior. E se tornaram símbolos do conflito que opõe a liberdade de escolha à vocação do Estado para tutelar nossa vida
Marcelo Zorzanelli
Em 1976, Roberto Carlos lançou um funk com a seguinte letra: Se faço alguma coisa sempre alguém vem me dizer/Que isso ou aquilo não se deve fazer/Já não sei mais o que é certo/E como vou saber/O que devo fazer/Que culpa tenho eu/Me diga amigo meu/Será que tudo o que eu gosto/É ilegal, é imoral ou engorda?. Esse divertido libelo contra o movimento politicamente correto fez sucesso em pleno regime militar. O que inspirou Roberto Carlos a esse ato de transgressão foram as patrulhas morais que rechaçavam as auto-indulgências do cidadão comum por seus pequenos prazeres terrenos. Naquele ano o brasileiro habitava um modesto paraíso de liberdades individuais: podia tomar uma taça de vinho e dirigir seu Opala SS, soltar baforadas de Minister onde bem entendesse e comer biscoitos recheados sem se preocupar se cada mordida aumentaria seu risco de sofrer um infarto.
A Lei Seca não é o único exemplo de preocupação do Estado com hábitos particulares. Há três semanas, o governador José Serra enviou um projeto de lei à Assembléia Legislativa de São Paulo proibindo o fumo em lugares fechados, públicos ou privados. Nem mesmo as áreas livres dentro de condomínios ou os fumódromos de empresas seriam permitidos. A multa para os estabelecimentos poderá ir de R$ 220 a R$ 3,3 milhões. Acabariam também as alas para fumantes dos restaurantes. De fora, ficaram apenas os locais de culto religioso como centros de umbanda, onde o tabaco faz parte do ritual, instituições de saúde onde o fumo tenha sido recomendado por médicos, espaços ao ar livre e estabelecimentos como charutarias, devotados à turma das baforadas. Se a lei for aprovada, a fiscalização será feita pela Vigilância Sanitária, pelo Procon e pela Polícia Militar. Um número de telefone será criado para denúncias anônimas. Uma lei de teor semelhante está em vigor no Rio de Janeiro desde 31 de maio. No caso do cigarro, as duas capitais brasileiras estão seguindo uma tendência dos países mais desenvolvidos.
Mas o governo também enche os cofres com os tributos sobre o fumo, as bebidas alcoólicas e os alimentos que contêm gorduras trans. Em 2006, foram R$ 5 bilhões em taxas cobradas sobre o cigarro. Os fabricantes de cerveja pagaram, juntos, outros R$ 7,2 bilhões. O imposto sobre produtos industrializados (IPI) que incide sobre bebidas alcoólicas será reajustado em 30% no dia 1º de outubro. Esses não são impostos que todos pagam. Apenas aqueles que consomem cigarros ou cervejas.
A economia que bares e restaurantes movimentam também não pode ser desconsiderada. “Houve uma queda de 40% no movimento nos bares. Isso quer dizer que 100 mil pessoas ficarão sem emprego em breve”, diz Percival Maricato, diretor-jurídico da Associação Brasileira de Restaurantes e Empresas de Entretenimento (Abrasel). No dia 4 de julho, a entidade questionou na Justiça a constitucionalidade da Lei Seca. O Supremo Tribunal Federal deverá se pronunciar a respeito até o fim do ano. O ministro Gilmar Mendes, presidente do STF, estaria preocupado com “interesses da coletividade”.
Ninguém questiona os malefícios do fumo – inclusive, com crescentes evidências, do fumo passivo –, da gordura e da irresponsável mistura de bebida e direção. Mas isso não significa que devemos saudar alegremente a intromissão do Estado em nossa vida particular. “A História ensina que, quando o Estado começa a controlar totalmente o indivíduo, ele termina considerando-o um incapaz de decidir por si mesmo”, diz Denis Lerrer Rosenfield, professor de Filosofia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. “O mais perigoso é que isso começa de uma forma politicamente correta, com todo mundo aceitando em nome de um bem maior, no caso a saúde.” Rosenfield afirma que, quando o Estado passa a ter uma tutela sobre o cidadão, sua liberdade de escolha pode ser restringida. “Há um interesse do Estado em transformar o cidadão numa máquina que não adoeça, trabalhe para gerar riqueza e pagar impostos”.
A ficção também é pródiga em apontar os riscos representados por essa tendência de controlar tudo em nome do bem comum. No filme O Demolidor, de 1993, Sylvester Stallone vive um policial da década de 1990 condenado a ser congelado por 30 anos por um crime que não cometeu. Quando acorda, em 2032, o mundo é irreconhecível. No futuro é proibido dizer palavrões (máquinas imprimem multas automaticamente quando ouvem um), o sexo só pode ser feito mentalmente com a ajuda de um computador e os policiais estão proibidos de usar armas. A agente designada para acompanhá-lo tenta dissuadi-lo de acender um cigarro. “Cigarros não fazem bem para você, e tudo o que não é bom para você é ilegal. Álcool, cafeína, esportes de contato, carne...” Mas nada surpreende tanto o personagem de Stallone quanto sua primeira ida a um restaurante do futuro. “Me passa o sal”, diz. “Sal não é bom para você, portanto é ilegal”.
