quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Said Barbosa Dib


Cotidiano

Bateu no vidro do carro uma menina de olhar triste e já envelhecido. Figura comum, num dia comum, numa cidade comum. Retrato de uma vida miserável comum, que chegara ao fim sem nunca ter começado.
Carregava seu rebento esquálido e faminto, como muitos outros que se vê por aí. Tinha roupas maltrapilhas comuns, amassadas e sujas, quase putrefatas, com cheiro forte comum, como que exalando o sangue e o suor comuns a todos os famintos e marginalizados da História, acumulados por milênios.
Seu corpo magérrimo, muito comum em pessoas de sua condição, precocemente enrugado, maltratado pelo Sol e torturado pelos homens, revelava seios comuns, naturalmente murchos e encardidos.
O sorriso era apenas um esboço mal feito de um sorriso, um arquear desanimado e seco da boca desdentada, sem vida e sem vontade, refletindo privações e experiências desgraçadas comumente inimagináveis para nós, pessoas menos comuns que aquelas outras comuns.
Catava ansiosamente o lixo comum, jogado ali por famílias de classe média comuns, como se garimpasse ouro ou diamante.
Uma indigência comum, comumente esquecida, num dia comum, numa cidade comum, num país comum.
Minha reação foi um comportamento também muito comum: fechei o vidro do carro e acelerei, depois de dizer um “não tenho” comum.

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