Também na academia há exemplos de como o politicamente correto pode degenerar em totalitarismo. Um recente artigo do americano Stephen J. Dubner, co-autor do livro Freakonomics, uma visão original da economia, mostra como a corrida para sanar o aquecimento global pode se desvirtuar. Dubner cita um artigo de uma revista inglesa de medicina segundo o qual os obesos contribuem para o aquecimento global. Como a produção de alimentos libera gases do efeito estufa, quem consome mais calorias prejudica mais o meio ambiente. Partindo do mesmo princípio, o autor diz que quem faz exercícios e queima calorias também é responsável pelo efeito estufa. Ele propõe, sarcasticamente, a criação de um imposto sobre ciclistas e corredores, algo como US$ 0,1 por hora de atividade.
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A tentação de elevar o grau de punição para coibir o mau comportamento já levou a abusos históricos. Um dos exemplos mais conhecidos foi a lei seca que vigorou nos Estados Unidos entre 1920 e 1933. Ela proibia a fabricação, o comércio e o consumo de álcool em todo o país. A idéia era eliminar, pela raiz, a corrupção e o crime e diminuir a violência doméstica. O efeito foi o oposto. Amadores começaram a fazer bebida em casa, médicos receitavam uísque medicinal, vendido em farmácias, a Máfia cresceu e corrompeu a polícia. Com o aumento da intoxicação por bebidas não-fiscalizadas, o custo para a saúde pública aumentou. E o número de estabelecimentos ilegais vendendo álcool chegou a 30 mil em 1927 – o dobro do número de bares que existiam antes da lei.
“Os decretos presidenciais, ministeriais, as portarias, as medidas provisórias e as resoluções terminam dando ao Executivo um poder enorme”, diz Rosenfield. O perigo de conceder poder ao Estado para decidir sobre as escolhas individuais é chegar ao ponto em que a regulação deixa de proteger para invadir. É o que ocorre quando o Estado eleva um tributo. Ele obriga o contribuinte a abrir mão de suas escolhas de consumo para sustentar um aparelho que não abre mão dos próprios gastos.
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“Este não é um movimento exclusivamente brasileiro”, diz o jurista Tércio Sampaio Ferraz Junior, autor do livro Direito Constitucional. Nos Estados Unidos, o colunista David Harsanyi escreveu um livro sobre as liberdades individuais seqüestradas. Ele cita como exemplos, além de leis que proíbem o fumo, o álcool e a gordura trans, os playgrounds ultra-seguros (chamados de “sem-diversão”), o banimento de skatistas e de pornografia. “Esses ataques à liberdade são cheios de boas intenções”, diz. “Mas são basicamente como babás puritanas e autoritárias, que não toleram ninguém vivendo de forma diferente”. Harsanyi usa o termo Estado-babá para definir políticas intervencionistas. “Somos todos crianças, e o Estado virou a grande babá que cuida de nós”, diz Ferraz.
Mesmo o valor da saúde pública não pode ser considerado absoluto. Não apenas porque pode se opor a outros valores ideais – como a liberdade ou o prazer –, mas também porque é passível de manipulação. O argumento da saúde pública já deu base para políticas esdrúxulas, como a eugenia, conceito com seguidores nos governos de Alemanha, Estados Unidos e Rússia na primeira metade do século XX. Na Alemanha nazista, a saúde pública ajudou a justificar políticas de segregação, perseguição e depois eliminação de não-arianos. Na União Soviética, o defensores da eugenia calaram-se assim que a primeira crise se instalou. Como mais trabalhadores eram necessários para compor as engrenagens do sistema, a “higiene racial” foi suspensa. Houve traços de eugenia também nos EUA. Em 1907, 20 Estados tinham leis de esterilização. Tudo feito em nome da cidadania.
Ao Estado-babá corresponde em geral um processo de “vitimização” do cidadão. Isso ficou claro nos EUA, a partir da década de 1950, quando se descobriu que a indústria de tabaco escondia os malefícios do fumo. A partir daí, começou uma indústria de processos, que persiste até hoje – mesmo com toda a informação disponível sobre o risco de câncer. Os pedidos de indenização estão agora chegando à indústria do fast-food. O argumento por trás das ações é que o indivíduo é indefeso ante a máquina de propaganda e, posteriormente, ante o vício dos açúcares e das frituras. “Isso limita profundamente a dignidade humana”, diz o jurista Ferraz. Um valor indispensável à condição humana é a responsabilidade que vem com cada ato. Pelo menos em tese, quem fuma o faz porque quer. Quem come batata frita o faz porque tem prazer. “Tirar das pessoas a responsabilidade por seus atos as torna infantis para o resto da vida”, diz Ferraz.
No mundo perfeito, todos teriam todas as informações à disposição, e as escolhas seriam sempre as melhores: trariam saúde, prazer, conhecimento, riqueza, bem geral. Mas, como disse o filósofo inglês Isaiah Berlin no ensaio Sobre a Busca do Ideal, nossos ideais são muitas vezes contraditórios. E, quando se persegue um deles com afinco demais, acaba-se por deixar outros pelo caminho.
Leia na íntegra a matéria da revista “Época” desta semana
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